'Mário de Andrade negro': o tropeço do governo paulista
Por André Cintra
Nem a população negra, nem os movimentos pela igualdade, nem Mário de Andrade — ninguém merecia a irresponsabilidade com que o PSDB tratou o Mês da Consciência Negra em São Paulo. Para homenagear personalidades negras durante as c
Publicado 21/11/2007 20:10
Antes de a exposição ganhar as ruas, o secretário estadual de Cultura, João Sayad, chegou a ser alertado do erro, conforme revela a colunista Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo desta quarta-feira (21). Sua reação, no entanto, misturou empáfia com irresponsabilidade. Além de não apurar o problema a tempo, Sayad está adorando a repercussão negativa. “É ótimo que crie polêmica, porque chama a atenção”.
No lançamento oficial do Mês da Consciência Negra, Sayad falava: “Nossa idéia é polemizar, mostrando a real essência negra de várias pessoas que ajudaram a construir a nossa história”. Mas a polêmica que ele festeja agora é desnecessária e artificial. Se a lógica do secretário for seguida, toda a proposta de despertar e valorizar a consciência negra se torna irrelevante. O que passou a importar, com a foto, foi o factóide. É como se o governo pudesse errar à vontade, desde que isso provocasse debates.
Em artigo publicado na terça-feira (20), o secretário exaltava a campanha de forma pouco crítica, ressaltando mais as curiosidades em torno de “personalidades brasileiras que ou têm pele mais escura, ou cabelo crespo, ou que são descendentes de escravos”. A respeito das imagens da campanha, destacou “a foto de Mário de Andrade moço e antes de ficar careca, com a testa larga emoldurada pelo cabelo crespo, para que nos lembrássemos de que o intelectual e poeta era negro”.
“Não é ele”
Foi o secretário municipal de Cultura de São Paulo, Carlos Augusto Calil, que procurou identificar a origem e a autenticidade da foto do “Mário de Andrade negro”. Calil enviou uma cópia da imagem ao crítico literário Antonio Candido, que foi amigo do escritor, com quem chegou a trocar dezenas de cartas. Conforme o relato de Mônica Bergamo, Candido garantiu “que Mário de Andrade não era estrábico, como aparece na imagem do governo. E não tinha tanto cabelo”.
Não bastasse a credibilidade do crítico, Calil procurou a maior estudiosa da vida e da obra do escritor — a professora de literatura Telê Ancona Lopez, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP: “Examinei a foto, dei a pesquisadores, passei também para os meus alunos. Não é o Mário de Andrade. Os olhos, a orelha, o cabelo e o formato do rosto, nada é dele”, analisou a professora. “Eu conheci o Mário de Andrade”, agregou Antonio Candido. “Não é ele, uai! Eu olho e vejo que não é.”
Ao repassar tais relatos para os responsáveis pela campanha, Calil foi informado de que a foto controversa fora doada por Oswaldo de Camargo, especialista em literatura e consultor do Museu Afro-Brasil. “Desculpe, mas quem é Oswaldo de Camargo perto de Antonio Candido, de Telê Ancona Lopez?”, rebateu o secretário municipal. O próprio Oswaldo já não afirma que a imagem é do escritor. “Até uma semana atrás, nunca tive dúvida de que era o Mário”, declarou nesta quarta-feira ao UOL.
“Meu único papel foi pegar uma foto. Fiz uma cópia no arquivo do jornal O Estado de S.Paulo em 1989. Mostrei em encontros e palestras, mas nunca publiquei”, acrescenta o curador. “Se não for o Mário, tem muitas semelhanças com ele. É preciso ver também quando o Candido conheceu o Mário. Nessa foto, ele, Mário, provavelmente é muito jovem.”
Protestos
Sayad não perdeu a arrogância: “O Calil me falou da foto. Mas deve ser ele (Mário de Andrade), sim”. O governo, ao final, mandou a foto para os banners mesmo desconhecendo sequer sua origem. “Sayad diz que está aguardando que Oswaldo de Camargo ‘nos diga a origem da imagem’. A palavra final, diz, será do IEB”, registra Mônica Bergamo. A falsa foto de Mário de Andrade pode ser conferida em locais públicos como a Praça da Sé e Centro Cultural São Paulo.
“É um negócio muito maluco. Fica lá uma criatura que ninguém sabe quem é passando por outra. Isso é muito leviano”, protestou Telê Ancona, que é responsável por catalogar as milhares de cartas deixadas por Mário de Andrade. “Pior é colocarem um documento na rua sem dizerem a fonte. De que revista é essa foto? De que jornal?”
Como escritor e intelectual, Mário de Andrade trabalhou para promover não só os negros — como todos os Brasis e brasileiros, associando pedaços, vocações e mitos do país. Na vida pessoal, porém, ele era dado a vaidades que ofuscavam suas raízes negras, como passar pó-de-arroz para clarear o rosto. À falta de fotos que mostrassem o “Mário de Andrade negro”, Sayad tropeçou numa imagem falsa. Retratar-se agora, mesmo que brevemente, não faria mal nenhum.