Maracatu: Táticas de criatividade e sobrevivência

Por Gil Brandão


Domingo de Carnaval! Diante dos espectadores que lotam calçadas e arquibancadas passa o cortejo do maracatu com todas as suas personagens-símbolos, manifestando a beleza, imponência e criatividade expressa nos múltiplos elemento

Para além do glamour e do luxo da Corte com suas figuras simbólicas da realeza tisnadas, no corpo da cidade, em diversos lugares, vários deles em condições precárias, sobrevivem impetuosamente os maracatus. Localizam-se em casas, galpões, barracos, calçadas, terreiros e ruas, lugares múltiplos onde se pratica, se inventa e reinventa-se a prática. Alguns deles já com toda uma representatividade histórica na cultura Carnavalesca: Az de Ouro, Rei de Paus e Vozes da África.


 


O ápice de suas apresentações acontece no Carnaval, contudo, durante o ano, para garantirem alguns poucos recursos, apresentam-se em centros culturais, escolas, além de festivais regionais, nacionais ou internacionais, na perspectiva de construir a visibilidade e dinamizar a produção, como aconteceu com o Vozes da África que já excursionou pela França, Bélgica e Finlândia.


 


Hoje temos uma multiplicação significativa da prática, expressa na geografia da cidade, com onze agremiações em plena atividade: Az de Ouro; Jardim América, Rei de Paus; Joaquim Távora, Vozes da África; Centro, Nação Baobab; Bela Vista, Nação Zumbi; Serrinha, Nação Kizumba;Parque Araxá, Nação Iracema; Jardim Iracema, Nação Fortaleza; Montese, Nação Solar; Benfica, Axé de Oxóssi; Antonio Bezerra e Girassol; Rosalina. Esses maracatus, nos dias de ensaios, se ampliam, pois, para eles, convergem moradores de outros bairros, provocando, então, um encontro coletivo onde se partilham saberes múltiplos. A respectiva ação espontânea configura um grupo social, de classes heterogêneas, que foge dos parâmetros rígidos das estratégias de poder.


 


 


A vida dessas práticas é motivada sobretudo pelos compromissos afetivo e social dos brincantes, que, meses antes do Carnaval, cruzam os barracões, gerando uma trama significativa de conhecimentos. São músicos-batuqueiros como Descartes Gadelha que, numa verdadeira cumplicidade e paixão pelo fazer, espontaneamente educa homens e mulheres, adultos, adolescentes e crianças para tornar preciso o ritmo, o tom do batuque, que impulsiona a dança. Juntam-se a essa comunidade dançarinos que se distribuem em várias alas: índios, negras, orixás e corte e figurinistas- artesãos que se dedicam a criar, construir e bordar os figurinos, como Jussier, rainha do Vozes da África que comanda a feitura das indumentárias da Corte, cujo trabalho exige concentração no corte do tecido, no desenho da fantasia da rainha, do rei, das princesas, príncipes, negras e orixás. A dedicação das costureiras como Dona Fátima Marcelino, que durante muitos anos fez incansavelmente as fantasias do Az de Ouro, e que, com muita determinação junto à comunidade do Mercado Velho, criou o Axé de Oxóssi, sendo hoje a presidente do seu próprio maracatu.


 


Os sujeitos desse fazer são em sua maioria pessoas simples, de uma classe social economicamente subalterna, que driblam as adversidades sociais e financeiras, atuam construindo táticas eminentemente criativas ao levar para a rua uma produção, de encher os olhos, que gera uma forte empatia com o público, que canta, dança, torce e aplaude o cortejo, no rito de passagem. Suas maneiras de fazer impulsionam a atividade dos maracatus a resistir e a viver na cidade.


 


Cada maracatu concretiza um projeto de multiplicação nos bairros, fazem da sede, do barracão a expressão de uma cartografia simbólica, onde os bairros não se separam, mas se cruzam, se encontram para gerar a sobrevivência da prática, como faz o Vozes da África, através de Ramira Pereira, moradora do Tancredo Neves, que articula junto aos filhos, netos e a comunidade a participação nos ensaios. Lugares onde pessoas anônimas, longe das lentes da mídia e das estratégias de poder – num exercício espontâneo, árduo, mas motivadas pelo prazer e a pulsão criadora -, fazem a produção, a encenação tomar corpo e vida no palco do Carnaval.


 


Tornar vivo e atuante um maracatu é uma atividade hercúlea, exigindo dos produtores-criadores e dos brincantes táticas de sobrevivência face às adversidades econômicas, visto que os recursos públicos, ainda que tenham se ampliado na atual gestão municipal, não dão conta da complexa estrutura de montagem, que, muitas vezes, chega às agremiações na véspera do Carnaval. As fantasias, sobretudo as da Corte, exigem muito esmero e tempo na elaboração. A manutenção dos instrumentos para o batuque, além de diversos outros elementos que compõem a estrutura cênica, são construídas a ferro, fogo, suor e força.


 


Para garantir essa sobrevivência as Nações fazem bingos, feijoadas, shows,vendem camisetas,CD, quadros etc etc, na perspectiva de demarcar seu espaço e oferecer o melhor no cortejo. Os brincantes espontaneamente se doam, a maioria deles sem nenhuma remuneração, deslocando-se de seus bairros para chegar a outras localidades, tendo como impulso o entusiasmo, a vontade de colaborar, de expressar a arte e a magia que emanam da prática.


 


Faz-se necessário, numa perspectiva de disseminação de todos esses saberes, uma política cultural municipal e estadual específica para a efetiva manutenção desses grupos sociais que poderiam, ao longo do ano, fazer das suas sedes um lugar de criação, através de oficinas permanentes de música, dança, artes plásticas, reciclagem de material, possibilitando, assim, um salutar encontro do maracatu com a comunidade.


 


 


Gil Brandão é Mestrando em História Social – UFC e Professor de Teoria e Prática Teatral – UFC