“Henfil não fugia das coisas”, diz seu filho Ivan

Numa entrevista publicada pelo jornal O Povo, Ivan Cosenza de Souza, filho do cartunista Henfil, fala sobre a trajetória de seu pai, seu trabalho inovador e ousado, sua postura crítica e a contribuição que deu para a luta contra a ditadura militar e redem

Nascido em Ribeirão das Neves, interior de Minas Gerais, Henrique de Souza Filho, o Henriquinho, não sabia nem o nome da doença que o afetava e que fazia com que sangrasse sem parar ao mínimo corte. Henrique e seus irmãos Herbert e Francisco Mário eram hemofílicos, doença genética que impede a coagulação do sangue. O que era passado para Henriquinho é que ele iria morrer logo. Essa impressão o acompanhou a vida toda e o fez criar suas tirinhas e personagens sem parar, sem perder tempo.


 


Henriquinho torna-se Henfil e em 1964, começa a desenhar na revista Alterosa, em Belo Horizonte. Logo, começou a trabalhar em outros veículos, tornando-se nacionalmente conhecido em 1969, trabalhando no Jornal do Brasil e no Pasquim. Também fez televisão, cinema, animação… só faltou o rádio. O barbudo Henfil (que só era barbudo para não correr o risco de se cortar com a lâmina) criou personagens que atacavam ferozmente a ditadura, a esquerda e tudo o que não fosse verdadeiro com o que acreditava.


 


Com o sol forte na cabeça e os pés fincados na areia quente, surgiram a Graúna, representação de todas as mulheres, o Capitão Zeferino e o bode Orelana, intelectual que come os livros e cuja sabedoria só dura o tempo da digestão. Os três criticavam severamente quem quer que fosse o responsável por aquela miséria.


 


O fradim Baixim, que adorava implicar com os enlevos do Cumprido, também não media palavras e criou um ícone: o top, top, top, gesto que fazia quando algo dava errado para alguém. Henfil teve a idéia de criar os fradins ao ver, num convento, uma fila de frades e os dois últimos lhe chamaram a atenção. Um era bem alto e magro, com olhar severo e sério. O último era um baixinho, gordinho, que escondia na manga do hábito um pão. Ele olhou para Henfil com um olhar cúmplice de quem está fazendo traquinagem.


 


Dia quatro de fevereiro, Henfil faria 64 anos. Ontem, fez 20 anos que Henfil deixou a vida. A capa do Pasquim da época foi clara: Henfil assassinado. Suspeito: ministro da Saúde. Por causa da hemofilia, ele tinha que fazer várias transfusões de sangue. Acabou contraindo Aids, assim como seus irmãos, o sociólogo Betinho e o músico Chico Mário. O sangue das transfusões ainda não era testado para saber se era saudável.


 


Em homenagem a Henfil, seu único filho, o produtor cultural Ivan Cosenza de Souza está preparando uma série de exposições pelo país sobre o pai. Ivan possui cerca de 15.000 originais dos desenhos de Henfil e também está selecionando quais irão para uma antologia que deve ser lançada ainda este ano. Nesta entrevista, Ivan fala sobre a importância política de Henfil e a preparação da exposição que percorrerá várias cidades brasileiras.


 



Há 44 anos Henfil estreou como cartunista, mas seus desenhos continuam tão atuais como se tivessem sido traçados ontem. ''Morro, mas meu desenho fica'', disse ele em entrevistas. Seu desenho continua tão forte, tão presente, que às vezes a dúvida paira. Será que Henfil morreu mesmo?


 



O que você está preparando para homenagear Henfil, aos 20 anos de sua morte?


Vou fazer dois anos de homenagens. Este ano são os 20 anos de morte dele e ano que vem ele estaria completando 65 anos. Os projetos que estou fazendo são exposições grandes nas capitais, como a que teve aqui no Rio, e. nas cidades do interior, que acho muito importante pois não são lugares que recebem muitos eventos. Vou relançar o livro Henfil na China, fazer um catálogo, um apanhado da vida e da obra dele que estou selecionando.


 



Nos últimos meses, com os efeitos da Aids, como ele se sentia, tinha medo de morrer?


Esse processo de morte dele foi mais de ano, o organismo lutando para sobreviver. No início da década de 80, quando surgiram os primeiros anúncios da Aids nos jornais, epidemia, aquela coisa toda, ele chegou a mostrar no jornal e dizer ''olha, dessa aqui eu não escapo'', por causa da hemofilia, ele sabia que precisava toda hora de transplante de sangue e que não havia controle, aqui no Brasil não era feito teste nenhum no sangue.


 


 


As tirinhas do Henfil tinham um humor muito ácido, longe do chamado politicamente correto. Por exemplo, o Baixim chamava homossexuais de bicha, veado, boneca… Você acha que se ele estivesse vivo, teria mudado o esse modo de fazer humor?


Não, com certeza não. Porque ele sempre foi contra toda essa coisa, essa hipocrisia do politicamente correto, essa coisa de mudar o que a pessoa é para falar dela de uma maneira mais suave, como falar que uma pessoa com cento e tantos quilos é fortinha e não é. Ele sempre foi a favor das pessoas se assumirem como são e não ficava rodeando. Tanto que ele respeitava os contatos políticos que ele tinha, mesmo tendo uma posição diferente da dele, se eles assumissem o que eram. Quem não fala o que pensa acaba sendo falso e ele era muito verdadeiro e isso era o que faz o humor dele ser muito apreciado. Ele não era aquela pessoa que inventava palavras para suavizar. Por ele ser muito direto, verdadeiro, ele acabava sendo muito respeitado, admirado.


 



Qual o seu personagem preferido?


Ele fazia um humor muito ágil, rápido, por causa dessa doença dele, que era passado para ele que essas pessoas morreriam logo. Então ele sempre tinha muita pressa de fazer as coisas e fazia muita coisa. Então, nesse meio de personagens, eu gosto da turma da caatinga, dos fradins, dos personagens de futebol, do Urubu, que foi ele que criou, chamar o Flamengo de urubu (Henfil era flamenguista). São os três mais marcantes, mas é difícil, tem tanta coisa que ele fazia. Ele foi um dos precursores do artista multimídia. Ele trabalhou em jornais, revistas, fazia tirinhas, crônicas, escreveu livros, charges esportivas, políticas, fez cinema, fez teatro, fez televisão, fez animação. A única coisa que ele não fez foi rádio. Ele é um dos artistas mais completos que o Brasil já teve.


 



No Diário de um Cucaracha, ele critica a sociedade americana, que ela tinha liberdade, mas era robotizada, as pessoas eram autônamos. Em Henfil na China, ele criticava os chineses, que apesar de terem uma vida bacana, não tinham liberdade e não criavam, o governo que pensava por eles. Como é que seria então, para o Henfil, uma sociedade ideal?


Acho que sociedade perfeita não existe, tem que ir se adaptando às coisas. Ele criticava muito a direita, a ditadura e mais ainda a esquerda. E foi por isso mesmo que ele escapou mais da censura. Criticar quem devia estar lutando pela liberdade. Mesmo com a doença dele, ele dava a cara pra bater. Um dos piores defeitos para ele era a covardia. As críticas eram mais fortes com o Flamengo, com a esquerda. Aquilo em que você mais acredita é aquilo que você vai mais cuidar. Eu brinco muito com essa relação, como um pai faz com o filho. O filho não pode errar. Você cuida e se preocupa mais com o que você gosta e não quer ver errar.


 



As tirinhas feitas pelo Henfil são de uma atualidade impressionante. Você acha que é mais mérito do talento de Henfil ou mais ''mérito'' da sociedade que não muda?


Eu acho que é mais mérito dele, porque você vê por aí alguns cartunistas que não são assim. Tem uma coisa que é característica da obra dele, que era um cartum engajado. Ele sempre estava dentro dos movimentos sociais, lutando, e ele sempre falava que não adiantava criticar sem participar. É fácil você sentar na frente duma prancheta, fazer a tira, mandar pro jornal e no outro dia estar na prancheta de novo. E ele ia para passeata, mesmo correndo risco, sabendo que se levasse um tiro, sofresse uma agressão com um cassetete, uma bomba, ele podia morrer. Mesmo assim ele ia, não fugia das coisas.


 



No livro Diretas Já, ele conta uma conversa que teve com Teotônio Vilela (político nordestino), em que disse que no Brasil não há heróis, há mártires. Você considera o Henfil um herói ou um mártir?


Acho que um pouco dos dois. Eu acho que ele teve essa coisa de acabar morrendo vítima dessas desigualdades, do descaso com a saúde, o que também acabou transformando o país, pois foi o ponto que fez acabar com o comércio de sangue, a se ter maior consciência do controle, as campanhas… E em vida e ele foi considerado por muita gente um herói, pelos avanços que ele ajudou o país a conquistar. Poucos políticos conseguiram fazer pelo país tanto quanto ele fez. Porque foi uma pessoa diretamente responsável, ligada a campanha da anistia, a vitória das Diretas Já, a criação do bordão Diretas Já, as mobilizações, uma pessoa que influiu na história do país. Se ele não tivesse existido, ela teria sido outra. As coisas iam acontecer, mas ele era aquela pessoa que dava aquela alavancada, de dar o primeiro passo para que as outras tivessem a coragem de fazer. Ironicamente, apesar dele ter sido o responsável pela campanha das Diretas do jeito que aconteceu, ele nunca votou para presidente. Ele deixou essa herança pra gente, para mim, para nossos filhos, para todos aqueles que vieram depois.


 


 



Fonte: O Povo