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Cardeal gera polêmica ao duvidar de escravidão na Bolívia

“Ver para crer”, disse o cardeal Julio Terrazas em seu sermão dominical, o que gerou polêmica na Bolívia sobre a existência ou não de uma população guarani vivendo em condições de escravidão, quando foi exatamente a Igreja Católica uma das primeiras in

A diretora da Unidade de Direitos Fundamentais do Ministério do Trabalho, Ruth Barrón, é enfática ao responder que sim, efetivamente existem comunidades inteiras em cativeiro, em fazendas localizadas na região do Chaco. Estima-se que existam entre cinco mil e sete mil famílias cativas, em 16 municípios distribuídos pelos departamentos de Santa Cruz, na província de Cordillera; Chuquisaca, nas províncias de Luis Calvo e Hernando Siles; e em Tarija, nas províncias de Gran Chaco e O'Connor.



Nesta região, que se estende por 127.755 quilômetros quadrados, há 299.380 moradores de etnia guarani, de acordo com o Censo de 2001. São perto de 49 mil famílias aglutinadas em 318 comunidades indígenas. Nesse universo, o governo, a defensoria pública e outras organizações constataram a existência de 1.049 famílias que vivem em condição de escravidão, e isso em apenas quatro municípios.



Nos municípios de Lagunillas e Cuevo, da província Cordillera, foram encontradas 20 comunidades cativas, habitadas por 449 famílias. Em Huacareta e Muyupampa, municípios das províncias de Hernando Siles e Luis Calvo, respectivamente, foram descobertas 600 famílias cativas, que formam parte de 24 comunidades. As cifras quanto às demais comunas foram constatadas por organizações não governamentais e ainda não estão comprovadas.



Para estas famílias e para aquelas que vivem em completa dependência de seus patrões, em outubro do ano passado foi promulgado pelo governo central boliviano o decreto supremo 29.292, que estabeleceu um Conselho Interministerial para a erradicação da servidão, do trabalho forçado e de formas análogas de abuso dos trabalhadores. Foi também aprovado e colocado em execução o Plano Interministerial Transitório 2007/8 para o Povo Guarani. A Unidade de Direitos Fundamentais foi criada para atender à população mais vulnerável na sociedade boliviana: mulheres, meninos e meninas, e indígenas, em razão das recomendações apresentadas ao governo por diferentes organismos nacionais e internacionais, quanto à erradicação do trabalho forçado.



Mais de três décadas de denúncias



As primeiras denúncias de que comunidades inteiras estavam sendo submetidas a trabalho escravo surgiram nos anos 70, apresentadas pela Igreja Católica e pelo Centro de Investigação e Promoção do Campesinato (Cipca), uma entidade criada em 1976. Ambas as instituições começaram a trabalhar com as comunidades livres, que em 1987 fundaram a Assembléia do Povo Guarani.



Na década de 90, com as reformas na constituição política do Estado e sua definição, pela primeira vez, como multiétnico e pluricutural, bem como a promulgação das leis 1.715, do Serviço Nacional de Reforma Agrária, que possibilitou a criação das Terras Comunitárias de Origem, e 1.551, de Participação Popular, que reconheceu as comunidades como Organizações Territoriais de Base, o povo guarani começou a exigir a libertação das comunidades cativas.



As organizações que trabalhavam na região promoveram a compra de terras como estratégia para libertar as comunidades e famílias cativas no Chaco boliviano, já que os latifundiários haviam deslocado e desenraizado os moradores originais, de acordo com um documento da Defensoria do Povo.



E foi exatamente a diocese de Cuevo, em 1997, a primeira a adquirir 6,7 mil hectares, o que permitiu a libertação de 163 famílias de guaranis cativos. No mesmo ano, a Cipca comprou 563 hectares, para 14 grupos familiares, e a Medicus Mundi adquiriu cinco mil hectares, nos quais foram assentadas 186 famílias; entre 2000 e 2001, a mesma ONG adquiriu outros 10,1 mil hectares, para 129 famílias, de acordo com informações da Assembléia do Povo Guarani.



Essas ações, mesmo assim, tiveram efeitos colaterais que foram observados pela Defensoria do Povo e organizações de defesa dos direitos humanos: deixaram impunes os abusos e a violação de direitos cometidas por proprietários de terras e seus prepostos, e não determinaram em definitivo os direitos de propriedade das terras distribuídas. Por falta de saneamento de terras, a compra de terrenos ignorou e desvirtuou os direitos históricos das comunidades guaranis sobre as terras em que viviam há gerações, e famílias tiveram de ser transferidas, o que causou problemas de desenraizamento e separação.



As dúvidas do cardeal



“Com que facilidade a sujeira se espalha entre nós, e nos dizem que existem lugares repletos de escravos; ninguém aceita isso. Que nos mostrem a verdade, que nos digam onde devemos procurá-los. Não é possível que continuemos condenando apenas com slogans, apenas com palavras ofensivas”, declarou o prelado em seu sermão dominical, depois dos confrontos entre pecuaristas do município de Cuevo e indígenas guaranis, no momento em que uma comissão governamental tentava, inutilmente, iniciar o saneamento de terras a fim de verificar a função econômica e social e, caso necessário, executar a reversão da posse de terras em favor do povo guarani.



As afirmações do cardeal mobilizaram o governo, para a apresentação de provas ao representante máximo da Igreja Católica na Bolívia, e também ao Congresso Nacional. Elas também provocaram diversos pronunciamentos de organizações, muitas das quais representativas dos indígenas, como a Assembléia do Povo Guarani; legisladores oposicionistas se manifestaram contra a posição assumida pelo prelado, e até párocos de diferentes locais do Chaco declararam sua surpresa diante das palavras dele, a veículos locais de imprensa.



Por que o cardeal colocaria em dúvida as denúncias e depoimentos do povo guarani? As características do trabalho forçado no Chaco não são iguais à da escravidão que foi abolida na Bolívia em 1831; pelo contrário: se enquadram naquilo que diversas organizações internacionais definiram como formas análogas de escravidão. As famílias guaranis foram submetidas com base em dívidas que não eram capazes de pagar, por pressão psicológica e por gratidão a patrões que lhes forneceram alimentos.



As famílias que têm terras trabalham para grandes produtores rurais praticamente em troca de comida. Alguns dos indígenas recebem salários, de acordo com o que verificou a Defensoria do Povo e também o Ministério do Trabalho. Os homens ganham cerca de US$ 2 ao dia, por uma jornada que pode durar 10 a 12 horas; mulheres recebem US$ 1,30; os velhos ganham US$ 1, e meninas e meninos recebem pagamento de apenas US$ 0,70 por hora.



Mesmo assim, a maioria dos indígenas não recebe pagamento em dinheiro, mas sim em alimentos e roupas que lhes são entregues em forma de adiantamentos de salário e a custo fixado pelos grandes produtores rurais; são eles que preservam as contas, e as dívidas assim contraídas pelos trabalhadores são transmitidas de geração em geração. Barrón menciona igualmente que existem denúncias graves de maus tratos físicos.



A situação das mulheres é ainda mais grave, diz Sonia Brito, presidente da APDDHH, porque elas precisam primeiro cumprir com seus deveres para com os homens da família, de modo que exercitam jornada de trabalho ainda mais longa. E no caso das meninas e jovens, elas são induzidas à prostituição.



Mas caso o cardeal não se deixe convencer por nada disso, deveria designar um representante da Igreja para a Comissão Interministerial que visitará a província de Cordillera, a fim de certificar-se de que existem pessoas vivendo em regime de escravidão em pleno século 21.