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Após 2ª sessão, Comissão prepara julgamento do Araguaia

A Comissão de Anistia já está trabalhando naquele que deverá ser um dos seus mais importantes julgamentos: o dos camponeses perseguidos pela ditadura militar na região do Araguaia durante o cerco aos guerrilheiros do PCdoB que ali atuavam entre o final

Ao todo, existem 240 requerimentos na Comissão ligados às perseguições, mortes e torturas. Destes, 46 estão prontos para serem julgados. Foram ouvidas em dois dias 120 pessoas que já tinham processos em andamento. Na próxima semana, o órgão deverá elaborar um relatório de avaliação da oitiva ocorrida dias 25 e 26, num das cidades-símbolo da guerrilha no sul do Pará, a 540 quilômetros de Belém. As indenizações a serem pagar serão de no máximo R$ 100 mil.


 


O presidente da Comissão, Paulo Abrão Pires Júnior, no entanto, adianta que a avaliação é positiva. “Os depoimentos colhidos desta vez, somados aos 131 colhidos no ano passado, são muito ricos e reveladores de todas as repercussões e traumas na vida pessoal de cada um ao longo do tempo e na própria vida da comunidade”, explicou. “São fatos inimagináveis e que não estão descritos nos livros de história com a riqueza de detalhes que ouvimos”.


 


Um desses fatos é o medo que ainda paira sobre os moradores. Eles receiam falar por conta da influência do ex-capitão do Exército, Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, na região. Infiltrado entre os camponeses estava um de seus supostos capangas, José Maria Alves da Silva, conhecido como Catingueiro. Ao repórter da Folha de S. Paulo enviado ao local, Sérgio Torres, ele disse apenas que também buscava sua indenização. Curiosamente, Catingueiro usava uma camiseta da administração Curió à frente da cidade que leva seu nome, Curionópolis.


 


De acordo com Abrão, “trata-se de requerimentos de anistia que são muito peculiares por duas razões. Primeiro porque não estão disponíveis os documentos oficiais guardados que registram cada ação das Forças Armadas nas diferentes operações de combate à guerrilha. Isso causa enormes dificuldades para fins de instrução dos processos”.


 


Além disso, o presidente da Comissão disse que os requerentes “são pessoas que vivem em situação econômica muito baixa, sem muita noção de seus direitos, sem advogado e que não possuem condições econômicas de irem à Brasília para acompanhar seus processos”. Por isso, salientou, “resolvemos que era preciso que o Ministério da Justiça fosse ao encontro destes cidadãos; era preciso sair dos nossos gabinetes em Brasília e colhermos os fatos na fonte original e primária”.


 


Para dar conta de todos os depoentes presentes no pequeno sítio em São Domingos, onde aconteceu a sessão, a Comissão se dividiu em quatro grupos. Um deles reuniu os casos de mateiros e guias de estradas usados pelo exército para localizar os guerrilheiros. A reunião destes casos justifica-se pelos diversos tipos de mateiros que os conselheiros identificaram, o que influencia a concessão ou não da indenização. Muitos deles foram obrigados a servir os militares e sofreram torturas e prisões arbitrárias pelo fato de conhecerem os guerrilheiros.


 


Outros foram beneficiados, recebendo terras do Incra ou dinheiro; e há aqueles que continuaram servindo aos militares mesmo depois da guerrilha, vigiando a vida dos moradores. O problema é que a maioria deles, por medo ou por conveniência, acaba escondendo informações preciosas até mesmo para a elucidação do paradeiro dos corpos até hoje desaparecidos.


 


Jesus viu a morte de Grabois
Testemunha-chave daqueles tempos é Abel Honorato de Jesus, 64 anos, um dos poucos que não teme falar. O lavrador residia na região da Palestina e ganhava 10 cruzeiros por missão. Ele disse que às vezes ganhava comida e recebeu também um lote de terra de 114 hectares. Naquela época, trabalhava no garimpo.


 


Porém, apesar de ter sido beneficiado, disse que também apanhou muito e foi obrigado a fazer o trabalho. Jesus era peça importante na ação dos militares. Disse que conhecia os guerrilheiros que identificava como sendo Osvaldão, Fogoió, Maurício (Grabois), Aparício, Pedro, Ari e Aragão. “Foi um vizinho que me entregou dizendo que eu os ajudava”, lembra.


 


Em 1971 foi preso. “Não me disseram porque, mas me chamaram de terrorista e me levaram para um entroncamento na Palestina”, recorda. E completa: “atiravam perto dos meus pés só para me assustar. Depois, me bateram”. À noite, uma viatura com militares que ele chama de tenente Ivan e capitão Lima levou-o para Marabá, onde ficou detido por quatro meses. Depois disso, passou a ser usado como guia.


 


Jesus conta que em 25 de dezembro de 1972 viu Maurício Grabois ser morto. “Teve um tiroteio e Amaury, Velho (Maurício), Pedro e Paulo foram mortos”. Segundo ele, os corpos foram carregados de helicóptero. Há versões diferentes para a morte de Grabois. Segundo o jornalista Elio Gaspari, em relato reproduzido no livro “Direito à memória e à justiça” – da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos –, ele poderia ter sido morto sentado numa trilha ou estaria comendo.


 


O mesmo livro também cita que o jornal O Estado de S. Paulo, em outubro de 1982, relatou que Grabois morreu “com um tiro de FAL na cabeça, que lhe arrancou o cérebro, e outro, na perna, que provocou fratura exposta”. Ele disse também ter visto de longe Sônia e Joaquim serem mortos no lugar chamado Chega com Jeito. Para ele, seis guerrilheiros podem estar enterrados perto da base da Bacaba. Ele acha, inclusive, que a ossada de Osvaldão está lá.


 


O camponês relatou também que era bastante próximo de Curió e que trabalhou com ele até 1986, como informante, espionando sindicalistas, líderes políticos e moradores. “Fiz isso como trabalho, mas nunca entreguei ninguém. Apenas contava o que acontecia. Dizia o milagre, mas não o santo”, defende-se.


 



Lições de Cristina
Juarez da Luz é filho de seu José da Luz e foi em seu nome que entrou com processo na Comissão de Anistia. “A única coisa que aprendi a escrever na vida foi meu nome e quem me ensinou foi Cristina”, disse, lembrando com carinho de uma das guerrilheiras mortas no Araguaia. Ele recorda que os soldados muitas vezes ficavam entocados nas moitas ao redor das casas. Um dia, um deles levou seu pai, a quem acusavam de ajudar os “paulistas”. “Ele não foi guia não e foi muito torturado”, esclarece.


 


Luz recordou ainda que os presos – entre eles seu pai – eram obrigados a se levantar cada vez que Curió entrava na cela. “Meu pai não quis, disse que não devia nada para ele e que não ia se levantar coisa nenhuma. Apanhou muito por isso”, lamenta.


 


Já dona Antônia Santos Pereira tem 14 filhos e 71 anos. É viúva de João Pereira Martins, o João “Pipoca”. Por isso, é também conhecida como Antônia “Pipoca”. Segundo ela, numa noite soldados levaram seu marido, que ficou preso por um mês. Mais tarde, foram buscá-lo novamente, agora para ajudá-los a encontrar “o povo da mata”. Seu marido teria indicado aos militares a casa de Pedro, João e Raimundo, que não estavam mais no local. “Ele foi preso de novo por mais quatro meses. Voltou todo rebentado”, disse. Depois disso, o marido foi obrigado a ir à base da Bacaba a cada três meses. “Eles prometeram terra, mas nunca nos deram nada”, ressaltou.


 


Roubado da mãe
Pouco mais de 30 anos separaram Juracy Bezerra Costa, 43 anos, de sua mãe, Maria Bezerra de Oliveira, 78 anos. Ele tinha sete quando, em 1972, foi levado de sua casa por militares armados. Na primeira sessão de Anistia feita na região, Dona Maria contou sua história, sem a companhia do filho, que reencontrou em 2006.


 


Desta vez, Costa esteve na audiência para também fazer o seu relato e contou ao Vermelho que, quando criança, encantou-se com a boa vida prometida pelos militares. “Aí, acabei indo com eles”. Aos poucos, o menino pobre se tornou o xodó dos soldados. “Um dia, fiquei muito doente e fui levado para Fortaleza, para ser tratado”.


 


Acabou sendo criado pelos pais do então tenente Antônio Hercílio de Azevedo Costa, que o tirou de Dona Maria. “Sentia muita falta de minha mãe, mas não me deixavam sair de lá”, lembra. A vontade de saber de sua família foi crescendo. “Mas quando eu perguntava para eles sobre minha mãe, diziam que ela devia estar morta”.


 


Em 1984, o “pai adotivo” morreu e a vida piorou. “Passei a ser maltratado”, conta. Dois anos depois, resolveu sair de casa e procurar a mãe. Foi tentar a vida em Xambioá e, por coincidência, teve contato com uma família que a conhecia. Há dois anos, pôde finalmente rever Dona Maria. Hoje, os dois vivem em São Geraldo. “Fiz calos em meus joelhos rezando para achar meus filhos”, disse a mãe. Miracy, o irmão mais novo – que tinha um ano quando foi levado – ainda não foi achado.


 


* enviada a São Domingos do Araguaia


 


Clique aqui para saber como foi a primeira audiência.