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Jornalismo de ficção e democracia racial: mentiras da Globo

Por se dizerem um grupo de empresas de comunicação que luta pela liberdade de imprensa no Brasil, as Organizações Globo deveriam ser favoráveis ao debate racional. Na prática, evitam o enfrentamento e ridicularizam a luta pela inclusão social. De manei

Em sua nova campanha publicitária, as “Organizações Tabajara” se apresentam como “a única empresa que tem na logomarca uma letra afrodescendente admitida pelo sistema de cotas”. Tamanho impropério fez pairar uma dúvida sobre a expressão “humor inteligente”. Talvez por genialidade, talvez por burrice, as Organizações Tabajara acabam satirizando as Organizações Globo. Uma faz o que a outra finge não fazer: vende produtos obsoletos a pessoas com preguiça de pensar e de agir.


 


As Organizações Globo ora ridicularizam, ora espalham temores do surgimento de um possível ódio racial. Servem-se das falácias de dois extremistas e da inacabada teoria da democracia racial para defender sua política antiinclusão. Usam o cinismo do seu assustador de criancinhas e comentarista oficial, Arnaldo Jabor, para dizer que “somos todos iguais”. Não bastasse mentir em rede nacional, ainda encomendam teses “por atacado” de um sujeito que se tornou um perseguidor voraz da ação afirmativa com recorte racial.


 


Uma religião chamada televisão


 


Ao contrário do que prega Demétrio Magnoli, os intelectuais afrodescendentes (financiados pela Fundação Ford) não dividiram a sociedade brasileira em raças. Eles apenas tiveram sensibilidade e faro científico para perceber que o Brasil está racialmente dividido há mais de 500 anos. Para enxergar isso, não é necessário ser doutor em Geografia Humana pela USP. Qualquer aspirante a militante do Movimento Negro conhece de cor a história da cor no Brasil.


 


Um pesadelo aterroriza a alta cúpula da “Fábrica de Sonhos”. Se aprovado o Estatuto da Igualdade Racial, todas as empresas de comunicação – inclusive as Organizações Globo – serão obrigadas a abrir 20% de seus postos de trabalho aos afrodescendentes. É possível que as telenovelas não comportem tamanha oferta de mão-de-obra. Afinal, não há tantos banheiros a serem lavados nem tanta grama a ser aparada no setor de figuração.


 


Na área do jornalismo, talvez não seja tão difícil substituir o insubstituível William Bonner. O competente Heraldo Pereira (reserva oficial) não seria tão ingênuo e insensato a ponto de comparar o público do telejornal mais assistido do país ao Homer Simpson.


 


Nas palavras do garoto-propaganda e editor do Jornal Nacional, o referido personagem da ficção lhe serve de inspiração na fabricação das notícias que entrarão no ar. Em essência, foi dito que o povo brasileiro deve se sentir honrado por ser comparado a um sujeito que nunca leu um livro e segue cegamente os preceitos de uma religião chamada televisão.


 


Desvario injustificável


 


A prepotência das Organizações Globo atingiu um nível tão “elevado” que o ilusionista e chefe de jornalismo Ali Kamel tenta, por meio de um trabalho especulatório, refutar o que o cineasta Joel Zito Araújo prova cientificamente. O primeiro lançou uma coletânea de artigos publicados no jornal O Globo na qual ataca e tenta desqualificar toda tentativa de se promover a inclusão social de negros por meio da ação afirmativa. Ironicamente, Não Somos Racistas é o título do livro.


 


De maneira desavergonhada, a personagem Gislaine, da telenovela Duas Caras (exibida depois do Jornal Nacional), apareceu mais de uma vez lendo esse mesmo livro. Gislaine, interpretada pela atriz Juliana Alves, é vista como uma jovem politicamente engajada e contrária a qualquer forma de preconceito. Definitivamente, não sabemos onde termina o Jornal Nacional e onde começa a “novela das oito”. É uma fronteira tênue que só pode ser percebida graças aos “reclames do plim-plim”.


 


No campo da Ciência, Joel Zito Araújo – em sua pesquisa de doutorado em Ciências da Comunicação que virou livro – prova (usando estatísticas e fatos concretos) que os negros têm sido ignorados na televisão brasileira ou são retratados de maneira estereotipada. A Negação do Brasil – O Negro na Telenovela Brasileira mostra que, num período de duas décadas, apenas 29 das 98 tramas exibidas possuíam personagens negros.


 


Zito dá destaque a uma das maiores violências morais já sofridas pela população afrodescendente do país. No ano de 1969, a Rede Globo exibiu a telenovela A Cabana do Pai Tomás. O protagonista era um negro interpretado por Sérgio Cardoso, branco de nascimento. Para viver o personagem, o ator e também roteirista (que na época era considerado um dos maiores galãs da telinha) teve seu corpo pintado de tinta preta e usou rolhas para alargar o nariz e o beiço.


 


Na ocasião, Milton Gonçalves, negro de nascimento, já era considerado um dos maiores atores nacionais e (conforme a crítica especializada da época) tinha plenas condições de protagonizar a telenovela. Mesmo que a arte seja um manancial inesgotável para múltiplas interpretações da vida e do mundo, não há licença poética que justifique tamanho desvario.


 


Dignidade e oportunidades


 


Ainda que muitos tentem provar o contrário, as clarividências mostram que as Organizações Globo preferem esconder as mazelas do país a ajudar a eliminá-las, seja na ficção, seja no jornalismo. Quisesse, mobilizaria suas equipes de reportagem para retratar a vida dura dos afrodescendentes que vivem sobre palafitas nos mangues maranhenses.


 


Para citar um exemplo da degradação da vida e do desrespeito aos direitos humanos, o caranguejo come as fezes do homem, que depois come o caranguejo. Tudo isso acontece sob o reinado e descaso de um dos homens mais poderosos da história do Brasil, o coronel e ex-presidente da República e do Senado Federal José Sarney.


 


O Jornal Nacional e os demais veículos de comunicação precisam dizer que mais de 60% da população do estado do Maranhão vive abaixo da linha da pobreza. Ou seja, mais de 3,5 milhões de pessoas precisam enriquecer para chegar a ser pobres. Coincidência ou não, os dados do último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que 72% da população desse estado é afrodescendente.


 


Na região, está concentrado o maior número de comunidades quilombolas do país. Contrariando os interesses dos latifundiários, esses quilombolas podem ser beneficiados pela ação afirmativa que as Organizações Globo e seus sequazes tentam barrar no Congresso Nacional.


 


Não há nada mais anacrônico, nem nada que justifique a existência das capitanias hereditárias e das palafitas no século 21. Ingênuos e astutos de todo o mundo, ouvi: Onde há latifúndio, há miséria!


 


É fundamental que os leigos e os letrados entendam que os defensores da ação afirmativa não reivindicam privilégios. A luta é pela dignidade e pela possibilidade de se poder ter acesso às oportunidades em pé de igualdade. Ação afirmativa não é apenas incluir afrodescendentes no ensino superior e no mercado de trabalho. Ação afirmativa também é matar a fome, o piolho e a lombriga.


 


Ação afirmativa não é a cura para as doenças sociais. Ação afirmativa é terapia paliativa. Tem o mesmo efeito da pinguinha barata que se toma no lugar do café da manhã. Não sara, mas alivia a dor.