Eduardo Guimarães: 'Chega'… de 'Duas Caras'
Não se tem notícia de outra novela da Globo como Duas Caras. A novela inteira tornou-se um pretexto para veicular, através de uma concessão pública, as idiossincrasias político-ideológicas da família Marinho, dona da Globo.
Publicado 26/05/2008 21:03
A emissora nunca tinha enveredado por esse caminho. Claro que num ou noutro programa as teorias político-ideológicas dos detentores da concessão sempre apareceram, seja em telejornais, programas humorísticos ou em qualquer outro. Mas a obra de Aguinaldo Silva tem zero de dramaturgia e cem por cento de tentativa de doutrinação do público.
Minha preocupação com essa novela reside no fato de que, se não houver alguma reação da sociedade, a Globo perderá de vez qualquer pudor em usar um espaço que pertence a todos para difundir as opiniões de alguns.
A trama de Duas Caras apóia-se majoritariamente na venda ao público de uma fantasiosa integração entre negros pobres e brancos ricos que não existe em lugar nenhum deste país, muito menos no Rio, onde se tem uma elite que pode ser qualificada como uma das piores do país, talvez até mais do que a de São Paulo.
No entanto, a novela mostra socialites cariocas freqüentando uma favela, casando-se com favelados negros e até defendendo-lhes os direitos. Os racistas brancos e ricos da trama restringem-se ao advogado Barreto (Stênio Garcia), que, aos poucos, também ele vai deixando de ser racista.
Essa é, sem tirar nem pôr, a teoria do livro do diretor de jornalismo da Globo, Ali Kamel, em seu livro Não Somos Racistas, que, inclusive, foi mostrado num dos capítulos da novela sendo lido pela ex-BBB Juliana Alves, que faz a personagem Gislaine, irmã de Evilázio Caó (Lázaro Ramos); é uma favelada que se opõe frontalmente a políticas como cotas para negros e defende outras teorias sobre racismo ao gosto de Ali Kamel e dos Marinho.
Contudo, não são só as teorias sociológicas da família Marinho que a novela tenta inflar. O autor de Duas Caras, Aguinaldo Silva, mostrou, já nos primeiros capítulos da novela, que pretendia promover acusações contra o governo Lula e o PT. Não foi por outra razão que Clara Becker, ex-esposa de José Dirceu, tornou pública carta enviada ao autor na qual repudiava declarações do novelista de que o vilão de sua nova intriga televisiva, Marconi Ferraço, fora inspirado no ex-ministro chefe da Casa Civil. “Não posso negar que ele tenha me inspirado”, havia dito o novelista.
Mas não ficou por aí. A novela levou ao ar uma paródia do caso do suposto “dossiê” que a grande mídia diz que a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, teria feito contra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo. E, nos últimos dias, trouxe de volta o caso dos “dólares na cueca”, no qual o assessor de um político do PT foi preso num aeroporto com dólares dentro das calças, e o movimento anti-Lula criado no ano passado por ricaços de São Paulo, o tal “Cansei”, que, em Duas Caras, foi chamado de “Chega”.
Obviamente que, diante de questionamentos, tanto a Globo como o autor de Duas Caras tentariam se escudar na boa e velha “liberdade de expressão artística”. Qualquer tentativa de rebelião contra o uso de uma concessão pública, como é a faixa do espectro radioelétrico usada pelas emissoras da Globo para fazer ataques políticos ao governo do país, certamente seria acusada de ímpeto censor etc, etc.
Contudo, o argumento é fraco. Se o objetivo fosse pregar apenas contra a corrupção, Aguinaldo Silva poderia trazer de volta a compra de votos para a reeleição de FHC, por exemplo. Se quisessem um tema mais atual, poderiam pôr em evidência o escandaloso caso Alstom, multinacional que foi denunciada pela imprensa internacional e que está sendo investigada pela justiça européia por subornar políticos do governo de São Paulo, tendo sido doadora de fortunas para campanhas de políticos como Geraldo Alckmin, Gilberto Kassab e José Serra.
O propósito político-partidário de Duas Caras é claro e constitui uma bofetada no rosto da sociedade. A Globo atua sob concessão pública e não pode usar essa concessão para atingir objetivos políticos. Quem, como eu, tem opiniões políticas e ideológicas diferentes, porém, tem que engolir as opiniões dos Marinho e sem esperança de ver as suas representadas numa concessão que pertence a todos os brasileiros.
A meu juízo, esse é um abuso que precisa ser coibido pelo Judiciário brasileiro, a fim de que não se torne prática habitual da emissora carioca e de outras por todo país. Assim sendo, penso que deve ser estudada a possibilidade de uma representação ao Ministério Público Federal contra a novela Duas Caras, para que a instituição investigue se esse mau uso da concessão da Globo realmente está ocorrendo e, se estiver, que a emissora seja punida.