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Uri Avnery: 'Fugir, avançando'

Os alemães dizem “die Flucht nach vorne” – fuga adiante, fugir para a frente, fugir avançando. Em situação desesperada, ataque! Em vez de bater em retirada, avance! Não havendo saída possível, atire às cegas e vá em frente! O método foi bem-sucedido em

Hoje, Ehud Olmert está usando o mesmo método. Sua situação é desesperada. Muitos, em Israel, não duvidam de que tenha recebido grandes envelopes recheados de dólares. O Procurador Geral pode indiciá-lo a qualquer momento – e o indiciamento o obrigará a renunciar.


 


E, atenção, pasmem! No momento mais crítico, na hora zero, segundos antes de que venham à tona os detalhes mais escandalosos, aparece um comunicado conjunto, emitido ao mesmo tempo em Jerusalém, Damasco e Ancara, pelo qual se anuncia o início de negociações de paz entre Israel e Síria, com a Turquia como mediadora. As conversações basear-se-ão nos princípios da Conferência de Madri, de 1991 – o que implica devolver as colinas de Golam.


 


UAU!!!


 


Também nisto, Olmert mostra-se aplicado aluno de seu antecessor e mestre, Ariel Sharon.


 


Sharon estava afundado até o pescoço em negociatas e corrupção. Numa destas negociatas, o chamado “Caso da ilha grega”, um milionário israelense, David Appel, pagou somas astronômicas ao filho de Sharon, um garoto, por “serviços de assessoria”. Também daquela vez, todos supunham que o indiciamento viria, que o Procurador Geral não teria como evitá-lo. 


 


A resposta de Sharon foi obra de gênio: a Separação. Separou-se da Faixa de Gaza. Separou-se do Procurador Geral.


 


Foi operação gigantesca. Uma performance minuciosamente, melodramaticamente organizada até os mínimos detalhes. E as colônias de Gush Katif vieram abaixo. Em operação conjunta de várias divisões do Exército e das forças policiais – a mesma polícia da qual se esperava que investigasse os negócios da família Sharon – viu-se ali uma missão nacional de tirar o fôlego. O campo da paz, evidentemente, apoiou a evacuação das colônias. E nunca mais ninguém falou de corrupção e corruptos.


 


A separação, que foi pensada e executada sem qualquer consulta aos palestinos, transformou toda a Faixa de Gaza em bomba prestes a explodir – e, hoje, Ehud Olmert está tendo de negociar um cessar-fogo. Para Sharon, foi sucesso total. Não tivesse sofrido um derrame, ainda seria Primeiro-ministro, até hoje.


 


Olmert aprendeu a lição.


 


Estetas e puristas exclamarão: não pode ser verdade! Os israelenses não aceitariam truque tão sujo! Não podemos aceitar uma paz concebida em pecado!


 


Talvez o problema esteja no meu sentido estético, que pode andar atrapalhado. Porque aceito hoje qualquer paz, ainda que venha de um líder totalmente corrompido, de Satã em pessoa. Se a corrupção leva um político a agir para salvar centenas e milhares de vidas humana dos dois lados – por mim, está OK. Friedrich Hegel, o filósofo, não falou da “astúcia da razão”?


 


A Bíblia conta que quando o exército de Damasco sitiava Samaria, capital do Reino de Israel, quatro leprosos trouxeram a notícia de que os inimigos haviam fugido (Segundo livro dos reis, 7). Raquel, poetisa hebréia, escreveu, sobre esta história, que não gostara de receber boas novas, de leprosos. Bom, eu não me importo. 


 


A sabedoria convencional ensina que, para fazer a paz, é indispensável um líder forte. Agora, pelo visto, estamos aprendendo que o contrário também pode dar certo: um líder fraco, naufragado em problemas, cujo mandato pode ser interrompido a qualquer momento, e que governa apoiado numa coalizão que tem pés de barro, um líder que nada tem a perder – este líder também pode arriscar tudo para fazer a paz.


 


Deste ponto em diante, o enredo pode tomar vários diferentes rumos.


 


A primeira possibilidade é que tudo não passe de “boatos” – termo que é hoje, na prática, quase o sobrenome de Olmert. Ele esticará as negociações, como goma de mascar, como tem feito com os palestinos, e esperará que a tempestade passe.


 


Não será fácil, para Olmert, adotar a solução de nada resolver, porque desta vez a Turquia participa do jogo. Até Olmert consegue entender que será perfeita tolice irritar os turcos, os quais estão apostando o próprio prestígio nacional nesta mediação. A Turquia é parceira importante do establishment de segurança de Israel.


 


Saia daí o que sair, o fato de Olmert ter concordado em iniciar negociações que considerem a devolução de todo o Golan é importante passo adiante. Surgido agora, depois do que fizeram Yitzhak Rabin, Binyamin Netanyahu e Ehud Barak, define uma linha na qual não há retrocesso possível.


 


Segunda possibilidade: é possível que Olmert faça o que diz que fará. Por razões suas, ele agirá “de boa fé” na condução das negociações, como parece que fez, esta semana, e pode conseguir um acordo. Em todo o país haverá campanhas contra ele. O Parlamento rachará ao meio, serão convocadas novas eleições, Olmert outra vez aparecerá como cabeça de chapa na lista eleitoral do Partido Kadima e vencerá, como o pacificador.


 


Ou, alternativamente, Olmert perderá as eleições. Ainda assim sairá de cena por uma causa honrada; não demitido como corrupto mas, sim, como sacrificado no altar da paz.  


 


Outra possibilidade é que o Procurador Geral o indicie, apesar de tudo. Neste caso, terá de renunciar e voltará para casa de cabeça erguida, como líder que propôs este passo histórico. O Procurador Geral ficará com a imagem de sabotador da causa da paz ou, como também pode acontecer, será estigmatizado como causador de outra guerra.


 


Cabe ainda uma pergunta: se Olmert decidiu mesmo “fugir para a frente”, por que foge para uma frente de paz, não para uma frente de guerra? Afinal, quase sempre acontece: líderes que sintam a corda no pescoço, muitas vezes optam por iniciar alguma pequena (eventualmente, alguma grande) guerra.  Nada como a guerra para fazer não ver os problemas que haja; e inventar guerras é quase sempre iniciativa mais popular, pelo menos no começo, do que construir a paz.


 


Também aqui, há várias possibilidades:


 


Primeira: como Paulo, Olmert teve uma revelação e converteu-se, de fato, em homem da paz. O demagogo nacionalista amadureceu e hoje consegue ver que a paz (não a guerra) é o que mais atende ao interesse nacional de Israel. Os mais cínicos já estarão rindo, aqui, neste ponto da frase. Mas… já aconteceram eventos muito espantosos, na estrada de Damasco.


 


Segunda: Olmert acredita que o público israelense prefere a paz com a Síria à guerra contra a Síria. Neste caso, ele pode tentar obter alguma popularidade, mostrando-se como agente da paz. (Acho que esta possibilidade é a que tem mais chances.)


 


Terceira: Olmert sabe que todos os chefes do Establishment de Segurança em Israel (com a notável exceção do chefe do Mossad) apóiam a paz com a Síria, motivados pelo mais gélido cálculo estratégico. Aos olhos do Estado-maior do exército de Israel, perder as “colinas do Golan” é preço razoável a pagar em troca de livrar a Síria, do Iran, e reduzir o apoio que o Iran dá ao Hezbolá e ao Hamás, sobretudo se houver um exército internacional estacionado lá, depois de as colinas serem convertidas em “colinas da Síria”. 


 


A Síria é país sunita, embora dirigida por membros da pequena seita alauíta, mais próxima dos xiitas. (Os alauítas são assim denominados por derivação do nome de Ali, genro do Profeta, a quem os xiitas consideram Seu herdeiro por pleno direito.) A aliança entre a Síria sunita secular e o Iran xiita ortodoxo é um casamento de conveniência, sem fundamento ideológico. A aliança com o Hezbolá xiita também se baseia em interesses: se a Síria não atacar Israel para reaver o Golan, Israel apoiará o Hezbolá, na posição de 'substituto' da Síria.


 


Tudo isto acontece sem os EUA. Também aí há precedentes: a iniciativa de Sadat, em 1977, foi amadurecida às costas dos EUA (como contou-me, tempos depois, o então embaixador norte-americano no Cairo). A iniciativa de Oslo também amadureceu sem participação dos EUA.


 


Até há pouco tempo, os EUA opunham-se a qualquer aquecimento nas relações Israel-Síria, e, mesmo hoje, mostram desconfiança. No modo cow-boy de ver o mundo, de George Bush, a Síria pertence ao “eixo do mal” e deve ser isolada.


 


Tudo isto traz farinha para o moinho de John Mearsheimer e Stephen Walt, os dois professores norte-americanos que visitarão Israel em junho. Em seu livro, provocativo, ambos investem na idéia de que o lobby israelense domina totalmente a política externa dos EUA. Dados os novos desenvolvimentos, parece, sim, que Washington está-se curvando aos interesses de Israel.


 


Na visita que fez a Jerusalém há alguns dias, Bush discursou sobre não conversar com os inimigos. A frase foi interpretada como dirigida contra Barack Obama, que anunciara a disposição de conversar com líderes iranianos. É possível que Olmert já esteja pondo suas fichas na possibilidade de que Obama chegue à Casa Branca.


 


Mas Bush ainda não está acabado. Ainda tem oito meses de governo e pode, também, chegar à conclusão de que deva “fugir, avançando”. Neste caso, significa: “atacando o Iran”.


 


Como tudo isto afetará a mãe de todos os problemas, o coração do conflito Israel-árabes: a questão da Palestina?


 


Menachem Begin fez a paz em separado com o Egito e devolveu toda a península do Sinai, para concentrar-se na guerra contra os palestinos. Não há dúvidas de que Begin estava pronto para fazer o mesmo, também no front sírio. Considerado o mapa usado por Vladimir (Ze'ev) Jabotinsky, que Olmert trouxe de volta à cena, o Golan, como o Sinai, não são parte do Israel Eretz[1].


 


Uma paz em separado implica grandes riscos para os palestinos. Se o governo de Israel assinar alguma paz em separado com a Síria (e depois o Líbano), estará em paz com todos os Estados vizinhos. Os palestinos estarão isolados, e o governo de Israel estará em posição de fazer com os palestinos o que bem entenda.


 


Contra esta ameaça, há uma perspectiva positiva: que, depois de o Golan ser evacuado, aumente a pressão, interna e externa, para que se faça uma paz duradoura, também, com os palestinos.


 


Os colonos do Golan são muito, muito mais populares em Israel que os da Cisjordânia. Enquanto os colonos de Ofra e Hebron são vistos como religiosos fanáticos, cujo comportamento é tido como esquisito e estranho ao caráter dos israelenses, os colonos do Golan são vistos como “gente como a gente”. Tanto mais que foram mandados para lá pelo Partido Trabalhista. Se os colonos do Golan forem evacuados, será muito mais fácil lidar com a multidão de “Judéia e Samaria”.


 


Firmada a paz com todos os Estados árabes, o público israelense poderá sentir-se mais seguro e, assim, mais disposto a assumir os riscos de fazer a paz com o povo palestino.


 


Também mudará o clima internacional. Se a fantasia do “eixo do mal” se for quando se for George Bush, e uma nova liderança nos EUA empreender esforço sério com vistas à paz, o otimismo criará coragem para reerguer sua cabeça tão maltratada. Há quem sonhe com uma parceria entre Barack Obama e Tzipi Livni.


 


Tudo isto ao futuro pertence. Até lá, temos um Olmert muito enfraquecido, carente de alguma iniciativa que lhe dê potência. Na legenda bíblica, o herói Sansão matou um leão jovem e, quando voltou ao local, “parou, porque, na carcaça, havia um enxame de abelhas e havia mel.” Sansão então apresentou um enigma aos filistinos: “da força, brotou a doçura”, e ninguém soube decifrar o sentido de suas palavras (Juízes, 14).


 


Agora, bem podemos perguntar: “E da fraqueza? Brotará da fraqueza, a doçura?”



[1] Israel Eretz é o território que, segundo a Bíblia dos judeus, teria sido dada por Deus ao povo judeu (em http://en.wikipedia.org/wiki/Land_of_Israel).



Uri Avnery é um membro fundador do Gush Shalom  (Bloco da Paz israelense). Enquanto adolescente, Avnery foi um combatente independente no Irgun, a resistência judaica armada, e mais tarde soldado no exército israelita. Também foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Avnery foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Durante a guerra no Líbano em 1982, atravessou as linhas inimigas para se encontrar com Iasser Arafat. Tem sido jornalista desde 1947, foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelenses sobre a Palestina, incluindo My Friend, the Enemy e Two People, Two States.


 


“Escaping Forwards”, 24/5/2008, publicado em Gush Shalom [Grupo da Paz], em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1211665313/.



Tradução de Caia Fittipaldi. Copyleft.



Reprodução autorizada pelo autor e pela tradutora.