Família 'mercantiliza' textos inéditos de Fernando Pessoa
O anúncio de um próximo leilão de uma parte inédita da obra de Fernando Pessoa (1888-1935), em poder da família do poeta, provocou a reação do Estado português, que tenta evitar que o legado do escritor acabe disperso em mãos privadas e fora do país. Para
Publicado 18/06/2008 16:16
Entre os textos inéditos, destaca-se o volumoso “dossiê Crowley”, que reúne toda a documentação sobre o relacionamento que Pessoa manteve com o mago inglês Alistair Crowley (1875-1947), assim como manuscritos e exemplares das revistas Orpheu, Contemporânea e Sudoeste — que pertenceram ao criador dos heterônimos.
O jornal Público revelou a notícia na quinta-feira, véspera do 120º aniversário do nascimento do poeta, que Portugal comemorou com diversos atos e a publicação de novos livros sobre Pessoa. O leilão — sob responsabilidade da firma Potasio 4 de Lisboa — de um terço do legado pessoano nas mãos dos herdeiros reabriu o velho debate sobre o direito e a capacidade do Estado de impedir a saída do país de bens que podem ser considerados patrimônio cultural.
O valor do dossiê Crowley é incalculável, e sua possível venda já despertou o interesse de poderosos colecionadores britânicos e americanos. A correspondência que Pessoa manteve com o astrólogo e ocultista é volumosa. A esses textos devem-se acrescentar centenas de páginas para uma novela que nunca veio à luz, sobre o suposto suicídio de Crowley, que teria como título Boca do Inferno — o nome de um penhasco perto de Cascais onde o mar costuma se enfurecer.
Crowley realizou uma viagem a Lisboa em 1930 e no final de outubro foi denunciado seu desaparecimento. Sua cigarreira foi encontrada no alto da Boca do Inferno com uma nota manuscrita que parecia a despedida de um suicida. Afinal foi tudo uma farsa, mas a história deixou um rastro de suposições sobre a relação que Pessoa manteve com o astrólogo inglês, que se transformou em figura cultuada em algumas universidades da Grã-Bretanha, Estados Unidos e Itália.
Segundo Jerónimo Pizarro, pesquisador colombiano que faz parte de uma equipe que prepara uma edição crítica da obra de Pessoa, o leilão que se prepara para outubro próximo poderia alcançar preços astronômicos. Se as cifras dispararem, é muito difícil que o Estado português possa competir com os particulares que irão à venda. O diretor da Biblioteca Nacional, Jorge Couto, está negociando com os herdeiros algumas propostas.
A venda para o Estado de todo o acervo de Pessoa está descartada, já que seus sobrinhos Manuel Nogueira e Miguel Rosa só estão dispostos a vender peça por peça. A família se nega redondamente a dar declarações. O proprietário da casa de leilões P 4, Luis Trindade, recentemente levou a remate o manuscrito Indícios de Ouro e vários cadernos de Mario de Sá Carneiro que estavam em poder da família Pessoa. A Biblioteca Nacional pagou por toda essa obra 30 mil euros
Inês Pedrosa, diretora da Casa Fernando Pessoa, considera que o governo português tem a obrigação de salvaguardar o patrimônio do poeta. É a mesma opinião de Perfecto Cuadrado, tradutor do Livro do Desassossego, editado pela El Acantilado. “Seria bom que todo o acervo pessoano ficasse junto. A dispersão dificultaria uma edição séria do autor”, salienta.
Cuadrado concorda com Paulo Aragão, do gabinete jurídico da Biblioteca Nacional, no sentido de que é preciso estabelecer mecanismos para que o patrimônio nacional fique no país. Segundo a lei orgânica portuguesa de 2007, a Biblioteca Nacional pode autorizar ou impedir uma transação para o estrangeiro de manuscritos de valor patrimonial.
Fonte: El País