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O destino dos meninos que eternizaram 'Capitães da Areia'

Jean Carlos Rodrigues já tinha 13 anos e não sabia ler em 1988. Sobrevivente da enchente de verão que destruiu sua casa no Morro do Cantagalo e abandonado pela mãe, conseguiu escrever sua história de uma forma diferente. Ao lado de André Gonçalves, então

Com a ajuda de uma dezena de garotos também saídos de comunidades, Jean tentava decorar textos e passou o final de 88 mergulhado na realidade que conhecia bem: a dos meninos de rua para a minissérie Capitães da Areia, que seria exibida na televisão em 1989 pela Band.


 


Vinte anos depois, como os personagens do livro de Jorge Amado, de 1937, que já passou de 120 edições em português, foi publicado em mais de 15 países, vendeu cinco milhões de exemplares e terá nova versão no cinema, Jean e André se encontram para contar o resto de suas histórias. As areias são do Arpoador, não mais as da Bahia, em que a gangue de meninos de rua do livro assaltava, vivia os primeiros amores e corria da polícia.


 


Sandro, ou melhor, Alessandro Davi França, que fez o Barandão e acabou envolvido com o tráfico de drogas na Vila do João, não sobreviveu para lembrar do grupo de aspirantes que revirou um hotel de luxo na Bahia nas primeiras gravações. “O Sandro desistiu. E acabou sendo assassinado”, conta André, 32 anos, que o levou para a série e, hoje, entre altos e baixos, teve três filhos com atrizes diferentes, conquistou popularidade no reality show Casa dos Artistas e tem personagem indiano garantido em Caminho das Índias, próxima novela das 21h da Globo. “Eu perdi a minha rua inteira. Todos assassinados. Mas comecei a trabalhar aos 7 anos. Minha família nunca optou pelo ócio”, diz.


 


No Arpoador,Jean, o Dedinho da série, e André, o Boa Vida, ensaiam timidamente a capoeira aprendida para a TV e brincam: “Já podemos ser generais pela idade, né?” É na praia que toda manhã Jean comanda a Escolinha Surfe e Glória, com crianças carentes do Cantagalo e da Ladeira dos Tabajaras. Quem pode pagar a aula, banca a de quem não pode. Ele jura colocar qualquer um sobre a prancha na primeira aula. “Até o André está surfando”, ri. E explica: “Tento promover a integração dos meninos de rua. Eu matava muita aula. Mas exijo que os meninos estudem”, diz ele.


 


Medo do novo Pixote


 


O maior medo de Walter Lima Jr., diretor da minissérie, e Roberto Bomtempo, que preparou e achou os meninos nas comunidades, era justamente que eles repetissem a trajetória de Fernando Ramos da Silva, protagonista do filme Pixote, a Lei do Mais Fraco, morto em 1987 a tiros pela polícia. Mas Walter diz que não teve como custear estudos ou moradia como o diretor Walter Salles fez com Vinícius de Oliveira, de Central do Brasil. “É preciso ser dono do Unibanco para fazer isso. Mas, se puder, chamo para fazer um filme meu ou um curso”, desabafa.


 


Com o dinheiro do cachê, Sandro queria fazer a laje na casa da mãe, na Vila do João. “Nós poderíamos ter sido a ponte que ele atravessaria para outro lugar. Mas ele não atravessou”, lamenta Walter.


 


Como o baiano Leandro Reis, o protagonista Pedro Bala, Paulo Hamilton, 36 anos, era o único carioca de classe média do elenco: “Eu pensando na bicicleta que ia comprar, e o Sandro na laje da mãe”. Morador da Tijuca e Professor na série, o ator, que foi o soldado Paulo de Tropa de Elite, aprendeu a dureza dos meninos de rua se misturando aos da Praça Saens Peña. Numa gravação, na Praça Onze, a surpresa: “Garotos de rua ofereceram cola para a gente cheirar e não perceberam que era filmagem. Estávamos convincentes. Foi tudo ao ar”, relembra.


 


Os irmãos do Vidigal Bruno, 32, e Pablo Sobral, 30, o Sem Pernas e Pirulito da TV, entregam: André era o encapetado. Na Bahia, Pablo, precursor do Nós do Morro que faz a peça Machado a 3×4, irritou-se com as implicâncias do Boa Vida da série e lhe deu com o taco de sinuca no nariz. “Era o mascote contra o atentado”, ri Bruno. “Ele tem o nariz grande e diz que era bonito antes de quebrar”, brinca Pablo, que explica aqueles dias: “Era tudo vivo. Não tinha técnica. A gente dava em cena o que tinha”.


 


Bomtempo corria para conter o grupo. “Roberto abriu a casa e coração para mim”, diz André. “Não tinha santo no grupo”, rebate Bomtempo, 45 anos, um apaixonado por Capitães, que estreou na peça no verão de 1982, com Alexandre Frota e Bianca Byington. Diretor da novela Chamas da Vida, na Record, ele tem três versões do livro autografadas por Jorge Amado. Com os meninos da TV, fez a montagem adolescente de 1992, levada até Portugal. Na viagem, passaram apertos. Sem dinheiro para hotel, faziam shows na rua e dormiam de favor até na sede dos bombeiros.


 


Num bar, em Lisboa, Bruno pediu: “Moço, me dá uma Coca?”. Ao que o dono do local respondeu: “Vá comprar drogas nas favelas do Brasil!”, relembra o ator, aos risos. “A gente era maluco, no bom sentido”, diz Paulo. “Quem faz Capitães vai ficar marcado para sempre”, atesta André.


 


Sucesso adolescente


 


Para tentar dar continuidade ao trabalho dos meninos, Roberto Bomtempo levou Capitães da Areia para o teatro. Ao elenco, se juntaram Jonas Torres e Pedro Vasconcelos, entre outros.


 


No Teatro Vannucci, na Gávea, aprontavam todas com as adolescentes. “A gente comia pão com ovo, trazido de casa, e elas iam pro shopping comer pizza. Era um abismo”, lembra André Gonçalves, que mudou de papel e virou o líder da gangue Pedro Bala. Aos 17 anos, foi expulso da peça. “O sucesso subiu à cabeça dele, tinha feito novela, mandei André embora. Choramos nós dois”, relembra Bomtempo.


 


Neta de Jorge filma história


 


Cecília Amado levou os meninos de rua da Bahia para os anos 50. A neta de Jorge Amado, de 31 anos, filha de Paloma, estréia na direção justamente adaptando um livro do avô: Capitães da Areia, que já foi para as telas numa versão americana de 1971. Ela assina o roteiro com Hilton Lacerda (Baile Perfumado) e a trilha sonora é de Carlinhos Brown.


 


Cecília diz que escolheu esse livro há cinco anos porque o tema continua atual e o texto do avô é bem cinematográfi co. Assistente de direção em filmes como Jogo Subterrâneo e Batismo de Sangue, Cecília fez agora processo de seleção de atores parecido com o de Cidade de Deus. Testou mil crianças de ONGs baianas que atendem comunidades carentes e selecionou 90. Os meninos participaram de oficina e nova peneira. A própria gravação dos testes vai virar documentário.


 


Ela já rodou metade do longa em Salvador e retoma as filmagens em janeiro, nas cenas em que Pedro Bala vai para o reformatório. “Já filmamos as cenas de maior conflito e emoção e os meninos me surpreenderam a cada dia, tanto pelo frescor e pela energia que trouxeram, quanto pela entrega e dedicação”, disse nas filmagens.


 


Fonte: Terra