Integração regional na América do Sul: razões para a incerteza
Alguns anos atrás, as expectativas e o fervor integracionista na região, especialmente no Mercosul, davam origem a prognósticos muito mais auspiciosos que os atuais. Os contextos variaram dramaticamente desde aquela época. Contudo, apesar das circunstâ
Publicado 04/03/2009 14:11
Os atuais dilemas da inserção internacional da América Latina: contextos e iniciativas, aprendizagens e exigências.
Os atuais contextos em matéria internacional não poderiam ser mais convergentes ao demandarem uma ação sólida, em nível nacional e regional, em matéria de uma renovada iniciativa de inserção mundial a partir da América do Sul. Os processos e acontecimentos de autêntica projeção histórica que vemos ocorrer a um ritmo vertiginoso demandam respostas inadiáveis partindo da região. Cabe mencionar alguns deles: a crise financeira internacional, com suas múltiplas consequências de todo tipo e sua previsível sequela de mudanças a nível da arquitetura institucional do sistema (1); o advento de um cenário mais multipolar, porém com a desvantagem de uma crise aguda dos organismos multilaterais; o clima de incerteza geral em nível mundial, no qual às especulações (e também esperanças, que o tempo se encarregará de calibrar em sua justa medida) após o triunfo de Obama nas eleições norte-americanas somam-se os giros imprevistos de uma Rússia refortalecida e com renovadas aspirações de liderança, uma União Européia em recessão, as incógnitas sobre o rumo que seguirão a China e as outras economias fortes da Ásia, com uma exigência de maior protagonismo e participação do grupo de países emergentes; apesar dos reiterados anúncios afirmando o contrário, a Rodada de Doha “resiste a morrer” e o adiamento de sua conclusão atrasa e condiciona muito fortemente outras negociações internacionais extremamente relevantes para a região (2).
Mudanças muito importantes estão se consolidando em diversas áreas das relações internacionais, como a da Cooperação, a dos desafios da mudança climática, a das migrações, a dos direitos humanos, a possibilidade de aplicar de maneira efetiva as convenções multilaterais vinculadas com agendas de abrangência mundial; entre muitas outras.
Seria possível prosseguir com uma longa lista de processos e acontecimentos similares, mas todos eles iriam convergir no mesmo ponto: a renovação radical dos desafios globais impõe uma reinserção internacional potente da região e dos seus países. É nesse contexto desafiador que devemos pesar os impactos das vicissitudes das agendas e processos nacionais nos países sul-americanos, assim como a multiplicidade das propostas de integração e concertação política no continente, com seus diversos formatos e alcances institucionais, ideológicos, comerciais e produtivos.
Os giros dos processos de integração atualmente em curso de implementação na América Latina não podem ser tirados do contexto do que aconteceu nos últimos tempos no panorama político regional. Em primeiro lugar, tomando como exemplo privilegiado o ocorrido no MERCOSUL, já parece evidente a inutilidade de aferrar-se à “ilusão” da “afinidade ideológica” dos governos dos Estados membros como motor de uma transformação positiva dos processos de integração. Para aprofundar esse ponto, como já foi dito, seria necessário questionar, primeiro, se realmente houve “uma virada à esquerda” nos governos da região e, em caso de resposta positiva, analisar com rigor quais são os limites e alcances do seu conteúdo em matéria de políticas específicas (indagando, por exemplo, sobre as diferenças entre esquerdas clássicas, “progressismos”, movimentos nacionais populares, etc.).
Da mesma maneira, precisaríamos saber até que ponto a chegada desses novos governos na região promoveu (direta ou indiretamente), ou pelo menos até que ponto coincidiu com o retorno de interesses setoriais, nacionalistas e políticos, a maioria deles não muito inclinados a fazer apostas, e principalmente sacrifícios, pró-integracionistas. Por outro lado, é pouco discutível a confirmação de que os processos de integração não se consolidam a partir das “afinidades ideológicas” dos governos que os promovem, senão que requerem a solidez de construções institucionais entre diferentes, circunstância, por outro lado, inerente a uma integração entre Estados democráticos.
Outro ponto inescusável do panorama político regional guarda relação com a persistência de situações de instabilidade política, com a continuidade da crise dos partidos e das formas de representação (que vem junto com o auge de movimentismos, personalização da política, perda de prestígio dos Parlamentos e dos partidos, etc.), com a consolidação de mudanças muito fortes nos mapas nacionais e regionais de movimentos e atores sociais. A este quadro político conflitivo e sempre variável é preciso somar a persistência de desigualdades sociais inadmissíveis, em um continente que continua sendo um dos mais desiguais do planeta, mas que há pelo menos 5 anos apresenta níveis de crescimento econômico muito altos, graças a condições externas conjunturalmente favoráveis para a exportação de commodities, que previsivelmente não irão se manter, pelo menos não nestes níveis.
Em um marco que combina insegurança interna com conflitos emergentes de diversa índole, com países que realizam gastos fortíssimos em armamentos e com uma presença militar norte-americana cada vez mais visível (principalmente após a reativação da IV Frota, mas mesmo antes disso), a América Latina, a América do Sul e o próprio MERCOSUL estão vendo como se multiplicam os sinais de sua relativa marginalidade no contexto internacional. Basta consultar indicadores sobre porcentagens de comércio mundial, PIB, fluxos financeiros ou de outra índole para perceber com clareza essa situação. Contudo, em termos de capacidade e eficiência na produção de alimentos agropecuários, de posse de recursos naturais estratégicos (em particular hídricos e energéticos), a situação é muito diferente. Nesse marco, as riquezas e potencialidades da Bacia do Prata, por exemplo, estão longe da marginalidade e já despertam várias cobiças externas.
Os processos de integração e seu balanço incerto
Com o pano de fundo desse panorama político regional, a situação dos processos de integração em nível hemisférico, não apenas na América do Sul, mas, em nível mais amplo, com relação à América Latina, provoca expressões de desencanto ou, pelo menos, de incerteza. Sobre isto, é importante observar alguns processos que se orientam pelo menos em uma destas duas direções.
A Comunidade Andina de Nações (CAN) parece oscilar entre uma lenta agonia e reposicionar-se assumindo flexibilizações que admitam “avanços em duas velocidades” (3). O Chile, por sua vez, tenta perfilar-se, cada vez com menos chances, como a usina do projeto de uma “Liga do Pacífico”, com uma projeção privilegiada para a Ásia e os EUA, ao mesmo tempo que tenta (de maneira mais realista e pragmática) associar-se com o Brasil na promoção do projeto da UNASUL. O SICA e a CARICOM, para além das diferenças entre seus países membros, parecem consolidar sua inserção plena na órbita norte-americana, assim como ocorre com o México.
Mas esta América Latina tão próxima da influência dos EUA começa a sentir as duras conseqüências da já instalada recessão norte-americana, cuja duração é incerta (4). Com a entrada tão acelerada quanto ainda incerta da Venezuela como sócio pleno, o MERCOSUL expande-se, mas sem ter um aprofundamento consistente, adiando uma e outra vez a concretização dos objetivos de suas agendas e o seu anunciado (reiterado até o cansaço) “relançamento”. Após o fracasso do projeto ALCA, devido à postura assumida pelos países do MERCOSUL e pela Venezuela (que na época ainda não era sócio pleno do bloco) durante a Cúpula de Mar del Plata, no final de 2005, a presença norte-americana na região parece, contudo, ter se consolidado com a expansão dos TLCs bilaterais, apesar de que a situação atual tende a perfilar mudanças de entidade neste campo a partir do triunfo democrata nas eleições legislativas norte-americanas de novembro de 2006 (que deu a maioria em ambas as câmaras ao Partido Democrata, com suas conhecidas tendências protecionistas).
Esta situação aprofundou-se em seus alcances após o triunfo de Obama e a ampliação da maioria democrata no Congresso norte-americano. O projeto da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), pedra angular do projeto continental do Itamaraty, apesar de alguns acertos iniciais de relevância e das suas potencialidades efetivas em alguns planos (5), não parece terminar de definir com clareza seus objetivos e projeções políticas e econômicas.
Da mesma maneira, volta a proliferar na região uma disputa velada por posicionamentos de liderança e articulação de “eixos” (Brasil vs. México, o “fator” Venezuela e seu projeto bolivariano tão personificado na figura de Chávez, o “eixo” ideológico Bolívia-Cuba-Equador-Nicarágua-Venezuela no projeto ALBA, o “eixo” Brasília-Buenos Aires-Caracas, a projetada e incerta “Liga do Pacífico”, etc.). A presença internacional da América Latina, especialmente através do seu protagonismo no G-20 Plus ou de algum dos seus países (Brasil, México e Argentina) no “G-20 financeiro”, que discute uma nova institucionalidade para o sistema financeiro internacional após a crise, não termina de ressignificar seu necessário papel contestatário perante os poderosos (como em Cancún ou em Lima) na possibilidade de concretização de acordos positivos (em particular após o reiterado fracasso da “Rodada de Doha” e de como ficou alquebrado o cenário da OMC) a nível dos âmbitos multilaterais ou bi-regionais com a UE.
Se é cada vez mais verdadeiro que o Brasil passou a ser um “ator global” poderoso, também não resulta consistente seu suporte regional, necessário para a afirmação do seu protagonismo mundial. Em suma, desencanto ou incerteza parecem ser os balanços mais pertinentes neste ponto, independente das apostas ativas que estão em jogo, algumas das quais poderão vir a encontrar projeções favoráveis nos próximos anos.
Os países sul-americanos convergem em suas políticas externas?
Outra forma de perfilar um panorama político geral sobre os processos de integração e concertação política na região é a que deriva da pergunta sobre a convergência ou não das orientações das políticas externas atuais dos governos sul-americanos. Nessa direção, é possível encontrar evidências sólidas da existência de visões estratégicas convergentes na região? Segundo nosso critério, cabe apontar fortes dúvidas quanto a isto. Respaldam essa visão a constatação de que os partidos políticos, principalmente os chamados “progressistas”, resultaram muito mais integracionistas na oposição do que eram no governo.
Da mesma maneira, ao mesmo tempo que persiste a força prioritária dos interesses dos Estados nacionais, começam a aparecer de maneira especial fortes receios nos governos da região quanto a apostas de construção de instituições integracionistas ou de articulação de políticas públicas com viés regional ou supranacional. Ao mesmo tempo que os processos integracionistas em curso no hemisfério demonstram dificuldades visíveis para abordar em conjunto sua agenda externa (com particular prejuízo para os países pequenos dos diferentes blocos), que crescem as “tentações” bilaterais com origem no Norte e que persistem as dificuldades de negociação favorável nos cenários multilaterais, torna-se evidente a dificuldade para fazer com que as estratégias comuns de política externa convirjam de maneira efetiva, entre a reiteração de visões tanto hegemonistas quanto provincianas, entre regionalismos “messiânicos” e personalistas e “pragmatismos táticos” sem estratégia.
Como provas muito gráficas nessa direção poderíamos citar a presença exótica e crescente do Irã na agenda externa de vários países da região, alavancada por uma iniciativa muito forte do Presidente Chávez sobre este ponto, que também abrange associações privilegiadas com a Rússia e a Coréia do Norte. É difícil não sentir — no mínimo— perplexidade e perturbação diante dessas situações.
Em suma, mesmo com as limitações que impõem um olhar global sobre um continente tão fragmentado como a América Latina, uma hipótese central poderia apontar na direção de que a mudança na fragmentação configura uma das características mais definitórias do panorama político atual da região, e que esse traço condiciona de maneira marcante o avanço dos processos de integração e concertação política de projeção regional. Da mesma maneira, é possível dizer que essa característica também se transfere para as práticas de inserção internacional nos países sul-americanos. Para além da complexa síntese de convergências e divergências dos processos identificados na análise dos processos desenvolvidos no seio dos Estados nacionais, assim como no marco das experiências em curso dos processos de integração regional, nossa visão aposta em destacar essa marca mais global, que em si mesma está vinculada com um rumo de incertezas das mais variadas.
Com efeito, se é pouco convincente a visão daqueles que negam a existência de uma mudança política de porte no continente, também não convence a daqueles que inferem um rumo claro e determinado desta inflexão de transformação política. Na verdade, como vimos, são muitas as perguntas que se acumulam em torno do possível percurso político de muitos países da América do Sul e do continente em seu conjunto ou de algumas das suas sub-regiões como para “descartá-las” com a referência genérica a uma tendência uniforme e com perfis claros e determinados.
Para citar apenas algumas dessas perguntas difíceis, que não admitem respostas nem atalhos preguiçosos:
O que vai acontecer em Cuba nos próximos anos? Qual será o impacto dessa evolução na América Central e no resto do continente? Qual é o futuro do projeto bolivariano e da própria Venezuela, inclusive para além de Chávez? A Colômbia de Uribe vai encontrar finalmente uma paz viável e uma democracia respeitosa dos direitos humanos depois de décadas de violência? O outro caminho encarnado pelo Peru e a Colômbia, quanto às suas estratégias de inserção internacional com os EUA e a União Européia, vai terminar se afirmando ou será superado pela atual crise? Como o Equador vai concluir as reformas e mudanças encarnadas na experiência do Presidente Correa? Qual é o futuro da Concertação Democrática e do “modelo chileno” após quatro governos sucessivos e a consolidação de sinais de esgotamento? Como será o final do segundo governo Lula no Brasil e o que virá depois? Será que vai se confirmar esse senso comum reafirmado de que a Argentina “só pode ser governada pelo peronismo”? O “kirchnerismo”, com Cristina Presidente, será o neoperonismo ou estamos no limiar de uma inflexão política forte e cujo destino é incerto na Argentina? Haverá uma “era progressista” no Uruguai? O que vai acontecer com a experiência singular do governo do MAS e de Evo Morales em uma Bolívia cheia de conflitos e polarizada? O governo de Lugo abre realmente uma nova era democrática no Paraguai? E, para além dos Estados nacionais, qual será o destino dos diferentes projetos regionalistas no continente? América do Sul, América Latina, Ibero-América, ou simplesmente América, depois do avanço dos TLCs bilaterais ou de uma (pouco provável) iniciativa diferente de projeção continental do novo governo de Obama? MERCOSUL ou “Liga do Pacífico”? Ou predominarão formatos flexíveis de “regionalismo aberto”, que habilitem membros e compromissos múltiplos e cada vez mais frouxos entre os Estados que fazem parte dos diferentes projetos integracionistas?
Como já foi dito, muitas perguntas difíceis para que façamos afirmações definitivas e seguras. É por isso que, especialmente a partir de qualquer visão panorâmica que se tente sobre o curso político futuro da América Latina em geral e da América do Sul em particular, fazer as perguntas e apresentar hipóteses que dêem conta do peso da incerteza constitui um caminho analítico mais fecundo.
Algumas outras perguntas e temas para a prospectiva de uma política integracionista mais eficaz
A definição de uma política externa eficaz, especialmente na América do Sul e no Cone Sul, dificilmente pode eludir a necessidade de assumir os dilemas da inserção internacional a partir de perspectivas de blocos regionais, que reforcem a autêntica soberania nacional sem recorrer aos desgastados enfoques soberanistas ou de nacionalismos isolacionistas de velho cunho. A inserção plena em um “mundo de blocos” e a efetivação dos anelados cenários multipolares, na busca de enfrentar com eficácia a ruinosa tentação dos hegemonismos unipolares (acreditamos que hoje estejam em declínio), somente poderá ser construída a partir de uma consolidação real e não retórica dos processos de integração regional e supranacional.
Para defender de maneira efetiva e não retórica um conceito moderno de soberania é preciso incorporar a idéia de que todo processo de integração supõe algum nível de associação política com os sócios de um bloco, que consentem seu comum pertencimento a ele a partir da visão comum de um programa acordado de iniciativas conjuntas de inserção internacional.
Contudo, um olhar atento sobre os atuais contextos nessa direção impõe um registro sensato sobre a necessidade imperiosa de aprendizados e exigências. Nesse sentido, como vimos, os giros dos processos de integração atualmente em curso de implementação na América do Sul não podem ser tirados do contexto do acontecido durante o último tempo no panorama político regional. Sobre o Mercosul, por exemplo, cabe formular uma série de interrogantes em termos de interpelação radical, no limiar da “maioridade” desse bloco regional (6). Algumas delas são expostas a seguir:
Que possibilidades reais existem de renovar um acordo consistente e operacional em matéria de uma reformulação séria do pacto integracionista do Mercosul no seio dos Estados membros, envolvendo não apenas seus governos atuais, mas o conjunto dos sistemas políticos da região e os principais atores sociais?
É viável, por exemplo, uma agenda de acordos sobre pontos específicos, como assimetrias, coordenação macroeconômica ou harmonização tarifária, dentro dos sistemas políticos dos Estados membros do bloco ou, como parece, certos consensos fundamentais em torno do MERCOSUL e seu futuro foram minados?
Quanto avançaram realmente os níveis de ligação eficaz e inovadora entre o setor público e o setor privado como tema da agenda da inserção internacional promovida pelos governos do Mercosul?
Os países pequenos do bloco, como o Paraguai e o Uruguai, processaram as mudanças notórias impostas pelos processos históricos das últimas décadas nas formas de relacionamento com seus dois gigantescos vizinhos? Nessa mesma direção, que tipos de ações concretas poderiam ser promovidas para ajudar na superação progressiva do conflito uruguaio com a Argentina e para forjar uma nova interlocução do Paraguai com o Brasil a respeito do tema da barragem de Itaipu?
Qual é a forma mais equilibrada de articulação entre essas três tendências de ampliação, aprofundamento e flexibilização que têm dominado os itinerários do MERCOSUL nos últimos anos? Somente através de uma flexibilização que minimize ao máximo os acordos e compromissos entre os sócios do MERCOSUL será possível atender devidamente as legítimas exigências do Paraguai e do Uruguai com respeito ao tema das assimetrias? Pode funcionar a ampliação sem aprofundamento prévio? O que significa, hoje, aprofundar o Mercosul?
Está sendo feita uma análise ponderada dos cruzamentos entre as políticas nacionais dos países integrantes plenos do MERCOSUL e a evolução geral do Mercosul em seu conjunto?
Quais são e quais deveriam ser os limites, alcances e níveis de convergência nas estratégias integracionistas, bilaterais e multilaterais, de cada um dos Estados membros do bloco?
Qual poderia ser um “plano B” em matéria de inserção internacional para os pequenos do bloco, como o Paraguai e o Uruguai, enfrentando a persistência do relacionamento privilegiado (e freqüentemente excludente) entre a Argentina e o Brasil? Que passos deveria ter uma estratégia efetiva nessa direção e quais seriam os fundamentos e os cálculos que respaldariam sua razoável preferência? Já foram medidas de alguma maneira as implicações e conseqüências de diversa índole que teria para ambos os países uma saída (na hipótese pouco provável do abandono ou na perspectiva mais gradualista da mudança de qualidade da integração, passando de membro pleno para associado) do MERCOSUL? A alternativa é realmente um TLC em sua forma clássica com os EUA ou qualquer acordo de associação com a UE? É viável e desejável para o Uruguai, por exemplo, um caminho “à chilena”?
Caso se mantenham sem mudanças substanciais as atuais condições —sem dúvida deficitárias— do processo de integração para países como o Uruguai e o Paraguai, quais são os limites e alcances da estratégia de combinar, na medida do possível e da forma mais rigorosa, a dupla estratégia de “regionalismo aberto” e “bilateralismo múltiplo”? Tem futuro o atual status quo neste sentido?
Quais são, hoje, a “agenda curta” e a “agenda longa” da integração regional globalmente considerada? Quais são as definições últimas e compartilhadas pelos governos do bloco sobre temas que não sejam estritamente comerciais, como reforma institucional do Mercosul, assimetrias, complementação produtiva, articulação de políticas públicas regionais, convergência cambial, agenda externa comum, desenvolvimento social?
Têm havido avanços efetivos na concretização de instrumentos de “governança regional” dentro do Mercosul, articulando os formatos institucionais da integração com as dimensões territoriais, sociais e culturais? O que significa hoje a idéia de “MERCOSUL social” em termos concretos e específicos de envolvimento e participação de atores de novo tipo? Existe realmente “segurança jurídica” e resolução ágil e consistente de contenciosos dentro do Mercosul?
Há quem afirme que já faz tempo que o Mercosul requer uma “sinceriamento” radical e que isso significa rediscutir a fundo e sem concessões o modelo de integração. Isso significaria renovar a discussão entre a viabilidade da “união aduaneira” e a opção por uma concertação política mais flexível, assentada apenas em uma “zona de livre comércio” e “complementação de políticas regionais”?
Esta lista, que certamente não é exaustiva, mostra alguns dos obstáculos concretos que enfrenta não só o MERCOSUL, mas também os outros processos de integração regional ou concertação política no subcontinente sul-americano. Sobre todos e cada um destes pontos, os debates são tão extensos quanto intensos, configurando, em muitos casos, o núcleo central das agendas políticas dos processos eleitorais nacionais. E não se deve esquecer que os políticos sul-americanos, para além de suas idéias e aspirações com respeito à integração regional, “dividem cotas eleitorais” em seus respectivos países, no seio de eleitorados pouco sintonizados —quando não diretamente enfrentados— com as demandas e tópicos dos repertórios integracionistas. Quando o que verdadeiramente se precisa nestas matérias são apostas valentes e de projeção estratégica, o império destas circunstâncias também não é coadjuvante em uma direção favorável.
A agenda externa comum e o caso das negociações entre a União Européia e a América Latina: novos contextos, novos problemas e oportunidades
A consideração da evolução da agenda externa comum dos processos de integração em curso no continente configura, sem dúvida, um observatório privilegiado para ponderar seus alcances. Nesse sentido, por muitos motivos, uma análise, mesmo que seja sumária, sobre o estado das negociações entre a América Latina e o Caribe (ALC) e a União Européia (UE) resulta especialmente útil. Como ponto original de análise eu teria que partir da nova estratégia aprovada pela UE na Cúpula de Essen (1994), da qual já se passaram quase 15 anos sem os resultados que eram esperados. Essas pautas, que eram orientadas para a concretização de um novo tipo de aliança mais profundo entre ambos os blocos continentais, estratégia que depois foi referendada na I Cúpula União Européia – América Latina realizada no Rio de Janeiro em 1999, definiam-se em um novo conceito de possibilidades de acordos bi-regionais na busca de um contexto internacional multipolar.
Ambos os blocos reconheciam aquela circunstância internacional como um cenário propício para aprofundar suas relações, como conseqüência do fim da Guerra Fria. É preciso advertir que essa base não existe mais e que o novo contexto —dominado pelas conseqüências deixadas por uma longa década de pretensão de hegemonismo unipolar presidido pelos EUA, pelo empantanamiento das negociações multilaterais, pelas mudanças operadas em ambos os subcontinentes (UE e ALC) e pela crise financeira internacional que se iniciou— não facilita particularmente esta perspectiva de relações.
Em uma direção negativa tem operado, sem dúvida, a atual fragmentação do conceito e das práticas regionalistas na América Latina. Como já se viu, essa multiplicidade de apostas, longe de reforçar a posição negociadora do continente e suas partes como interlocutores na cena internacional, não fez mais do que enfraquecer, claramente, essa posição. A isso foram somadas, na mesma direção, as vicissitudes da iniciativa hemisférica dos EUA durante os anos da Administração Bush: uma vez detido o projeto ALCA, no final de 2005 na Cúpula de Mar del Plata, optou-se pela via dos TLCs assinados em forma bilateral, com suas agendas conhecidas que incluíam os temas “OMC plus”. Conforme já assinalamos, essa aposta enfrenta, há dois anos, uma forte rejeição, o que fica claro, por exemplo, com o adiamento da aprovação por parte do Congresso norte-americano do tratado assinado com a Colômbia. Tudo parece indicar a previsível continuidade desta situação depois do triunfo democrata nas eleições norte-americanas de 4 de novembro passado e dos fortes impactos da crise internacional nos EUA, que já não podem ocultar sua recessão.
Da mesma maneira, embora de maneira completamente diferente, aponta também nessa direção pouco favorável à ativação das negociações bi-regionais a constatação de que na América Latina persistem a instabilidade política, a pobreza e uma tendência multidimensional ao conflito (interna dos Estados, binacional em algumas fronteiras “quentes”) carregada de violência. Não está nada clara, então, a prevista coordenação das políticas bi-regionais e multilaterais entre a União Européia e a América Latina e o Caribe. Da mesma maneira, a própria idéia de cooperar entre blocos para ganhar mais poder de negociação perante terceiros, apesar de já ter tido um marco com a concretização da iniciativa do G-20 Plus, liderada pelo Brasil, não terminou de se perfilar na capacidade inadiável de obter acordos positivos, sem uma agenda única e testimonial de contestação à agenda dos países desenvolvidos.
Em suma, as três lógicas originárias daquele acordo estratégico de 1994, que buscava um autêntico aprofundamento das relações bi-regionais, parecem ter enfraquecido de maneira convergente: 1) a lógica de integração precisou enfrentar obstáculos, entre os quais um dos mais negativos é a falta de vontade política real dos blocos latino-americanos e do MERCOSUL, especialmente no que se refere a avançar em projetos institucionais com um perfil de “supranacionalidade realista”, que facilitariam os acordos; 2) a lógica econômica também não manteve seus avanços, uma vez que, embora entre 1992 e 1997 tenha chegado mais capital europeu na América do que em qualquer outro quinquênio do século XX, a situação variou nos anos seguintes, em alguns casos dramaticamente, também devido à forte crise econômica e financeira dos países do MERCOSUL, sem que as novas melhoras dos últimos cinco anos tenham podido recuperar plenamente a situação precedente; 3) a lógica política também se deteriorou, entre uma Europa que não quer interpelar ou provocar de modo direto o hegemonismo norte-americano e que, no máximo –como é o caso típico das suas iniciativas destinadas ao MERCOSUL— atua de maneira reativa (quando os EUA avançam na região, a mesma coisa faz, um pouco depois, a UE), mas que nos fóruns multilaterais, como a OMC, não abandona um formato rígido de aliança básica Europa-EUA.
Contudo, apesar da persistência e, em alguns casos, do aprofundamento destes e de outros problemas, continuam pesando favoravelmente fatores cuja influência não deve ser menosprezada: 1) a singularidade dos vínculos históricos entre a Europa e a América Latina; 2) o fato de que a União Européia continua sendo um sócio comercial e uma fonte de investimentos muito importante para o continente em geral e para a região do Mercosul em particular; 3) apesar de que a União Européia é mais importante para a América Latina do que vice-versa, também pesam as ameaças de não cooperação (aumento exponencial da indignação, narcotráfico, giro para os EUA em política internacional, atrelada aos TLCs ou a outro tipo de acordos, etc.); 4) o objetivo comum e histórico de contestar o hegemonismo norte-americano e de apostar a um multilateralismo e a uma Comunidade Internacional fortalecidos constitui um objetivo comum e estratégico entre ambas as regiões, seria possível dizer que hoje mais do que nunca.
A isso soma-se uma espécie de “ruptura” ou renovação de agendas que, com uma boa base de interlocução e apesar do ocorrido recentemente em Fóruns Internacionais (Cúpula de Lima, Diretiva de Retorno votada no Parlamento Europeu, confronto na finalmente fracassada Ronda de Doha na OMC), poderia configurar um cenário propício para um novo tipo de aliança, sustentado em apostas mais audazes: perante a recusa norte-americana —praticamente transformada em dogma— de aceitar compromissos multilaterais, a União Européia e a América Latina, com o MERCOSUL à frente, poderiam (talvez até “deveriam”, em termos de custo-oportunidade) tentar alianças inéditas de face aos novos temas globais (meio ambiente, mudança climática, direitos humanos, coesão social, etc.), com posturas mais flexíveis em relação à negociação de problemas sempre conflituosos, como o dos subsídios agrícolas, o tratamento da dívida, a modificação da arquitetura financeira internacional, a chamada “Agenda Singapura” e, em especial, o tema da propriedade intelectual, etc., em cenários multilaterais. A princípio, e à luz do ocorrido nos últimos tempos, as reflexões anteriores podem parecer uma aposta pouco realista, mas um exame rigoroso dos contextos internacionais e dos seus desafios mais imediatos, deveria produzir fortes argumentos a seu favor em termos de racionalidade estratégica compartilhada. De qualquer maneira, sobram razões para o pessimismo.
É claro que existem evidências quanto a que não necessariamente a América Latina e o Caribe continuarão sendo, como até agora, objetivos destacados dentro do olhar internacional da União Européia. A isso somam-se outros fatores conflituosos, como os derivados da ampliação da UE (em muitas áreas é mais difícil negociar concessões com a Europa dos 27 do que era com a anterior dos 15). Mas não parece caber dúvida de que um dos aspectos que torna mais complexa a negociação bi-regional entre a Europa e a América Latina está na pouca força dos formatos integracionistas latino-americanos e na assimetria que emerge em negociações que perfilam uma UE coesa frente a uma AL dispersa e heterogênea. As dificuldades recentes das negociações com a CAN e a dispensa que parece estar se confirmando para que países como a Colômbia e o Peru iniciem uma negociação bilateral com a UE em temas comerciais a “outras velocidades” constituem uma boa prova do que estamos assinalando. No Mercosul, como revela a divisão final na postura dos seus integrantes na Ronda de Doha, parece estar se perfilando uma situação similar.
De qualquer maneira, e com o pano de fundo da crise financeira internacional em curso, com o grande projeto de uma globalização menos excludente e mais multipolar e a partir de uma ponderação mais madura sobre seus interesses e possibilidades nos novos contextos, a Europa e a América Latina poderiam encontrar fatores de estímulo na direção de avançar em suas negociações em diversos aspectos. Vamos mencionar alguns deles:
– maior confiança no que pode surgir dessa emergente “sociedade global total” e suas redes (nas quais a cultura e seus vetores desempenham um papel favorável para o aprofundamento dos vínculos), sem abandonar, é claro, a primazia das articulações intergovernamentais;
– a constatação comum, por processos muito diversos e contrastantes, mas vivenciados in situ por ambos os blocos, dos crescentes problemas de viabilidade do “novo capitalismo” e dos seus suportes ideológicos;
– a relevância histórica e estratégica que hoje teria um acordo central em defesa do multilateralismo e da plena vigência do Direito Internacional;
– a possibilidade, também estratégica e viável, de articular, em uma chave alternativa ao que foi feito na matéria pelos EUA nos últimos anos, políticas integrais de segurança e de luta contra o terrorismo, sem a militarização excludente e catastrófica (com resultados bem à vista para Europa) das opções dominantes pelo menos até agora;
– a transcendência de acordos fortes no sentido de apostar em objetivos comuns, ou pelo menos negociáveis, na inadiável reformulação das instituições da ordem internacional;
– a necessidade de construir bases firmes de apoio para ações proativas contra os avanços cada vez mais dramáticos e perigosos da marginalização de sociedades e culturas depauperadas e assediadas, com suas conseqüências duríssimas no muito sensível tema das migrações internacionais; entre outros.
Não há dúvida de que o ocorrido nas últimas Cúpulas não permite apostar fortemente no otimismo. Contudo, persistem processos e fatores que “empurram” na perspectiva necessária de aproximar a América Latina em geral, e o MERCOSUL em particular, à União Européia. Nesta perspectiva, a situação do Chile é, sem dúvida, muito mais avançada do que a apresentada pelos países do MERCOSUL, dado que esse país já tem um grande acordo de Livre Comércio e outros vínculos permanentes e auspiciosos com a União Européia. Não obstante, constituiria um grave erro postular a experiência chilena como um “modelo” a ser copiado pelo resto dos países latino-americanos (um a mais em uma longa série; mais uma vez o árido modelo da cópia), assim como que a UE suponha que seus interlocutores latino-americanos negociarão com os mesmos perfis do país transandino. Tomar por qualquer destes dois atalhos levaria à frustração de uma nova rua-sem-saída e fazer essa advertência agora constitui um imperativo estratégico.
Os rumores sobre as eventuais alternativas “bilaterais” do Brasil.
Parece evidente que o MERCOSUL, por exemplo, deveria retomar com vigor a busca dedicada de acordos com países e blocos externos à região. Suas conquistas positivas nesta direção realmente são poucas: apenas um acordo com Israel em quase 18 anos de vida do bloco desde o Tratado de Assunção de março de 1991. O escasso dinamismo e a falta de vitórias na agenda exterior do bloco, atualmente empurra seus sócios (especialmente os menores, mas não necessariamente apenas eles) a tentarem os acordos com terceiros pela sempre arriscada (e tentadora) via bilateral. Em um cenário em que convergem rumores sobre apostas bilaterais e emergem grandes dificuldades no bloco Mercosul para assumir uma postura comum nos cenários da negociação internacional, dentro de um marco geral de grande instabilidade na cena internacional, os transcendidos sobre a possibilidade de um movimento forte do Brasil nessa direção começam a sucederse.
Em um artigo assinado por Silvia Naishtat na edição do influente “Clarín” de Buenos Aires do passado dia 8 de outubro de 2008, ela assinalava sobre esse particular: “Desde que existe, a União Européia cozinhou todo tipo de acordos. Mas algo acontece com o Mercosul. Depois de uma negociação que já tem 12 anos ainda não conseguiu fechar o trato. Contudo, em Bruxelas não se dão por vencidos, e em dezembro será assinado um ambicioso protocolo. A novidade é que será apenas com o Brasil. O que estava sendo montado com o Mercosul era considerado emblemático, uma vez que se trata de estabelecer uma zona de integração política, comercial e de cooperação entre dois blocos econômicos. Basicamente, permitia ter acesso ao cobiçado mercado europeu. Além disso, tinha um significativo conteúdo político, dado que a região é considerada como estando na zona de influência dos EUA. Foram cogitados vários tipos de receitas, mas tudo terminou em fracasso. Fontes da chancelaria francesa, que hoje exerce a presidência da União Européia, atribuem isso a que o Mercosul não conta com instituições e possui várias vozes.
A verdade é que o Brasil se transformou no grande referencial e, apesar da crise que enfrenta, vai assinar um acordo com a União Européia que por agora exclui a parte comercial, mas inclui a cooperação. Para a Argentina trata-se de um alerta. Depois dos países do Mercosul, para onde vai 22% das exportações, a União Européia é o segundo em importância, com 20%.
Em Paris criticam a posição de Buenos Aires na Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio. O governo de Cristina Kirchner “preferiu proteger sua indústria. O Brasil, com um setor industrial mais desenvolvido, aliou-se com a Europa na negociação”, assinalaram. Pelo visto, terá seu prêmio. “O Brasil tenta ser um ator global, não é considerado um a mais na lista”, disse Olivier Dabene, do Instituto de Estudos Políticos de Paris. Gerald Martin, da Chancelaria gala, tentou baixar os decibéis e falou em acordos vigentes, como o que reforça as estatísticas do bloco, curiosamente sob responsabilidade da Argentina” (7).
Apesar de que os desmentidos sobre este tipo de anúncio também se sucedam, tanto por parte do Presidente Lula quanto das autoridades da União Européia, e de que há informações que se orientam em um sentido absolutamente oposto, para além dos rumores a verdade é que de uma análise objetiva da conjuntura não poderia ser descartada a eventualidade de uma iniciativa deste tipo —que, vale dizer, caso se confirme, seria devastadora para o futuro do Mercosul. Seria pelo menos ingênuo não perceber que não faltam razões para que na União Européia e no Brasil tenha quem esteja pensando neste tipo de estratégia. Mas se bem a idéia não é nada absurda, pelo menos como hipótese de análise, será que seria a melhor opção nos atuais contextos? Segundo nosso critério, cabe, no mínimo, questionar isso.
Em uma extensa reportagem com o Presidente Lula, publicada também pelo jornal “Clarín”, em 7 de setembro de 2008, perguntaram a ele justamente a propósito das versões que indicavam que após as últimas reuniões da Rodada de Doha o Brasil teria optado por “jogar solitário” no cenário internacional. O primeiro mandatário esforçou-se em desmentir de maneira taxativa essa possibilidade: “Não existe esta possibilidade. Primeiro, porque pessoalmente acredito, trabalho e aposto na integração da América do Sul e, com mais empenho ainda, no fortalecimento do Mercosul. (…) Segundo, como disse no seminário que foi feito em Buenos Aires, é muito importante que o Brasil e a Argentina não se vejam como competidores, mas, sim, como sócios. (…) Em função dessa realidade argentina, o Brasil tem consciência do papel que desempenha na Ronda de Doha e de como combinar isso com a cooperação com a Argentina para sua recuperação industrial. Por isso, não existe nenhuma hipótese nem possibilidade de que o Brasil jogue sozinho. O Brasil tem clareza quanto a que sua relação com a Argentina, quanto mais harmoniosa e mais produtiva for, mais contribuirá para fortalecer o Mercosul e a integração sul-americana. (…) Não devemos ver, em nossas divergências, situações de conflito, senão situações de diferenças; diferenças econômicas e de potencial industrial. Veja, quando o Brasil esteve disposto, na Ronda de Doha, a realizar um acordo com os termos negociados para a agricultura e produtos industriais, é porque o país estava disposto a realizar, no âmbito do Mercosul, as compensações que a Argentina exigisse para não ter problemas.(…) Ocorre que o Brasil trabalhou todo o tempo levando em conta que Doha deveria ter um instrumento: favorecer os mais pobres do mundo, que dependem quase exclusivamente da agricultura e enfrentam um mercado europeu praticamente fechado para eles. O que nós queríamos é que esse mercado se abrisse um pouco” (8).
Como sinal de que as versões jornalísticas sobre este particular reiteram a incerteza e as versões encontradas que se percebem nos meios diplomáticos e acadêmicos, apenas um dia depois, no semanário uruguaio “Búsqueda”, sob o título “Crise global e fracasso de Doha reavivaram interesse da União Européia em um acordo político e comercial com o Mercosul”, o jornalista Edison Lanza assinalava, como enviado especial em Bruxelas para realizar um relatório sobre as opiniões predominantes a nível das autoridades comunitárias: “A União Européia (UE) tem um alto “interesse político e econômico” em fechar “um acordo bi-regional equilibrado e amplo” com o MERCOSUL, porque apesar do estancamento deste bloco, é considerado um processo de integração “bem-sucedido” e com potencial de crescimento, disse para “Búsqueda” Angel Carro Castrillo, diretor-geral de Relações Exteriores da Comissão Européia e chefe da Unidade MERCOSUL e Chile desse organismo, durante uma reunião com jornalistas da América do Sul que ocorreu em Bruxelas na sexta-feira 3. (…) O fracasso da Ronda de Doha, a crise financeira mundial e o começo de um período de recessão na Europa, parecem ter provocado a burocracia de Bruxelas na busca de ampliar os mercados e movimentar a dilatada negociação com o MERCOSUL, que até agora se mantinha no congelador e está a ponto de cumprir uma década. “Agora existem mais razões econômicas do que antes, porque podemos superar o percalço juntos”, confiou uma fonte da “capital” da Europa” (9).
Por outro lado, é claro que neste terreno de opinião também cabe a pluralidade de visões. Daremos a nossa. A União Européia pode, com realismo, encontrar razões para retomar com mais força e audácia a iniciativa no campo das relações interblocos, independente, inclusive —como vimos— de que sua ampliação recente com a incorporação de doze novos sócios inegavelmente reorienta as prioridades e dificulta ainda mais as negociações bi-regionais. No sentido da necessidade de apostar na oportunidade de relações mais fortes e renovadas, pesam, sem dúvida com especial vigor, os fatores políticos. Existe um perigo comum a ambos os blocos na consolidação do unipolarismo norte-americano e do novo “capitalismo sem regras”, cada vez mais excludente e imprevisível em suas conseqüências.
Como vimos, podem ser visualizados temas globais de agenda compartilhada e, em alguns casos, de impacto imediato. Em mais de uma oportunidade foi possível reforçar a noção da reciprocidade de interesses em diversas áreas. Da mesma maneira, a alternativa da sensatez (que sem dúvida passa por um aprofundamento de vínculos de todo tipo) encontra o antecedente favorável da implementação crescente de estilos de cooperação mais dialogada e respeitosa.
Nessa precisa direção, os obstáculos a vencer, que muitas vezes se referem a práticas concretas e mais ou menos formalizadas, são na verdade múltiplos. Nesse sentido, é claro que não ajuda, como já foi dito, a fragmentação e debilidade dos processos de integração atualmente em curso na América Latina. Também não é coadjuvante na melhor perspectiva a inclusão de propostas rígidas nas ofertas européias com respeito ao tema das disciplinas em temas especialmente sensíveis (propriedade intelectual, compras governamentais, normas de competitividade, regulamentação de serviços, etc.), que muito fazem lembrar os formatos clássicos dos “TLCs norte-americanos” bilaterais e que levou vários países do continente (como Equador, Bolívia e Venezuela) e organizações sociais latino-americanas a denunciarem a possibilidade de um “ALCA europeu”.
O fracasso reiterado das negociações entre os blocos da região e outros blocos ou atores extra-zona consolida a tentação do bilateralismo, com o menoscabo da estratégia de negociação bloco-a-bloco, que sempre foi defendida pela União Européia para afirmar sua postura pró-integracionista. Da mesma maneira e nessa mesma linha de privilegiar os processos de integração como centros estratégicos da negociação e da agenda internacionais, a utilização de procedimentos e estratégias que a própria UE já confirmou em seu processo (como o reconhecimento das assimetrias, o tratamento preferencial das economias pequenas, a participação social e a transparência como chaves da negociação bi-regional) seria muito importante para ampliar as possibilidades de sucesso.
Mas é bastante óbvio que não é possível exigir estes comportamentos “virtuosos” e “sensatos” da União Européia quando na América Latina primam a fragmentação, a dispersão, quando não a perplexidade, em relação às prioridades e objetivos centrais em temas-chave, como integração e estratégias compartilhadas de inserção internacional.
Razões e incerteza
Alguns anos atrás, as expectativas e o fervor integracionista na região, especialmente no MERCOSUL, davam origem a especulações e prognósticos muito mais auspiciosos que os atuais. Pensemos, por exemplo, nos anúncios e projetos que vieram após a crise de 2001-2002 no Cone Sul. Os contextos variaram dramaticamente desde aquela época. Contudo, apesar das circunstâncias vividas e daquelas que estão em curso, os “custos” de “sair” e de não estar na região continuam sendo muito maiores. Apesar dos discursos, não parece plausível sustentar hoje que, finalmente, as opções “pela região” ou “pelo mundo” passaram a ser dicotômicas. Se isso é assim, como acreditamos, os países do continente não podem sensatamente implementar estratégias confiáveis para “estar no mundo” sem estarem “na região”, ou pior ainda, estando “contra a região”. Contudo, como se resolve, da melhor maneira e com a urgência que exigem as demandas das sociedades da região, esse acúmulo vastíssimo de obstáculos e dissonâncias que tanto estão afetando os processos de integração regional na América do Sul?
Essa pergunta, que tal vez seja a chave primordial de toda estratégia de inserção internacional para os países do continente, como já dissemos, requer uma definição política. Não pode ser um mero resultado apresentado como uma “conseqüência natural” da conjuntura, da geografia, da história, da economia ou do comércio. O projeto de uma política exterior e, muito menos, as práticas e estratégias de integração regional e de inserção internacional não podem ser vistas nem resolvidas com esses “olhos de fechadura”. Dar-lhes a atenção adequada requer definições políticas consistentes, legítimas a partir dos próprios procedimentos de decisão, formuladas como chave transversal de visões estratégicas de desenvolvimento e competitividade. Essa é –acreditamos— a via mais adequada para os países sul-americanos que tentam encontrar um “lugar” dinâmico em um mundo cada vez mais complexo e incerto.
(*) Historiador e cientista político. Coordenador do Observatório Político, Universidade da República (Uruguai). Diretor Acadêmico do Centro de Formação para a Integração Regional (CEFIR). Integrante do Conselho Superior da FLACSO. Secretário Acadêmico do Centro Uruguaio para as Relações Internacionais (CURI). Autor de numerosas publicações em áreas de sua especialidade.
(1) Na reunião do chamado “G-20 financeiro”, formado pelas 19 economias mais fortes do mundo, mais a União Européia como bloco, participaram a Argentina, o Brasil e o México. Cabe referir que os chanceleres e presidentes dos bancos centrais desses países e blocos reuniram-se primeiro no Brasil, antes da Cúpula de Washington, celebrada a meados de novembro, no que significou uma nova ratificação da liderança internacional do gigante sul-americano e a confirmação de sua condição de “global player”. O Presidente Lula impulsou com protagonismo a elaboração de um documento no qual foram sugeridas mudanças profundas no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial, foram pedidos novos instrumentos de regulamentação e supervisão, ao mesmo tempo que se exigia uma participação maior dos chamados países emergentes nos fóruns de decisão da economia mundial.
(2) A este respeito, resulta muito forte a vinculação do resultado final de Doha com a possibilidade de avanços efetivos na negociação de Acordos de Associação entre os blocos e países latino-americanos com a União Européia.
(3) Tal parece ser a via possível para manter o bloco diante da manifesta divergência de caminhos entre o Equador e a Bolívia frente à Colômbia e o Peru, reforçada especialmente em temas como a assinatura de tratados de livre comércio com os EUA ou de acordos de associação bilaterais (pelo menos em relação ao componente comercial) com a UE. A previsível aceitação de uma flexibilidade que permita a coexistência de posicionamentos internacionais tão diferentes parece ser hoje a fórmula mais previsível para efeitos de evitar o desmembramento do bloco.
(4) Observar quanto a isto o impacto previsível nesta direção no México, com mais de 85% de suas exportações destinadas ao mercado norte-americano e com mais de 10 milhões de emigrantes em território norte-americano. É importante lembrar que o Presidente eleito Barack Obama falou em sua campanha eleitoral em reformular o NAFTA e o CAFTA, o que, sem dúvida, teria conseqüências muito duras na região. Já nestes momentos, existem muitos registros que evidenciam fortes quedas no envio de remessas de migrantes latinos nos EUA para seus países de origem, o que certamente comoverá as economias destes últimos.
(5) Dessa maneira é possível reputar sua eficaz intervenção, promovida inicialmente pelo Chile e depois respaldada pelo Brasil e pelo resto dos países do continente, por ocasião do recrudescimento da crise boliviana há poucos meses. O projeto da UNASUL, que sucedeu com incrível rapidez a fracassada e efêmera tentativa da anterior Comunidade Sul-Americana de Nações, desde o início parece ter se orientado para objetivos específicos, como a concertação política, os projetos de infra-estrutura comum e de articulação energética e o mais controverso tema do chamado “Conselho de Defesa”.
(6) Com efeito, em 26 de março de 2009 serão cumpridos 18 anos da assinatura do Tratado de Assunção de 1991, por meio do qual se formalizou o nascimento do MERCOSUL.
(7) Cfr. “Clarín”, Buenos Aires, 8 de outubro de 2008. (“Brasil, el socio elegido por París y Bruselas. Cae el acuerdo entre Europa y el Mercosur”, por Silvia Naishtat.)
(8) Cfr. “Clarín”, Buenos Aires, 7 de setembro de 2008. Lula, em exclusiva com Clarín: “No existe ninguna hipótesis de que Brasil se juegue solo.” Por Marcelo Cantelmi, Ricardo Kirschbauum, Eleonora Gosman. Brasília, Enviados especiais.
(9) “Búsqueda”, Montevidéu, 9 de outubro de 2008, p. 7. “Crisis global y fracaso de Doha reavivaron interés de Unión Europea en un acuerdo político y comercial con el Mercosur.”
Tradução: Naila Freitas, para a Agência Carta Maior