O Maletta aos 50

Todo mundo tem uma história do Maletta para contar. De roqueiros a
boêmios, passando por mendigos e nomes importantes da cena cultural e
política mineira, o edifício localizado no coração de Belo Horizonte,
na esquina entre as ruas Augusto de Lima e Ba

É esse olhar de uma cidade up-to-date (no bom português, atualizada) que ganhará a tela grande muito em breve, pelas mãos do diretor Joel Zito Araújo. “BH é moderna. Quando a gente viaja e abre as portas do mundo é que percebe o quanto está sincronizada com o que acontece lá fora. Nos anos 70, por exemplo, vivemos as mesmas coisas da juventude espanhola ou norte-americana”, salienta o cineasta, que nasceu na cidade mineira de Nanuque e viveu sua experiência “edifício Maletta” de 1974 a 1983, antes de fixar residência em São Paulo.

Araújo fará um trabalho cheio de citações autobiográficas, debruçando-se principalmente sobre a vida noturna da edificação. “Foi o local de meus encontros, amorosos e intelectuais. Tudo isso estará, de certa forma, retratado no filme”, revela o cineasta, que ainda está escrevendo o roteiro.

O projeto terá um orçamento médio para o cinema brasileiro, não custando mais que R$ 2 milhões. Boa parte das filmagens acontecerá no próprio Maletta, que começou a ser construído em 10 de outubro de 1959, após a demolição do Grande Hotel. A primeira parte da obra foi inaugurada em 1961.

A galeria de personagens deverá contemplar toda a “fauna” que frequentou ou frequenta o edifício, dos residentes aos que entram neste labirinto de 31 andares para almoçar, beber, comprar livros usados ou simplesmente bater papo. Nas décadas de 1960 e 70, em especial, esse grupo estava bem reforçado pela intelligentsia mineira, que tinha em Araújo um ouvinte atento. “Vivi um período de formação no mundo contemporâneo muito intensa no Maletta. E isso não é diferente hoje em dia”, registra.

Estudante de psicologia na época, Araújo enxerga naquela Belo Horizonte a Paris mostrada no filme “Os Sonhadores”, de Bernardo Bertolucci, que retrata a juventude parisiense durante os movimentos estudantis de 1968. A vontade do diretor é levar para o seu longa a mescla de amores, política e sonhos, agora com sotaque mineiro.

Maletta é terreno fértil na literatura de Minas

A literatura habita os corredores do Edifício Arcângelo Maletta, tradicional reduto boêmio e cultural da capital mineira. Inclusive, muito antes da metamorfose do antigo Grande Hotel em condomínio residencial e comercial, na década de 1950.

O germe da literatura no Maletta é absolutamente modernista. Na década de 1920, a caravana dos escritores paulistas, ligados à Semana de Arte Moderna de 1922, ficou hospedada no charmoso hotel, que funcionava na esquina da Avenida Augusto de Lima com a Rua da Bahia.

Ali se hospedaram Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e o poeta francês Blaise Cendrars, antes da emblemática viagem às cidades históricas de Minas, em especial, Ouro Preto, quando se depararam com a beleza barroca da antiga Vila Rica e outras cidades coloniais mineiras, lançando a semente da preservação daquele patrimônio histórico e estético em entrevistas e ensaios.

Na década de 1960, já transformado em reduto boêmio, o Maletta torna-se roteiro obrigatório da vida cultural belo-horizontina. Impossível falar do Maletta, naquele período, sem lembrar a figura do escritor Murilo Rubião (1916-1991). Introdutor do realismo fantástico no Brasil, o autor de obras elogiadas e marcantes como “O Pirotécnico Zacarias” e “A Casa do Girassol Vermelho”, republicadas ano passado pela Companhia das Letras (SP), transforma, ao seu modo, o Maletta em quartel-general de proseios, cujo epicentro sensorial é a Cantina do Lucas.

Ali, servidos pelo célebre garçom Olímpio, discutem literatura, política, música, artes plásticas, vida. Na mesa de Rubião, sentam-se, toda noite, nomes como os artistas plásticos Chanina e Inimá de Paula, o escritor e jornalista João Etienne Filho, o poeta Fritz Teixeira de Salles, entre outros não menos importantes.

Ao editar o “Suplemento Literário de Minas Gerais”, Murilo Rubião congrega uma série de escritores, novos, novíssimos e veteranos, em torno daquele projeto editorial. Participam de reuniões em bares do Maletta, como o Lua Nova e, claro, o Lucas, autores como Humberto Werneck, Rui Mourão, Jaime Prado Gouvêa, Affonso Ávila, Laís Corrêa de Araújo, Márcio Sampaio, Oswaldo França Júnior e Roberto Drummond.Nas sobrelojas do Maletta, além de sebos que marcaram época, como o do escritor e pesquisador Eduardo Frieiro, autor da obra-prima “Feijão, Angu e Couve”, muitos músicos mineiros se apresentavam a partir de 1966, entre eles Milton Nascimento, Pascoal Meirelles, Aécio Flávio, Helvius Vilela, Célio Balona e, mais tarde, o embrião do Clube da Esquina, com os adolescentes Lô Borges, Beto Guedes e Toninho Horta, além dos poetas e letristas Fernando Brant e Márcio Borges.

Antes desta efervescência da década de 1960, o Maletta também foi palco de encontros notáveis, capitaneados por outra figura emblemática, o ficcionista, poeta, teatrólogo, ensaísta e ex-técnico de basquete do Minas Tênis Clube, João Etienne Filho. O autor de “As Desesperanças”, personagem importante do livro “O Desatino da Rapaziada”, do jornalista e pesquisador belo-horizontino Humberto Werneck, era outro articulador de ideias e pessoas.

Etienne, além de ter mantido fértil correspondência com o modernista Mário de Andrade, que conheceu o Maletta ainda na época do Grande Hotel, é testemunha ocular do início de uma amizade entre quatro jovens escritores em Belo Horizonte no final da década de 1940: os chamados ‘quatro cavaleiros do Apocalipse’, grupo formado por Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende.

O cinema mineiro também teve no Maletta uma geografia instigante. Reduto da crítica cinematográfica belo-horizontina nas décadas de 1960 e 1970, o local era palco de discussões acaloradas sobre o Cinema Novo, a nouvelle vague francesa e o neorrealismo italiano. Intelectuais ligados ao Centro de Estudos Cinematográficos (CEC) aproveitavam o espaço etílico do Maletta para suas resenhas após sessões fílmicas.

Por ali passaram nomes como Guy de Almeida, Fritz Teixeira de Salles, Cyro Siqueira, Jacques do Prado Brandão, Carlos Dênis Machado, Carlos Armando, Paulo Augusto Gomes, Ronaldo Brandão, Maurício Gomes Leite, Ricardo Gomes Leite, Ronaldo de Noronha, Celina Albano, Ricardo Teixeira de Salles, Schubert Magalhães, entre outros.

Em frente à Cantina do Lucas, a Livraria Eldorado, do livreiro Gleudo Catramby, foi palco de noites de autógrafos marcantes de escritores como o argentino Julio Cortázar, o peruano Mario Vargas Llosa e a brasileira Clarice Lispector.

Falar no Maletta sem lembrar a força do poeta andarilho Paulo Leão é pecado sem perdão. De bar em bar, mesa em mesa, ele escrevia seus versos vitais e pulsantes, muitas vezes em guardanapos e restos de papéis avulsos alheios.

Influenciado pela lógica da poesia beat norte-americana, em especial as figuras de Lawrence Ferlinghetti (“Um Parque de Diversões na Cabeça”) e Allen Ginsberg (“Uivo”), Paulo Leão reprocessava em seu liquidificador estético todos estes referenciais, gestando uma poesia de dicção única e especial.

Paulo Leão morreu em 2000 e foi enterrado em Ouro Preto, cidade que adorava. Seus versos não ficaram inéditos graças ao empenho de amigos como o poeta Marcelo Dolabela, que editou em 1997, na coleção “Poesia Orbital”, um volume de textos inéditos de Leão, famoso também pela cegueira de um olho, tal Camões, fruto de um acidente.

Por Paulo Henrique Silva e Alécio Cunha, publicado no jornal Hoje em Dia