Gore Vidal: EUA são o maior estado policial do mundo

Muitos dentre nós esperaram que o governo Obama nos presenteasse com um renascimento da velha república tão brutalmente apagada há poucos anos por aquela gangue de detonadores do sistema judicial, Bush & Gonzales, que levou, por sua vez, a um recente incidente em Cambridge, Massachussets [1], o qual provocou em muitos norte-americanos certo grau de alarme.

Por Gore Vidal*, no Blog Truthdig – Reports

Mas a evidência realmente alarmante é que nem o presidente nem um "estúpido" policial local parecem estar entendendo as novas regras de comportamento dos novos EUA, onde nos sentimos, nós mesmos, tanto como náufragos abandonados em ilha deserta, quanto guardados (será esse o verbo?) por guardas armados instruídos para agirem como se fossem, uma vez armados, a própria lei; e para não aceitarem crítica nem verbal nem de qualquer tipo; e os quais, com certeza, não são obrigados a respeitar qualquer limite imposto por quem eles prendam ou metam-se a atormentar quando lhes dê na telha.

É muito pior do que qualquer previsão. Mas, verdade seja dita, os sinais já apareciam bem claros há alguns anos: os EUA são hoje nação proto-fascista e, parece, sem volta; e não se viu nem se vê, a verdade é essa, nenhum sinal de que nossa imprensa sempre alerta esteja vendo alguma coisa. Perdõem-me se a ironia lhes parecer pesada demais, mas cansei, de vez, dessa conversa de "a maior nação do país", como dizia Spiro Agnew.

Percebi os primeiros sinais do que estava por vir, em 1946. Mancava eu pela cidade de New York, em uniforme do Exército, e vi que a polícia local (detestada por todos) já começava a agir com selvageria, possivelmente porque quase todos os jovens fisicamente capazes, como eu, por exemplo, passáramos anos longe, em terra estrangeira, servindo o Exército. Lembro que havia algum tipo de desfile, e o que parecia ser uns mil, dois mil cidadãos tentavam sem sucesso atravessar a 5ª Avenida.

Esperei durante uma hora, fardado, parado numa esquina, manco –, porque voltei manco, da guerra. Depois de quase uma hora de espera, parei um policial que andava para lá e para cá, e perguntei-lhe, polidamente, quando eu poderia atravessar a 5ª Avenida. Ele zurrou "Pergunte p'rô prefeito!" Respondi que "Oh, sim, sim, vou perguntar." Eu conhecia o prefeito. Mas dificilmente o localizaria, naquele feriado. Limitei-me a protestar como veterano de guerra ferido em combate e com sequelas que me acompanhariam para sempre, mas nada disso comoveu o policial; ele riu de mim. Foi minha primeira experiência com os policiais nazistóides da Polícia de Nova York, cidade que sempre foi a minha cidade, desde criança.

Os anos passaram, e muitas e muitas vezes soube de amigos meus espancados em calçadas de bares chamados "de viados". Ao mesmo tempo, a Polícia jamais parou de repetir lamúrias sobre os terríveis perigos aos quais está exposta enquanto galantemente protege nossa grande cidade, sempre sem receber nem os salários nem os elogios que policiais supõem merecer. Eu pensava, desde então, que o bando inteiro deveria ser mandado para Camp Lejeune. Para verificar se sobreviveriam ao treinamento básico dos marinheiros do Marine Corps.

Cheguei a propor essa solução para o problema que ainda nos aflige, não só na 5ª Avenida, mas também em Harvard Yard, onde um jovem policial destacou-se do batalhão ao responder com grosseria ao presidente, dizendo, naquele tom lamuriento de fala de policial, que ele e o presidente teriam dificuldades semelhantes, mas a imprensa só fala mal do policial; de fato, disse que "bem-vindo ao clube", ao presidente. E depois, já que eram parceiros de dificuldades, o que os tornaria, do ponto de vista do policial, parceiros de grosseria, o policial deixou falar alto a inveja: "O gramado dele é maior que o meu" – o que comprova que muitos acalentam o sonho de chegar à presidência; questão de aumentar o tamanho do gramado.

A verdade é que o verdadeiro significado da confusão em Cambridge não foi noticiado; foi, isso sim, cuidadosamente ocultado por uma imprensa que jamais cuida de noticiar o verdadeiro significado de coisa alguma, desde que possa, com espalhafato, falar e escrever sobre qualquer coisa que jamais aconteceu. Agora, então, já temos definido um elenco de personagens: o próprio presidente, um intelectual conhecido e um jovem policial sem qualquer noção de sua função pública e que, ao ser perguntado por um repórter de rádio por que agira de modo tão agressivo contra o "velho" professor, respondeu: "porque o velho xingou minha mãe". Eu não ouvia essa, desde o jardim de infância no St. Alban, em 1935!

Um dos efeitos daquele trágico negócio em Cambridge – dêem-me licença, leitores; é trágico – foi que o presidente foi obrigado, de repente, a falar por voz própria, pessoal, sua melhor voz, sem poder refugiar-se na autoridade do cargo; falou simplesmente, como cidadão, num comentário adequado, sobre um policial joão-ninguém. Sim.

Escrevi "joão-ninguém", e é "joão-ninguém", literalmente –, embora eu saiba que os seres humanos, quando acontece de nascerem norte-americanos, têm sempre ser louvados, de fato, têm de ser cultuados, como os mais maravilhosamente perfeitos bons sujeitos do mundo. Digo-o com ironia, sim, como parece, e é. Afinal de contas, por que o policial estava armado? Evidentemente, porque é cidadão de qualidade excelsa, eleito por outros excelsos iguais para guiar o rebanho na luta contra turbas de delinquentes. O policial não andaria armado se não fosse comprovadamente homem hiper virtuoso, a ponto de poder andar legalmente armado… a tal ponto que só a arma basta para elevar o policial acima de nós, resto da humanidade.

Mas o presidente só disse que o negócio todo foi estúpido. Não berrou "Como você se atreveu a atacar um velho de 58 anos e um dos mais importantes intelectuais do país? Está pensando que se safará dessa, assim, de cara limpa, sossegado?" Desgraçadamente, essa resposta parece jamais ter passado pela mente presidencial, nessa crise para a qual se espera que a mesma mente presidencial encontre alguma saída.

Eu sei que a porção que coube ao presidente está dura de mastigar, como se diz, mas ante o que aconteceu em Cambridge, deveríamos reunir uma comissão de especialistas e envolver todas as regiões do país. Em todas as cidades, das maiores às menores, os prefeitos reclamam da violência policial, da selvageria. E ninguém faz nada?

E nossos líderes armam-se até os dentes e parecem mais rápidos ao disparar contra nós do que contra os bandidos. Não conheço nenhum país civilizado que admita tal coisa. Qualquer pessoa que tenha a cabeça no lugar baterá o olho nesses brucutus 'guardiões da paz' e proibirá que andem armados: nem um estilingue, um bodoque, nada, nenhuma arma.

Assim aconteceu que nos tornamos cidadania monstruosamente militarizada governada pelos piores elementos que há nos EUA; estamos a ponto de explodir e voar pelos ares, nós também – sensação que me acompanha sempre, nos últimos tempos.

Em minhas andanças pelos EUA, converso com americanos sem dinheiro, sem poder, meros eleitores comuns, tanto quanto, ultimamente, também tenho conversado com mutilados pela guerra, pelo tempo, pela própria vida, por tantas violências, e estou convencido cada vez mais de que somos um país perverso, no qual a polícia é livre para atormentar a vida de pessoas normais, sem prestar contas a ninguém, motivo pelo qual, de tempos em tempos, policiais assassinos são absolvidos. Agora, aconteceu apenas que alguém percebeu que há rugas na face considerada perfeitamente lisa e homogênea de nossos atormentados EUA. É raro que policiais sejam julgados por seus crimes; só muito raramente são, pelo menos, considerados responsáveis pelo que fazem – perturbar a paz da vida e infernizar o dia-a-dia de cidadãos ordeiros.

Sugiro que o presidente, se quiser ser realmente útil – o que poucos presidentes algum dia desejaram ser, como ensina a minha longa experiência –, institua uma comissão para ouvir os cidadãos de todas as principais vilas e cidades nos EUA que tenham o que reclamar sobre ação das forças policiais que já não obedecem a qualquer tipo de controle.

Ninguém parece ter coragem para reagir, porque todos sabem que os policiais dirão: "Reclamam da polícia porque algo tem a esconder. Somos bons cidadãos. Os policiais salvam gatinhos presos em árvores altas e somos amados por todos os homens e mulheres honestas e decentes do mundo."

O que a polícia, em sua ignorância, ainda não entendeu é que todas as polícias perderam toda a confiabilidade e a credibilidade, desde o fim da II Guerra Mundial. São espécie que parasita as franjas da sociedade, sem prestar nenhum bom serviço a quem quer que seja, exceto talvez aos próprios policiais e seus amigos. Claro que haverá reclamações.

Não há como os policiais para reclamarem de o quanto são injustiçados, quando acham que alguém os desafia ou tenta passar-lhes a perna! Para eles, é como se toda a humanidade lhes devesse a vida; como se o policial fosse sempre o melhor e mais valente dentre todos os que andam pelo quarteirão (qualquer quarteirão; todos os quarteirões).

Um dos aspectos do que houve em Cambridge é que o presidente poderia ter sido mas não foi brilhantíssimo nesse assunto, como foi em tantos outros assuntos associados a mandar cidadãos à guerra (é presidente útil, como outros, nesse sentido); e a mídia, sempre condicionada a não mostrar o que importa, tratou logo de fugir do que interessava no caso de Cambridge! Não falaram da violência policial. Falaram – adivinhem! – de RAÇA!

Bem… a raça pode ser responsabilizada por várias coisas, por erro nas Santas Escrituras, pelas marés e o movimento lunar e tal e tal e tudo; pode-se dizer que a raça seria causa de qualquer coisa. Mas é coincidência, puro acaso, que o presidente e o professor preso sejam ambos negros, hoje. Essa coincidência enlouqueceu a mídia. Que o presidente e o professor sejam negros nada significa.

Mas era o que havia, e a mídia agarrou-se à raça, porque a raça nada tinha a ver com aquele policialeco irado que andava entediado e achou por bem divertir-se um pouco à custa de um velho sem meios físicos para se defender. O trabalho de policial é tédio só. Claro. O policial estava armado. Podia matar quem quisesse e dificilmente seria condenado. Ah! Que tentação!

O caso é que o presidente não fez o que deveria ter feito: lembrar os EUA que a Inglaterra – nação muito mais amigável, para viver, do que os EUA, permitam que eu diga, que conheço bem lá e cá – desarmou seus policiais. Não há mais sujeitos zangados andando de lá para cá nas calçadas, carregando armas engatilhadas nos coldres. É lição que os EUA deveriam aprender. Mas já armamos praticamente até as granjas de criar galinhas dos EUA, porque por todos os lados há policiais armados, loucos para puxar briga com alguém.

Chega a ser engraçado um dos adjetivos que nossos novos mestres usam para descrever os cidadãos pervertidos que deliberadamente fazem pouco caso da Polícia, como o professor Gates e eu na 5ª Avenida e, talvez, também o presidente, se o presidente não andasse sempre cercado por aqueles agentes do Serviço Secreto, inabordável e inalcançável pelos policiais de rua. Para a Polícia de New York, paisano que critique policial sempre é "arrogante". Arrogante é a Polícia de New York, pai e mãe da arrogância, arrogantes, maus cidadãos, mal-intencionados.

Encaremos, então, os fatos que saltam aí, aos nossos olhos: é evidente que os EUA já não são república. Já não somos governados por leis. Somos governados por homens armados, somos governados pela violência e pela força. Voltamos aos tempos de Billy the Kid. Autoridade é qualquer homem uniformizado e armado em qualquer beco. Assim chegamos ao ponto em que estamos.

Nem os simples mortais nem o presidente dos EUA fizeram qualquer esforço para pôr os pingos nos ii, no caso de Cambridge. E, se algum dia a mídia decidir noticiar eventos e fatos, terá de começar por dar fim à eterna repetição de que tudo que aconteça de ruim, nas ruas dos EUA, em espaço público ou privado, explicar-se-á, sempre, pelo ódio racial.

Claro que há aspectos raciais em vários conflitos e que houve também, nesse caso. É verdade que há aspectos raciais em vários conflitos; mas não houve, no caso de Cambridge. É importante corrigir o policial armado: o que ele diz é ouvido e será como lição ensinada a outros como ele, para que continuem a agredir gente desarmada; em seguida, bastará 'explicar' que a coisa teve motivação racial… 'porque' o presidente e o professor são negros. Estou sendo claro? Tratar o problema de haver policiais armados pelas ruas como se fosse 'questão racial' é erro grave e perigoso, em país como os EUA.

Ouvindo o que se dizia sobre esses terríveis eventos, ocorreu-me que seja boa hora para a mídia auto-reformar-se e começar a dedicar-se a eventos realmente ocorridos e a notícias verdadeiras; é claro que a questão não será sempre "racial", cada vez que houver um bate boca entre 'notáveis', ou entre policiais e 'notáveis'. Seria ótimo que a mídia percebesse o quanto pode haver de perigo grave cada vez que se inventam motivos ou falsificam-se motivos que – sejamos claros – nenhuma mídia tem autoridade nem para inventar, menos ainda para falsificar.

Cada vez que um negro se mete em briga, seja que briga for, sempre seria reação a atitude racista; ou, se um branco enlouquece, teria sido movido por sentimentos racistas. Não há interpretação que mais vezes esteja errada, do que essa (nos dois casos). É pista falsa, coisa inventada que, não se entende por quê, nunca desaparece das páginas e noticiários policiais.

Tratemos então, afinal, da questão de que realmente interessa tratar: o caso de Cambridge é questão de classe.

Nos EUA, a distância entre os muito ricos e os muito pobres é a maior de todo o planeta, maior que na França. Essa divisão só aumentou, depois dos desastres das altas finanças que se abateram sobre nós. Os EUA já mal se sustentavam sobre as pernas antes de o mundo vir abaixo, há um ou dois anos. Temos de reconhecer que o que sempre se fez por aqui, atos jamais muito decentes ou recomendáveis, passou de repente a ser tratado como pecado mortal; e a polícia parece ter resolvido que, ela sozinha e armada, vingará todos os pobres, contra um professor de Harvard e o salário que recebe (insultantemente alto, do ponto de vista do policial).

Os dias de ganância e cobiça pelos quais passamos só nos fizeram mal, nada nos ensinaram, mas é impossível sobreviver para sempre com tantas divisões, que, na opinião de alguém que, como eu, observa de fora os EUA, já nos transformaram em uma nação de mentirosos absolutos.

Todos mentem. A televisão mente. Os candidatos mentem. E todos repetem que "É, mas… sempre foi assim!" Essa desculpa é um espanto! É claro que nem sempre foi assim! Muitas vezes acontece de mentir demais, para muitos, ser erro muito grave. Verdade, sob o sol, só conheço uma: os ricos mentem sempre, a qualquer custo, quando se trata de não pagar impostos.

Recentemente tive oportunidade de ver o que me parece que seja o fundo do poço. Aconteceu quando eu passeava pelo bosque que há no campus, junto ao prédio principal da Duke University, e vi uma ponte semidemolida, sobre um pequeno córrego. Dei uns passos em direção ao que me pareceu que fosse um fazendeiro da região, que percebera que eu olhava, desconfiado, a enorme pilha de materiais de construção, sacos de cimento etc., porque ele já explicava antes mesmo de eu perguntar: "Vão construir outra ponte – farão outra, muito, muito, muito maior. Enorme" – disse ele. "Mas para quê, aqui, no meio do bosque? Pois se aqui não há estradas" – disse eu. "É", ele concordou, "Estradas não há. Só uma trilha." E eu: "Mas então? Para que uma ponte enorme, se viveram felizes por tanto tempo com a ponte pequena?" Ele explicou: "O que nos disseram é que os Federais temem que aconteçam insurreições civis. Querem estar preparados para o caso de levante popular. Precisam de uma ponte maior, para cruzar o córrego, em caso de emergência."

Desnecessário dizer que fiquei sem palavras. Mas ele parecia querer conversar, e eu perguntei "E antes, o que havia aqui?" E ele: "Uma ponte pequena, para um caminhão pequeno que circula aqui." E eu: "Mas quem falou a vocês, sobre 'levante popular'? E ele: "Bom… todos falaram. Explicaram o tamanho da ponte e o pessoal aqui concordou que melhor uma ponte grande que nenhuma ponte. Agora, o material está aí. É isso."

Voltei para continuar a palestra que eu fazia na Duke University, e conversei com várias pessoas sobre o bosque, a ponte. Ninguém pareceu interessado, nem haviam visto ponte alguma. Perguntei a um professor politicamente engajado, e ele disse que "É, é um problema. Há alguma coisa no ar. O governo está se preparando para alguma coisa; não sabemos o que seja, mas não há dúvidas de que há alguma coisa martelando a cabeça deles." E eu: "O quê? Digamos, talvez… a revolução?" "Oh, não", ele riu. "Aqui é a Carolina do Norte. Nenhuma revolução jamais acontecerá na Carolina do Norte, não se preocupe. Mas, seja o que for, já gastaram muito dinheiro nessa ponte."

Dois anos depois, voltei ao mesmo bosque. Lá está a ponte, enorme, de cimento, já completamente pronta. Encontrei outro cavalheiro da floresta e perguntei-lhe "O senhor vê alguma utilidade para essa ponte, tão cara e enorme?" E ele: "Cara, sim. Ponte cara, mesmo." Tinha o ar satisfeito de alguém para quem a despesa gerara benefícios. Conversamos mais um pouco sobre o governo, sobre o que andariam fazendo, e havia um certo mal-estar, algum não-dito, na nossa conversa. Os dois parecíamos intrigados; algo inesperado e surpreendente acontecera, algo realmente além de qualquer imaginação –, como se uma construção enorme ali estivesse erguida, contra iminentes horrores. Ainda perguntei um pouco, insisti, coisa ou outra. Não arranquei dele nem mais uma sílaba.

* Sobre o autor, ver http://en.wikipedia.org/wiki/Gore_Vidal

[1] Um professor universitário negro foi preso por desacato, por um policial branco do comissariado de Cambridge, Massachussetts.

O artigo original pode ser lido em: http://www.truthdig.com/report/item/20090728_america_the_great_police_state/

Fonte: Blog Vi o Mundo