A história de uma argentina roubada e criada por militares

Aos 24 anos, Victoria Donda descobriu que o início de sua biografia guardava um segredo atroz: filha de militantes de esquerda, a menina foi subtraída e criada por militares. Aos 27 anos, decidiu que dedicaria sua vida às vítimas da repressão.

Por Lamia Oualalou

Victoria Donda

Victoria Donda nunca se esquecerá daquela tarde de inverno, em agosto de 2003. Preocupada com o telefonema de um amigo querido, “Yuyo”, partiu apressada de casa ao seu encontro. O rapaz estava vinculado ao movimento das Mães da Praça de Maio, que agrupa desde 1977 mulheres cujos filhos desapareceram na ditadura argentina (1976-1983).

Segundo ele, o assunto era urgente. “Depois da conversa, saí do bar onde nos encontramos sem saber quem eu era. Voltei para casa caminhando como um zumbi, em piloto automático”, conta a jovem, em tom de voz tenso.

“Yuyo” lhe contou que as Avós da Praça de Maio, mães de desaparecidos que buscam netos nascidos em prisões ou cativeiros, e que posteriormente foram adotados, suspeitavam há anos que ela era uma das crianças. As ''abuelas'' (avós em espanhol) haviam sido alertadas por um telefonema anônimo. “Suponho que a pessoa que fez a ligação sempre tenha desconfiado, já que minha mãe não apareceu grávida”, explica.

Aos 24 anos, Victoria – desde a adolescência militante de movimentos populares –, batizada com o nome de Anália, aprendeu que tinha outra identidade. O homem que chamou de pai durante toda a vida era amigo de militares. Mais tarde, ela descobriria que ele agiu durante a repressão contra seus verdadeiros pais.

A guinada em sua biografia fez com que, em 2007, a jovem, então com 29 anos, seguisse traçando sua carreira política, consagrando-se deputada federal pela província de Buenos Aires, onde atua ativamente a favor dos direitos humanos e contra os torturadores. Victoria se tornou um símbolo.

Instalada no sofá do modesto, mas charmoso apartamento no centro de Buenos Aires, Victoria parece não saber por onde começar a relatar sua história. “Falei com meus pais, que me confirmaram que eu não era sua filha biológica. Chorei muito”, diz. Chocada, a estudante de Direito demorou seis meses para se submeter a um teste de DNA e autorizar que este fosse comparado a um banco de dados organizado pelo movimento das “abuelas” no hospital rural de Buenos Aires.

Acompanhada por vários amigos, entre os quais Lydia, colega militante e sobrevivente do centro de tortura da Escola Mecânica da Marinha (ESMA, na sigla em espanhol), ela pode então comparar seu DNA com o de 500 mulheres grávidas desaparecidas. Ela conta que a cena foi quase cômica, pois havia esquecido sua cédula de identidade em casa.

“A única coisa que tinha era o cartão para alugar vídeos. Eles disseram que não podia fazer o teste sem prova de identidade, e eu respondi que essa era justamente a razão pela qual estava lá. Deu certo”, relata.

Seis meses depois, a resposta chegou: Anália era na verdade filha de María Hilda Pérez e José María Donda, apelidados de “Cori” e “el Cabo” pelos companheiros. Os dois eram membros da guerrilha montonera, facção do partido peronista opositora à ditadura. “Mamãe estava grávida de sete meses quando foi pega”, conta a jovem.

Na estante feita de madeira e tijolos, entre a multidão de livros, há uma foto em preto e branco. “São meus pais biológicos no dia do casamento. Um visual muito anos 1970, não?”, brinca.

A menina nasceu em 1977, provavelmente na “sala das grávidas” da ESMA. Não sabe a data exata. Mas por sorte, descobriu que a amiga, Lydia, tinha conhecido sua mãe nos últimos dias de gravidez e a ajudado depois do parto. “Contou-me que me deixaram quinze dias com ela, para que me amamentasse; estávamos na ‘capucha’”, diz, em referência a uma das duas salas principais da ESMA.

“Pelo o que soube, eu era muito chata, chorava o tempo todo e incomodava as outras prisioneiras”, narra, com um sorriso. De repente, mais séria, ela acrescenta: “Lydia me disse que minha mãe me chamou de Victoria. De um dia para o outro, abandonei Anália e virei Victoria”.

Encontro com a família biológica

Conhecer a nova família foi doloroso. “Tem uma parte boa e uma parte podre”, explica. Victoria descobriu que seu tio biológico, Adolfo Donda, era um torturador famoso, chefe das operações na ESMA. Foi ele quem organizou sua adoção, provavelmente após assistir à tortura e à morte da mãe.

Adolfo foi preso em 1984, um ano após o restabelecimento da democracia, quando o já falecido presidente Raul Alfonsin autorizou o julgamento dos envolvidos na ditadura. Após dois anos na cadeia, foi solto: o mesmo Alfonsin, pressionado pelos militares, havia promovido duas leis de anistia, chamadas de “obediência devida” e “ponto final”.

Victoria soube também da existência de uma irmã mais velha, Daniella, com quem não tem nenhuma relação. “Ela não quer me conhecer. Foi criada por meu tio, que a adotou quando saiu da cadeia, em 1986. Adolfo até mudou seu nome, que era Eva, escolhido por meus pais em homenagem a Eva Perón”, diz.

A avó materna de Victoria ainda está viva. Trata-se de Leontina Puebla de Pérez, uma das fundadoras do movimento das “abuelas”. Mora desde 1986 em Toronto, Canadá. “Leontina militou no movimento para me encontrar, mas quando meu tio saiu da cadeia, ele a ameaçou de morte. Ela então teve que fugir para o exterior”, justifica Victoria, que conheceu a avó vinte anos depois do exílio, em 2006.

Do pai, a garota não sabe nada. “Não acredito que tenha morrido na ESMA, acho que sumiu na Aeronáutica, mas não tenho certeza”, murmura em voz baixa. O único que conhece a verdade é o tio, que foi preso novamente em 2003, depois da revogação das leis de anistia pelo ex-presidente Nestor Kirchner. Ele agora aguarda ser julgado por crimes contra a humanidade. Victoria tentou visitá-lo para saber mais sobre sua história, mas Aldolfo se recusa a recebê-la.

A jovem não rompeu com a família de seus “apropriadores”, neologismo inventado para descrever a situação dos pais adotivos. Seu pai, Juan Antonio Azic, tentou de suicidar em 2003 quando soube que a Justiça iria revelar sua verdadeira identidade de torturador da ESMA.

A própria Victoria relata a cena em um livro publicado em junho passado – uma maneira que encontrou para virar definitivamente essa página de sua vida. “Eu sei, claramente, que fui ‘apropriada’. Mas isso não significa que não tenho sentimentos ambíguos em relação àquele que foi meu ‘apropriador’, são sentimentos”, escreve no livro. “Quando uma pessoa ama outra, não tem jeito. E ninguém, nem as ''abuelas'', acham que tenho de odiar meu ‘apropriador’”, afirma.

A militância

No que a descoberta, de que era filha de militantes, afetou sua vida? “Francamente, nada. Mudei meu nome, não mudei minha vida. Sempre fui militante de esquerda, apesar de ter sido criada em uma família de militares. Parece que tenho o compromisso político no sangue”, conclui Victoria, que conta ter se juntando, aos 16 anos, ao grupo Barrios de Pie, e mais tarde, ao Movimiento Libres del Sur.

Reivindicando uma herança “guevarista”, como lembram as diversas fotos do “Che” penduradas na parede, ela assegura que mergulhar na história dos pais foi uma fonte de firmeza. “Quando descobri que meus pais morreram buscando construir uma sociedade mais solidária, senti o peso da responsabilidade”, explica.

Em 2007, os militantes do Movimiento Libres del Sur a escolheram como candidata ao cargo de deputada federal. Na época, Victoria tinha 29 anos, e aceitou o desafio de compor a coligação do casal Kirchner, a Frente pela Vitória. Contra todas as previsões, foi eleita em outubro daquele ano.

“É a deputada mais jovem da história do Congresso, a segunda militante de direitos humanos a se eleger, mas a primeira mulher, e a primeira filha de desaparecidos”, lembra Horacio Verbitsky, criador do jornal de esquerda Pagina 12 e uma das principais figuras da luta contra a ditadura na Argentina.

Sua adesão ao movimento dos Kirchner vem das decisões históricas tomadas por Nestor Kirchner poucas semanas após a posse em 2003, a favor dos direitos humanos e contra os torturadores. Em maio daquele ano, Kirchner fez uma mudança na cúpula do Exército, aposentando todos os que tinham ainda algum vínculo com a ditadura. Em agosto, revogou as leis de anistia, o que abriu a porta para centenas de julgamentos.

A partir daí, os responsáveis pelas torturas e desaparecimentos começaram a ser citados na Justiça, depois de terem sido denunciados por grupos de militantes, nas chamadas campanhas de “escrache”. Nelas, defensores de direitos humanos se reuniam em frente à casa de um torturador e pintavam as paredes, para que toda a vizinhança soubesse quem morava lá. Com a eleição de Kirchner, a continuidade desses atos foi garantida pela conivência implícita das autoridades.

Fim da lua de mel

Mas a lua de mel com o casal Kirchner não durou. No começo de 2009, Victoria Donda saiu da coligação governamental. Horacio Verbitsky matiza o peso da decisão. “Não foi uma ruptura pessoal e sim, uma decisão de seu movimento político, que não concordou quando Kirchner decidiu encabeçar o partido peronista. Eles estavam a favor de uma política de esquerda transversal”, explica.

Para ele, Victoria continua ao lado do governo na maioria das brigas, como, por exemplo, contra as organizações rurais que se negam a pagar mais impostos ao governo.

Há alguns meses, ela não escondeu, porém, sua irritação com a falta de apoio do governo ao seu projeto de lei, que proíbe suspeitos de violações de direitos humanos de se candidatarem em eleições. Em maio, ela entrou pessoalmente na Justiça contra Luis Abelardo Patti, que desejava tornar-se deputado federal.

Nos anos da ditadura, Patti era um oficial da polícia da província de Buenos Aires conhecido pela ferocidade contra os “subversivos”. Ele nunca teve problema em admitir que se orgulhava de ter organizado sessões de tortura contra aqueles que considerava “inimigos do Estado”. A manobra teve sucesso: a Justiça finalmente desabilitou sua candidatura.

A jovem deputada fez dos direitos humanos o centro de seu trabalho. “Victoria apresentou muitas propostas de leis para acelerar o julgamento contra os repressores. Também faz a coordenação com organismos de direitos humanos”, diz Verbitsky.

Com a aparência jovem, a portenha é vaidosa. Gosta de salto alto, “para esconder a baixa estatura” e capricha na maquiagem. Victoria não parece provocar temores na direita política. “Eles não acham que ela seja uma ameaça, pois ainda é jovem e sempre fala de uma forma muito suave”, analisa.

Ameaças

Alguns extremistas foram menos comedidos. Durante a campanha eleitoral, a candidata encontrou por diversas vezes uma boneca pendurada em sua porta com a inscrição “AAA”, em referência à Aliança Anticomunista Argentina. Conhecido também como Triple A, foi um esquadrão da morte de extrema direita em atividade em meados da década de 1970, particularmente no governo de Isabel Perón (1974-1976). Posteriormente, vincularam-se à junta militar, participando da repressão contra os “subversivos”.

“Eles ainda querem nos silenciar, mas não conseguirão. É somente por meio do confronto com sua memória que uma sociedade pode ser construída. Como vamos dizer a um jovem que é ruim roubar se, ao mesmo tempo, ele sabe que vários torturadores estão livres, impunes?”, questiona a deputada.

É por esta razão que Victoria aceita contar sua história. Em 2006 e 2007, ela autorizou o diretor cinematográfico Adrian Jaime a seguir seus passos na busca da identidade. O documentário, que leva o nome de “Victoria”, estreou em março de 2008.

O filme mostra o primeiro encontro com sua avó, em Toronto, e caminhadas feitas na província (estado) de Entre Rios, norte do país, onde seu pai nasceu. Ela participa de uma reunião de ex-companheiros de escola, do Liceo Naval, e conhece uma amiga da militância.

Em entrevista ao Pagina 12, Jaime sublinha a coragem da garota: “Buscar uma conexão com a família original não é uma decisão simples”, afirma. Segundo ele, a história de Victoria pode ajudar outros que estão em situação similar. “Calculo que muitos jovens, que de alguma forma suspeitam que sejam ‘apropriados’, preferem não dizer nada”, acrescenta.

Número 78

Victoria é a neta recuperada numero 78 – é desse jeito que são apresentados na mídia argentina à medida em que aparecem. Até agora, as ‘abuelas’ conseguiram recuperar 95 netos. Segundo estimativas, existem pelo menos 400 outros jovens em famílias de militares ou amigos da junta. Para o movimento, é uma corrida contra o tempo: cada vez mais idosas, as avós morrem, e levam consigo o material genético que ajudaria no reconhecimento dos apropriados.

No site das Avós da Praça de Maio, uma galeria de fotos em preto e branco mostra jovens mulheres desaparecidas e a data aproximada do nascimento de seus filhos, segundo o tempo de gravidez de quando sumiram. Na legenda, o texto: “se você nasceu entre 1975 e 1980 e tiver dúvidas sobre sua origem, consulte os casos dos netos que estamos buscando”.

Fonte: Opera Mundi