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Miguel Bruno: Brasil precisa superar visão neoclássica-liberal

Após a palestra realizada na sede nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) na cidade de São Paulo na manhã de quinta-feira (6), promovida pela Fundação Mauricio Grabois, o professor Miguel Bruno, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), concedeu a seguinte entrevista ao jornalista Osvaldo Bertolino.

Professor, como o senhor pensa a premissa do financiamento de um novo projeto nacional de desenvolvimento, assunto muito presente no evento de hoje?

A mídia e as pessoas de um modo geral raciocinam do ponto de vista neoclássico-liberal. Ou seja: para investir e financiar você tem de ter uma poupança prévia. A gente tem de superar a visão neoclássica-liberal. Do ponto de vista “kaleckiano” (referência a Michael Kalecki, economista polonês especializado em macroeconomia e um dos economistas mais destacados do século 20, às vezes lembrado como o “Keynes” da esquerda), por exemplo, o desenvolvimento pode ser financiado por lucros retidos, lucro das próprias empresas.

A mera acumulação de poupança por si mesmo não garante o investimento. Até porque há uma contradição entre a poupança das empresas e a poupança das famílias. Poupança das famílias significa, em última instância, sacrifício do consumo. E portando queda de faturamento. Ou seja: se as famílias aumentarem suas poupanças, o que vai acontecer? A poupança das empresas cai. A poupança das empresas vem do lucro, vem do faturamento. Portanto, vem do consumo. Do ponto de vista contábil, consumir acaba sendo poupar.

Mesmo que a gente aceitasse a idéia da necessidade de ter recursos prévios, eu diria que esses recursos já existem. Só que estão empossados nas finanças. Você tem uma massa de recursos enorme que hoje representa 35% de todo estoque de capital fixo produtivo do país. É inclusive maior até do que o próprio PIB (Produto Interno Bruto). Essa massa de recursos está retida nas finanças e não migra para os setores produtivos.

Tem que haver uma estratégia. À medida que houver um modelo econômico que permita taxas de juros menores e câmbio competitivo, essa poupança vai ser canalizada para a atividade produtiva, transformando a poupança financeira virtual em poupança real. O problema do financiamento, se a gente adotar uma perspectiva “kaleckiana”, é muito fácil de ser resolvido. Em certo sentido, as empresas se autofinanciam.

Uma máxima de Kalecki ficou muito famosa quando, através do seu modelo de crescimento, ele argumentou que os capitalistas ganham o que gastam e os trabalhadores gastam o que ganham. É a idéia de que o lucro dos capitalistas provém do investimento. O lucro no período subseqüente provém do investimento no período anterior, que por sua vez provém da massa de recursos retida que ele já possuía no período anterior.

Hoje, cerca de 30% a 40% migram para a produção. Ou seja: cerca de 60% estão sendo alocados em finanças. Então, os recursos para financiamentos existem, mas estão reditos na órbita financeira. É preciso então criar condições estruturais, macroeconômicas, para eles irem para a produção.

A ata do Copom e o boletim Focus do Banco Central indicam que não tem mais queda da taxa básica de juros, a Selic, por um longo tempo. Para onde vamos com essa política monetária?

Não tem mais (queda dos juros) porque hoje você tem uma política monetária cujo objetivo é mais do que controlar a inflação. Ela na verdade está manietada pela lógica de acumulação rentista patrimonial que foi se desenvolvendo ao longo dos anos 90 na economia brasileira. Ou seja: o Banco Central na verdade tem o discurso antiinflacionista, mas também olha o balanço de pagamento, fica preocupado com a fuga de capitais; ele olha as carteiras dos detentores de capital.

Ou seja: dos agentes que financiam a dívida publica, embora não diga isso o tempo todo, ostensivamente. Quando ele diz que não pode baixar os juros, acaba confirmando o que estou dizendo. Na verdade, você tem uma política monetária que também tem o objetivo de garantir a rentabilidade dos capitais alocados em finanças.

E a crise financeira, professor? Como vem atingindo o Brasil?

O primeiro ponto a ser destacado é que o Brasil tem uma vantagem. A gente tem um mercado financeiro que não se engajou em operações super-especulativas, como o subprime ou operações de super-crédito. A gente teve um endividamento familiar muito mais baixo do que o padrão norte-americano. Portanto, temos um comprometimento menor da renda das famílias do que o caso americano. Isso para nós foi uma vantagem.

Por outro lado, a crise impactou rapidamente a economia brasileira pelo canal da economia real. Porque uma parte das empresas produtivas tem ativos financeiros. O seja: tem lucros que não são de suas atividades operacionais. Evidentemente, pagaram um preço alto quando esse castelo de cartas ruiu a partir da economia americana. Empresas não financeiras estavam se comportando como empresas financeiras.

Evidentemente que do ponto de vista do desenvolvimento isso não é uma coisa saudável, embora do ponto de vista do proprietário do capital, da empresa, possa ser muito justificável. Ou seja: compensar não lucro — ou lucros menores — no setor produtivo com lucros muito mais fáceis e rápidos em setores financeiros. Agora, para a economia nacional isso é muito ruim. Eu espero que isso possa ter melhorado, porque eu imagino que apenas uma parte das empresas está com seus balanços comprometidos com essas operações financeiras que nada têm a ver com suas atividades fins.

Recentemente Paul Krugman escreveu um artigo intitulado “Recompensando quem nos prejudica”, sobre a ajuda do Estado norte-americano a Wall Street. Isso quer dizer que a mão do Estado continua ajudando o cassino global?

O caso americano é específico porque os estudos mostram que aquela economia tem sido considerada a mais financeirizada do mundo. Os Estados Unidos conseguiram esse patamar. Agora, não é um modelo a ser seguido por ninguém. Até porque eles são específicos. Eles são hegemônicos. Por vários critérios, mas sobretudo porque emitem sua divisa, a moeda internacional. Isso dá um conforto grande em sua política. A impressão que tenho é que não se tem ainda um conhecimento — até porque cada crise tem sua especificidade — da melhor forma de gerir a crise.

O combate à crise tem sido feito por meio de tentativas e erro. E com medidas muito pragmáticas. Ou seja: medidas que visam a garantir um mínimo de demanda efetiva. Porque eles sabem que se a demanda cair mais a economia vai da recessão para a depressão. É uma lição que eles tiraram dos anos 30. Nos anos 30, o Fed (o banco central dos Estados Unidos) ficou na dele — o Fed ficou quieto. Então, a economia foi rapidamente da recessão para a depressão. Isso eles aprenderam e vão tentar evitar o máximo. Como? Mobilizando o Estado, fazendo o Estado gastar mais com políticas de transferência de renda e de ajuda a bancos e empresas.

Agora, a experiência internacional mostra que uma grande crise financeira pode levar de três a quatro anos para realmente ocorrer uma recuperação forte e durável. Pode haver uma recuperação por espasmo, momentânea, depois desaba de novo. Uma recuperação sólida normalmente leva de três a quatro anos. Isso com base na experiência de crises anteriores. Falo do caso americano. No nosso caso, como o epicentro no foi aqui, a gente pode voltar a crescer já a partir do ano que vem.

Já se disse que a Europa do Leste pode ser o “subprime” da União Européia. Esse diagnóstico procede?

Eu não conheço muito as especificidades nacionais daquela região. Mas alguns países se aproximaram muito desse padrão de financeirização por opção. Foram induzidos pela ideologia neoliberal a aderir a esses pressupostos como senha de entrada para participar dos recursos externos, de novas linhas de financiamento. Ou seja: se comprou desses países essa adesão. É possível sim que eles tenham problemas.

Agora, estudos recentes mostram também que os países que foram menos afetados com a crise americana são justamente os que não se permitiram isso. Países que mantêm um certo controle de sua conta de capital, que não se permitem a liberalização como a gente praticou e não se permite taxa de câmbio apreciada da forma como a gente vem praticando foram mais preservados. Ou seja: tem de haver um mínimo de regulação dessas variáveis que são fundamentais — taxas de juros e taxas de câmbio. Para não falar da taxa de lucro e da taxa de salário. Seriam as quatro variáveis fundamentais.

Mas a taxa de juros e a taxa de câmbio têm sido, eu diria, a nossa desvantagem estrutural. É preocupante quando um órgão importante como o Banco Central argumenta que não tem como baixar mais os juros. Não tem como baixar mais porque está contido, esta na verdade aprisionado pela lógica da acumulação patrimonial, que vê na divida publica esse ganho fácil que é o ganho rentista.

A gente sabe, pelas que pesquisas, que os 10% mais ricos da população brasileira detêm 80% dos títulos da dívida pública. São as famílias que são diretamente beneficiadas pelas taxas de juros, com a política monetária atual. Evidentemente, essas famílias controlam a mídia e tem um forte lobby no aparelho do Estado e na formatação, no modelo e nos rumos da política econômica.

A explosão do desemprego seria a face mais cruel da crise?

Seria a face mais cruel, mas também a mais esperada. Porque, como toda crise em geral, a variável de ajuste passa a ser o mundo do trabalho, passa a ser o emprego e o salário. Mas, no caso dos regimes financeirizados, a coisa é pior ainda. Sobretudo em uma economia como a dos Estados Unidos, que já tem uma desigualdade social grande — menor que a nossa, mas, para eles, para um país desenvolvido, muito grande. Porque não tem um Estado de bem-estar. Até porque nunca quiseram ter. Por questões de formação política, ideológica, sempre tiveram um Estado menos presente em termos de mecanismo de proteção social.

Eu me lembro de um dado citado por um colega francês, que mencionava, em finais de 1988, que cerca de 40 milhões de trabalhadores nos Estados Unidos não tinham nenhum mecanismo de proteção social. Então, isso agora com a crise se agrava porque, como o regime de acumulação é financeirizado, a gente sabe que para eles funcionarem jogam no mundo do trabalho todos os ajustes macros e micros relevantes. É por isso que querem trabalho flexível, trabalho precário. Ou seja: emprego e salário são variáveis de ajuste em um regime financeirizado quando ele está funcionando bem. Imagine quando ele está em crise, como agora.

Então, o efeito negativo da crise sobre o mundo do trabalho vai ser drástico. Vai ser enorme. Se isso acontecesse no Brasil, também seria ruim porque não temos ainda mecanismos de proteção social, não temos uma renda mínima de inserção social como têm a Alemanha e a França. A gente tem aí um seguro-desemprego que é uma coisa meteórica, que na verdade não dá uma sustentação às famílias desempregadas. Então, isso seria um problema sério.

A gente sabe que de uma ótica capitalista a relação capital–trabalho tende a subordinar o trabalho. Mas nunca quanto em um regime financeirizado. Em um regime capitalista financeirizado, essa subordinação vai para um paroxismo, ela vai lá para cima, ela é exacerbada.