George Câmara: Anistia, trinta anos – Uma ferida aberta

Resultado de forte pressão popular, o Congresso Nacional aprovou em 28 de agosto de 1979 a Lei de Anistia. Grande conquista do nosso povo, essa ação possibilitou a volta dos brasileiros exilados, vítimas do regime militar de 1964, bem como a libertação dos que se encontravam ainda encarcerados, sob condenação pela famigerada Lei de Segurança Nacional. Foi fundamental, porém insuficiente, na medida em que deixou lacunas e contradições. E uma ferida aberta.

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Como consagrar numa mesma lei o reconhecimento de direitos iguais a torturados e torturadores? Que ordenamento jurídico permite a equiparação entre algozes e vítimas? Já não basta o fato de serem irreparáveis os danos causados pelo regime de exceção?

Nenhum país avança, em matéria de democracia, escondendo a sua História. Mesmo aquilo que aconteceu de ruim e de vergonhoso precisa ser lembrado, até para não ser repetido no futuro. O argumento de “colocar uma pedra” nesse assunto para esconder a vergonha, repetindo o que foi dito em relação à abolição da escravatura no Brasil, no final do século 19, não contribui para que tenhamos uma sociedade amadurecida e um país respeitado. Que consistência tem a identidade de um povo, cuja base histórica se acha ancorada em mentiras?
A luta pela anistia começou no início dos anos 1970. No início estava restrita aos familiares das vítimas e depois ganhou a força e a adesão de amplos segmentos populares, culminando com a formação dos Comitês pela Anistia, dentro e fora do Brasil, espalhando-se rapidamente por todos os estados da federação.

A bandeira da anistia ampla, geral e irrestrita para todos os presos políticos e exilados vítimas da repressão militar ganhou as ruas, as praças, as escolas, os sindicatos e as universidades, principalmente, transformando-se numa intensa e organizada mobilização popular.
Nas eleições para o Congresso Nacional, em 1978, o tema ganhou destaque e foi pautado pelos candidatos progressistas do então MDB, resultando na eleição de uma expressiva bancada com o compromisso público de defender no parlamento a bandeira da anistia. Ocorre que o projeto de anistia ampla, geral e irrestrita, de forte apelo nacional, não obteve maioria no Congresso e foi rejeitado.

Ao ser pressionado o governo envia o seu projeto, de anistia restrita. Em sessão histórica, diante das pressões com as galerias ocupadas por populares, o Congresso Nacional aprova a Lei 6.683 com base no que foi enviado pelo governo militar. Tal projeto, além de excluir do seu alcance os exilados e presos condenados por participação em ações armadas contra o regime, pretendeu equiparar os torturadores com os perseguidos políticos.

Os verdadeiros criminosos, responsáveis pelas atrocidades praticadas, inexplicavelmente tiveram tratamento semelhante às vítimas das prisões ilegais, das torturas, das sevícias, das demissões e dos afastamentos injustificáveis de seus empregos, de suas funções e de seus estudos. Muitos tiveram que abandonar suas famílias e seu país. E estamos falando dos sobreviventes, pois o pior destino se reservou aos tantos outros que foram mortos e “desaparecidos”.

Outro ambiente político foi conquistado com a luta do povo brasileiro. No Ministério da Justiça foi constituída a Comissão Nacional de Anistia. Esta, ao aplicar a atual Lei da Anistia (Lei 10.559/02), cumpre um efetivo programa de justiça para o Brasil. A reparação, se é que se pode reparar tais danos, é exigência de toda a humanidade.

Por dever de justiça, quero dedicar estas linhas a Eveline Macedo e Alírio Guerra (em memória), estudantes punidos pelo Decreto 477, dirigentes do PCdoB/RN, recentemente anistiados pelo governo brasileiro. Dignidade, ainda que tardia!

por George Câmara, petroleiro, advogado e vereador em Natal pelo PCdoB