Abel Rodrigues e Ielnia Gurjão: histórias de luta e ideais

O Vermelho/CE acompanhou dois dos 81 processos julgados pela Caravana da Anistia no Ceará: Abel Rodrigues e Ielnia Gurjão. Considerada a maior caravana desde sua instituição, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça esteve em Fortaleza nos dias 05 e 06 de outubro e julgou dezenas de processos de cearenses que afirmam terem sido perseguidos durante Ditadura Militar. Além do presidente da Comissão, Paulo Abrão, mais 11 conselheiros fizeram parte da comitiva.

Julgamento Anistiados

O auditório ficou lotado. Presentes amigos, companheiros de Partido, familiares. O conselheiro Egmar José de Oliveira, relator do processo de Abel Rodrigues saiu do procedimento normal do julgamento e leu relato onde o comunista narra parte de sua rica história.

Mineiro de Montes Claros, Abel chegou a cursar até 3º ano de Filosofia no seminário. Quando jovem, cursou Economia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), época em que conheceu a jovem Gilse Cosenza, com quem se casaria em seguida. As atividades estudantis nos duros anos da Ditadura os expulsaram de Belo Horizonte. Na cidade de Coronel Fabriciano, região metalúrgica, o jovem casal trabalhou na área rural do município. Devido ao crescente cerco policial, Rodrigues se viu novamente obrigado a fugir. Devido às constantes mudanças de endereço, sequer soube da morte da mãe.

Neste meio tempo, veio a gestação de Gilse. O tratamento pré-natal foi precário devido ao medo de serem presos. Apenas no sétimo mês de gravidez, o casal soube que a gestação era de gêmeas: Juliana sobrevive mas Adriana, devido à falta de atendimento pré-natal só resistiu 15 dias.

Após o nascimento das filhas, Gilse foi presa. A tortura não era só física mas principalmente psicológica. “Os militares ameaçavam de fazer com Juliana, na época com apenas quatro meses, o mesmo que faziam com Gilse”. Ainda com a esposa presa, Rodrigues resolve mudar de identidade e vive clandestinamente. Desta vez o destino é São Paulo. Com sua libertação, Gilse se reencontra com Rodrigues para dar continuidade aos planos do casal.

Para o ex-estudante do curso de Economia e ex-camponês, a solução foi encontrar outro meio de vida digno para manter a família. “Foi quando aprendi a profissão de fotógrafo. Trabalhava em escolas e fazia de tudo um pouco: primeira comunhão, festa de São João, batizados, casamentos, 15 anos. Importante era melhorar meus ganhos e sustentar a família”, recorda.

Missão de reestruturar PCdoB no Ceará

Em 1972, Rodrigues que era militante da Ação Popular (AP), filia-se ao PCdoB. Nesta época intensifica-se a ofensiva ao Partido no sul do país. Em 1975, surge a necessidade de o Partido se reestruturar no Ceará. Consultado, o casal aceita o novo desafio e, mais uma vez, a mudança acontece. Pedro Pomar, então responsável pela organização do PCdoB envia o casal para o Nordeste. “A nossa primeira tarefa era não sermos presos, conhecer a realidade do povo e nos integrar”, relembra Rodrigues.

Já no Ceará, a profissão de fotógrafo foi o que também ajudou a família a se manter. “Com a abertura lenta e gradual da Ditadura, consegui me estabilizar e me tornei servido público municipal mas sempre continuei nas tarefas de militante comunista”, enfatizou.

Diante dos fatos narrados pelo próprio requerente e lido durante o julgamento, o relator Egmar  José de Oliveira votou pela declaração de anistiado político e determinou a reparação financeira de limite máximo sendo em prestação única contando as perseguições políticas de janeiro de 1966 a outubro de 1988. Além disso, o relator determinou o retorno de Abel Rodrigues ao curso de Economia na UFC. “A Universidade é obrigada a devolver a vaga no curso que lhe foi tirada devido ao Regime”, sentenciou.

Após a leitura do processo, Abel Rodrigues comentou sobre a narração. Segundo o comunista, ele relutou em fazer o pedido de reparação à Anistia pois pensava que o fim da Ditadura em si só encerraria os males por ela cometidos.

Rodrigues ressaltou o papel da Comissão de Anistia e declarou: “Vocês estão contando a verdadeira história do Brasil. Ela está no relato das pessoas que lutaram por dias melhores e não nos documentos do DOPS. É preciso valorizar esta memória para que o povo nunca se esqueça e para que estes episódios nunca mais se repitam”.

O comunista destacou ainda que novas figuras surgem hoje como exemplo de consolidação da democracia no país. “Vocês que fazem parte da Caravana, por exemplo, mostram os novos valores e defendem a luta por uma sociedade mais justa. A Comissão de Anistia demonstra que é necessário e possível um mundo novo sem opressão, preconceitos, com uma sociedade mais humana”. Rodrigues destacou ainda que o Brasil precisa reforçar um novo projeto de desenvolvimento. “O país tem condições de ser uma grande nação em todos os sentidos, proporcional a sua dimensão. Todos devemos nos integrar nesta nova luta”, conclamou.

Ilenia Gurjão: exemplo de luta

A vice-presidente da Comissão de Anistia, Sueli Belato, foi relatora do processo de Ielnia Gurjão Johnson, irmã de Bergson Gurjão que também foi vítima da Ditadura Militar. Antes de iniciar seu relato, a conselheira destacou o papel pedagógico que a Caravana realizava nos estados. “Já visitamos os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Bahia, Goiás, Pará e Minas Gerais agora chegamos ao Ceará. Gostaríamos de ver esta sala lotada, que a juventude de todo o país tivesse conhecimento da história daqueles que lutaram a favor da democracia”, ressaltou.

Ielnia foi estudante do curso de Farmácia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em 1967, foi eleita secretária geral do Diretório Central dos Estudantes. Sua primeira prisão foi em 1968, no 30º Congresso da UNE em Ibiúna. Segundo Ielnia, a conclusão do curso seria no final do ano de 1970 mas, devido às perseguições, teve que abandonar a universidade e se mudar para o Rio de Janeiro porque não conseguia emprego no Ceará.

 Em 1972, quando residia em Parnaíba (PI), conseguiu emprego na empresa Vegetex. Foi durante o trabalho que três agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) a sequestraram e a levaram encapuzada até Recife, onde foi torturada principalmente para dar informações sobre o irmão Bergson Gurjão, também perseguido pela Ditadura. “Acredito que só cessaram as minhas torturas depois de confirmada a morte dele”, avalia. Após sua libertação, foi “devolvida” para uma tia que teve que assinar um documento confirmando que ela estava em “perfeitas condições físicas e mentais”. Em novembro de 1972, quando fazia trabalhos voluntários, conheceu um americano com que se casou na época. Ielnia teve o processo de imigração dificultado pela justiça brasileira. Ela foi interrogada até meados de 1977.

Ielnia destaca a importância de ser anistiada pois toda a família estava envolvida neste processo. “Após minha prisão, meu pai entrou em falência e sofreu um ataque cardíaco. Em 1969, ele faleceu. Acho que se entregou. Foi como um suicídio lento pois já não tinha gosto para mais nada”, considera.

A importância de Bergson na família

Segundo a anistiada, após sua imigração para os Estados Unidos, o foco da família passou a ser Bergson, irmão desaparecido. “Ainda guardo dele a imagem do menino idealista carismático. Sinto falta de não ter crescido com ele”, confidencia.

Sobre a reparação financeira, Ielnia foi categórica. “Nada significa mais que a paz da minha família. Uma vida não tem valor monetário”. A ex-militante declarou a alegria de ter concluído o processo de reparação. “Fico feliz tanto sobre o meu caso quanto o do meu irmão mas sabemos que o processo de consolidação da democracia não está acabado. Apesar de importantes, estes são apenas passos”. Conforme solicitado, Ielnia terá direito a Prestação Mensal Permanente e Continuada, incluindo valor retroativo datado de sua primeira prisão.

De Fortaleza,
Carolina Campos