Processo de Bergson Gurjão é julgado durante Caravana da Anistia

Baseado em matérias publicadas pelo Vermelho/CE, o relatório do julgamento do processo requerido por dona Luiza Gurjão Farias, pleiteando o reconhecimento da condição de anistiado político post mortem em nome de seu filho Bergson Gurjão Farias e reparação econômica, foi aprovado por unanimidade. O julgamento aconteceu nesta segunda-feira, 05 de outubro, durante visita da Caravana da Anistia ao Ceará. Leia a seguir, a íntegra do documento.

Ministério da Justiça – Comissão de Anistia
Requerimento de Anistia n.° 2009.01.64681
Requerente: Luiza Gurjão Farias e outros (as) (Bergson Gurjão Farias)
Relator (a): Virginius José Lianza da Franca

Guerrilheiro Araguaia.
Desaparecido.
Estudante e Professor
Declaração Post Mortem de Anistiado Político.
Ausência de nexo causal entre a perda do vínculo e a perseguição.
Prestação mensal permanente e continuada
Impossibilidade.
Prisão, morte e desaparecimento do corpo.
Prestação única.
Possibilidade.
Demonstração de dependência econômica.
Deferimento pedido

I. Perseguido como guerrilheiro do Araguaia e desaparecido político tendo o corpo sido identificado.
II. Declaração post mortem da condição de anistiado político e concessão da reparação a sua genitora e dependente.
III. Deferimento do pedido.

Trata-se de requerimento de anistia formulado, em 13/08/2009, por Luiza Gurjão Farias, a esta Comissão, pleiteando o reconhecimento da condição de anistiado político post mortem em nome de seu filho Bergson Gurjão Farias (desaparecido político que teve óbito registrado em 07/02/1996 por forca da Lei n° 9194/1995, e reparação econômica em prestação única, com base na Lei de Anistia n° 10.559/2002.

I. Relato da Requerente

2. A Requerente apresenta que o Anistiando era estudante de Engenharia Química da Universidade Federal do Ceará (UFC), bem como que ele trabalhava e ajudava no sustento da sua família, que como membro do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi morar no sul do Pará para participar da Guerrilha do Araguaia, e "como é público e notório o mesmo foi assassinado por agentes do Estado".

3. Assim, junta aos autos os seguintes documentos:
a) Notícias de jornal e sites sobre o Anistiando.
b) Cópia dos estudos de identificação do corpo do Anistiando.
c) Cópia do livro "Direito a Memória e a Verdade".

4. Constam também nos autos, em razão de diligências efetuadas por esta Comissão, os seguintes documentos:
d) Certidão do Superior Tribunal Militar (STM).
e) Noticias de site.

II. Histórico Geral da Guerrilha do Araguaia

5. em 1966, o Partido Comunista do Brasil – PCdoB, após deliberação na sua VI Conferência Nacional, aprovou o documento “União dos Brasileiros para Livrar o País da Crise, da Ditadura e da Ameaça Neocolonialista”, pretendendo criar um foco de resistência ao Governo Militar, que desde 1964 se instalara no Poder do País, e promover o movimento político de implantação de guerrilha rural na Região do Rio Araguaia, próxima à fronteira entre o Estado do Pará e do Tocantins (Municípios de São Domingos do Araguaia, São Geraldo do Araguaia, Brejo Grande do Araguaia, Plaestina do Pará, todos no Pará, e Xambioá e Araguatins, no Tocantins) área conhecida como “Bico do Papagaio”.

6. De acordo com relato do então Presidente Nacional do Partido Comunista do Brasil, João Amazonas, prestado à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em 1996, os primeiros militantes chegaram à região do Araguaia no ano de 1967, e o objetivo desses jovens seria “organizar a resistência armada contra a ditadura, já que não havia mais espaço para outras formas de luta nas cidades”.

7. Ainda segundo João Amazonas, a escolha da regido do Araguaia se deu primeiramente em razão da resistência à ditadura na cidade oferecer muitos riscos à segurança dos militantes. Levou-se também em consideração o fato da região do Araguaia ser um local de fronteira entre três estados: Goiás (hoje Tocantins), Maranhão e Pará. Foi relevante, ainda, o fato de possuir uma população disseminada numa mata densa, com muita pobreza e sofrimento.

8. Face aos indícios de atividades subversivas (termo utilizado para fazer menção a todos aqueles que, à época, se insurgiram contra o regime ditatorial instituído no Brasil), o Comando Militar do Planalto e os Órgãos de Informações das Forças Armadas coordenaram a realização de operações de informações na área, que confirmaram a existência grupos de subversivos chefiados por elementos experientes, já bem conhecedores da região e muito relacionados com a população local, demonstrando preparação planejada e longa vivência na área.

9. O início do ano de 1972 é marcado pelas operações de informação das Forças Armadas. Estas operações tinham como principal objetivo conhecer melhor quem eram os guerrilheiros e guerrilheiras e capturar pessoas chaves, dentre estes, moradores que poderiam fornecer mais informações como a localização dos destacamentos, o tipo de armamento utilizado e a quantidade de pessoas envolvidas.

10. A primeira operação de informação, denominada Operação Peixe I, ocorreu entre 27 a 30 de março de 1972. Subseqüente a esta, foi realizada a Op. Peixe II de 03 a 12 de abril de 1972; a Op. Peixe III, de 11 a 29 de abril de 1972; a Op. Peixe IV, de 05 a 09 de maio de 1972 e a Op. Peixe V, iniciada em 09 de maio de 1972, não se sabendo exatamente a data final.

11. Os combates ocorreram dentro da Floresta Amazônica, num polígono de aproximadamente 7.000 km² entre o Sudeste do Pará e Norte de Goiás (atual Norte de Tocantins). Área extensa, com características de selva, afastada dos centros vitais do País e de difícil acesso, com população rarefeita, de baixa instrução e precária situação econômicas.

12. Foi utilizado um contingente estimado entre 3 mil até mais de 10 mil homens provenientes do Exército, Marinha, Aeronáutica e Polícias Federal e Militar do Pará, Goiás e Maranhão. Conforme aponta Hugo Studart, na obra "A Lei da Selva", durante a segunda campanha as “Forças Armadas utilizaram nada menos que 3.260 homens combatentes por doze dias, todos regularmente fardados, na maior mobilização militar do País desde a II Guerra Mundial”. Os dados colecionados pelas forças armadas dão notícias de que cerca de 75 guerrilheiros teriam sido mortos no local.

13. Assim, as Forças Armadas brasileiras realizaram três campanhas para eliminação desse foco guerrilheiro, entre março de 1972 aos primeiros meses de 1975. Sendo que na terceira e última fase de repressão, ocorrida entre 1973 e 1974, houve muita violência, e todos os guerrilheiros teriam sido mortos, mesmo guando presos com vida.

14. Sabe-se que, após 1975, foi realizada na região uma espécie de operação limpeza, que durou até meados de 1978, com a finalidade de eliminar focos de militantes remanescentes na região. Os militares, disseminação do movimento e mantê-lo encerrado em limites utilizaram das chamadas táticas de combate à guerra revolucionária.

15. Essa limpeza aparentemente inclusive se deu em relação aos vestígios de documentos e corpos. O jornalista Hugo Studart apresenta que as Forças Armadas ordenaram aos membros do Centro de Informações da Segurança da Aeronáutica (CISA) a atear fogo em todos os documentos operacionais da Terceira Campanha, a Operação Marajoara. No Centro de Informações do Exército (CIE), a mesma ordem teria sido dada.

16. Ademais, todas as operações do Exército se deram de forma velada para a sociedade, visto que a primeira referência pública oficial sobre a guerrilha se deu somente em 1975 em uma mensagem do então Presidente General Ernesto Geisel sobre o desmantelamento do movimento.

17. Por um longo tempo, os fatos ocorridos na "Guerrilha do Araguaia" permaneceram ocultos da sociedade brasileira. Aos poucos, começaram a aparecer iniciativas de entidades da sociedade civil, de pesquisadores e de algumas Instituições Estatais interessadas em elucidar os fatos ocorridos no Bico do Papagaio.

18. Em 1980, a Ordem dos Advogados do Brasil encaminhou um observador para acompanhar a caravana de familiares dos mortos e desaparecidos da Guerrilha do Araguaia. As conclusões que a OAB chegou, bem como os depoimentos tomados, foram publicadas na revista da OAB, Ano X/XI, vol XII e XIII, setembro/dezembro de 1980 e janeiro/abril de 1981.

19. O Ministério Público Federal, motivado pelo Inquérito Público n° 05/01, da Procuradoria da República do Distrito Federal, promoveu a oitiva de vários moradores locais, cujos documentos retratam com bastante propriedade os momentos vividos pelos camponeses.

20. Em setembro de 2007, pela primeira vez, esta Comissão de Anistia promoveu, com apoio do Governo do Pará, Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado do Pará, Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia, Governo Federal, Prefeitura e Câmara Municipal de São Domingos do Araguaia, uma oitiva com os moradores locais.

21. A Audiência Pública realizada em São Domingos do Araguaia (PA) reuniu cerca de 300 pessoas. Foram colhidos 136 depoimentos das pessoas que ali se dispuseram a falar.

22. É o relatório.

III. Da Decisão

23. O acontecimento da chamada "Guerrilha do Araguaia" é fato incontroverso na história brasileira. Tanto o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), responsável pela organização e sustentação de guerrilheiros e guerrilheiras; quanto as Forças Armadas Brasileiras, responsáveis pela repressão, reconhecem o acontecimento dos confrontos ocorridos na região do Bico do Papagaio entre os anos de 1972 e 1976, sobre o qual há pouca documentação oficial em virtude da ocultação destes pelo próprio Regime do período.

24. De fato, centenas de brasileiros, em sua maioria compostas de jovens estudantes, sedentos pela construção e consolidação de um regime democrático, ávidos pela derrubada de um Regime autoritário que vos fazia calar em seus ideais, entregaram parte da sua juventude, e, muitos deles, como é o caso do anistiando, as suas próprias vidas, na busca dessa causa, combatendo diuturnamente contra o Exército da Repressão, também brasileiros, muitos deles ávidos e sedentos pelo sangue dos seus próprios irmãos, na busca de mantê-los sob a sua égide.

25. As alcunhas eram muitas, "Paulistas", "Forasteiros", "Guerrilheiros", todos, no entanto, cidadãos componentes das diversas matizes do povo brasileiro, que viam na Guerrilha Armada a maior possibilidade para que fosse acesa a luz da liberdade, como o reluzente lampejo do vaga-lume a tentar ser luz na perpetuada escuridão, da qual falavam os seus militantes ao tentar transformar em poesia aqueles momentos árduos, em que, mais que nunca, cantar era preciso:

"Um dia lembramos. Há quase dois anos, guerrilheiros do Araguaia. quase dois anos lutando. Contra a miséria. Contra a opressão. Contra o meio adverso, no meio da selva, lutando.
E a guerrilha vive. Lâmpada acesa na noite (há quase dois anos), vive. Apesar de insídias latifundiárias. Apesar dos tecnocratas. Dos beliciosos. Dos trustes, dos monopólios. Apesar dos generais. Senhores da terra e da guerra, donos do fogo e do lôgro. Apesar — e por causa deles — a guerrilha vive. E corre como um regato noviço, para os ríos da manha. Vitórias foram conseguidas. Há quase dois anos, ali e além, cresce a resistência popular. O povo percebe. O povo aspira no ar um sopro de novo em ludo isso. E descobre. E se move. E resiste. E pouco a pouco se forja em coisa única, indivisível. E nós que temos feito diante disso? Os que sabem o tempo, não podem ficar a margem, assistindo apenas. Decerto por fuzil e decreto é proibido cantar. Mas cantar é preciso. Quando ainda não o grito, seja o balbucio. Se não a palavra aberta, o amplo segredo. Nunca, no entanto, o silêncio. Dizem que o silêncio é de ouro. Mas de quem é esse ouro? Sabemos que não é do povo! Para nós o silêncio é podre. E cantar é preciso. Pensando nisso é que organizamos este caderninho. Revelação artística e talvez que de menos se mostra aqui. Tampouco é áspero o canto conforme o momento. Guiou-nos porém, mais que tudo, á vontade de dizer. O desejo de quebrar as vidraças do silêncio.
Esperamos que essa nossa iniciativa — apenas débil sussurro — possa, de outros lábios, desentranhar, mais firmes, afirmações de esperança, cantigas de alvorecer. E, numa livre reação em cadeia, que as palavras se lavrem, se elevem, se multipliquem.

Este trabalho é, pois, dedicado a todo o povo brasileiro; a todos os que, de alguma forma, se batem pela liberdade, e principalmente ao povo e as forças guerrilheiras do Araguaia, pela sua brava resistência patriótica, de onde já saltaram para a história verdadeiros mártires e heróis, a exemplo de Bergson Gurjão, Quelé e Helenira Machado".

26. A motivação política da "Guerrilha do Araguaia" foi reconhecida pelo Estado Brasileiro quando sancionada a Lei n° 9.140, de 04 de dezembro de 1995, que declarou "como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988".

27. Ademais, todas as infrações e violações notoriamente cometidas pelo Estado de Exceção durante a Guerrilha do Araguaia são suficientes para desrespeitar qualquer preceito fundamental ou direito do ser humano, servindo, como prova cabal do seu dever de reparação às vítimas.

28. O Anistiando, nascido em Fortaleza/CE, era estudante de Química na UFC, tendo sido vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1967. A sua primeira prisão ocorreu no 30° Congresso da UNE em Ibiúna/SP, em outubro de 1968, tendo o seu nome entre os homenageados em painel fotográfico montado pelo Memorial da Resistência em memória aos presos nesta ocasião. Nesse mesmo ano, o Anistiado foi ferido por uma bala a cabeça quando participava de uma manifestação no Ceará.

29. Ainda, o Anistiando foi enquadrado no Decreto-lei 477 de 26/02/1969 que estabeleceu rito sumário para demissões e desligamento de professores, funcionários e estudantes que praticassem infração disciplinar considerada subversiva nas universidades brasileiras, tendo, assim, sido expulso da UFC.

30. Em 26/06/1969, o Anistiando respondeu ao Processo n° 15/68 tendo sido condenado a 02 anos e 06 meses de reclusão, tendo sido à época declarado como “foragido” e foi extinta a sua punibilidade em 10/05/1974, data em que, todavia, o Anistiando já se encontrava morto e desaparecido.

31. Assim, o Anistiando foi guerrilheiro do Araguaia e, de acordo com o “livro secreto” do Exército, em 04 de junho de 1972, ao buscar alimentos, houve um choque entre um grupo de guerrilheiros e as forças armadas na Região de Caiano/TO.

32. Nesta ocasião, o Anistiando foi preso e o seu corpo foi pendurado em uma árvore na base de Xambioá com a cabeça para baixo a qual era chutada constantemente por membros das Forças Armadas, sendo relatos dos presos políticos no Araguaia, José Genuíno Neto e Dower Moraes Cavalcante para os quais o Exército mostrou durante interrogatórios o corpo do Anistiando morto a baionetas.

33. Além disso, em relatório da Marinha de 1993 há o reconhecimento de que no período de 22/05/1972 a 07/07/1972 o Anistiando foi morto pelas Forças Armadas em ação contra a Guerrilha do Araguaia.

34. Dentre as 136 (cento e trinta e seis) pessoas enumeradas na relação anexa à Lei n° 9.140/1995, que foram reconhecidas como mortas e desaparecidas políticas, consta o nome do Anistiando, dentre outros guerrilheiros e guerrilheiras, militantes do PCdoB que vivenciaram a “Guerrilha do Araguaia”.

35. Em recente entrevista concedida, a Ex Guerrilheira Luzia Reis, lembra a sua chegada, aos 21 anos de idade, na região do Araguaia. “Minha chegada lá coincide com a história de Bergson. No começo de 1972, cheguei na região acompanhada por Paulo Rodrigues. Ficamos debaixo de uma árvore, com o sol já morrendo, esperando o companheiro que iria nos buscar. Logo avistamos Jorge numa canoa, com sorriso largo. Foi ele quem me recebeu”, relembra Luzia.

36. A ex-guerrilheira descreve ainda Jorge (nome pelo qual era o Anistiando conhecido), como um rapaz alto, magro, com a calça dobrada até o joelho. “O Paulo nos apresentou: Jorge, esta vai ser a Lúcia. Lúcia, ele é o responsável pelo grupo e pela sua adaptação. Sorridente, Jorge me deu um abraço de boas vindas. Seguimos pelo Rio Araguaia e chegamos até São Geraldo”, detalha. Chegando na localidade, Luzia relembra, Jorge a levantou e montou-a numa mula. Montada no animal viajou durante três horas noite adentro, por picadas mata afora, atravessando igarapés que davam na cintura dele. Durante o trajeto, muita conversa, para colocar em dia os assuntos com o Paulo. “Lembro quando o Jorge disse que ele e os mosquitos estavam felizes com a minha chegada”, revela entre sorrisos. “Foi um jeito carinhoso de me dar boas vindas”.

37. Ao chegar a uma das casas do destacamento "C", Jorge a apresentou aos companheiros. "Convivi também com Áurea (Elisa), Arildo (Ari), José Toledo (Vitor), Dower (Domingos) e Tobias (Josias), Dinalva (Dina), Antonio (Antonio) José Francisco e o pessoal do grupo Pau Preto, Jaime a Regilena, Maria, Cazuza, Kleber, Rosalino e Daniel. A nossa casa era sem parede e a cobertura era feita de folhas do açaizal. Dormíamos em redes e havia ainda o local fechado para armazenar os mantimentos". A rotina no acampamento, segundo Luzia, era rígida. "As seis horas da manhã a gente levantava e fazia cerca de 40 minutos de exercícios físicos, recriados na mata para não chamar atenção. Na volta, tomávamos banho nos igarapés e em seguida, a primeira alimentação do dia. Só então seguíamos para a distribuição das tarefas. Enquanto alguns iam para a roça juntamente com os moradores da região cultivar milho, mandioca, batata, por exemplo, outros cuidavam da caça e outros ainda cuidavam da cozinha".

A importância de "Jorge" no acampamento

38. Segundo Luzia, Jorge tinha um papel importante no acampamento. “Ele era uma pessoa muito especial tanto para mim quanto para o grupo. Todos gostavam muito dele. Jorge tinha uma maneira de ser que se destacava dos demais. Era ele quem recebia os recém-chegados, cuidava da adaptação de todos. Sempre tinha uma palavra de estímulo e apoio. Ele tinha uma expressão de entusiasmo e ânimo. Nunca vi Jorge nervoso, nem nos piores momentos. Tudo nele era leve. Jorge era um líder”, relembra.

39. O contato de Bergson e Luzia no acampamento era próximo e paciente. “Ele me ajudou muito para que eu superasse as dificuldades da nova vida. Ele era um entusiasta, me preparou e incentivou. Lembro que nunca tinha visto uma arma e foi Jorge quem me ensinou a manuseá-la. Desmontava espingarda para me mostrar como utilizar a arma”, revela.

40. Luzia afirma ainda que a Guerrilha do Araguaia pode ser dividida em duas partes: antes e depois da chegada do Exército na região. “Antes, o clima era ótimo. Jorge até brincava dizendo pra gente no se acostumar com aquela vida boa. Sempre estávamos acompanhados por moradores e violões. Jorge era festeiro, um pé de valsa. Ele era muito feliz. no que estava fazendo", afirma. Numa dessas noites tranquilas, o encontro de Bergson e Genuíno (ambos militaram no PCdoB e no movimento estudantil do Ceará e não se encontrava há anos) chamou atenção. "Aconteceu no destacamento C Eles se abraçaram forte. Alegres, conversaram a noite inteira, davam risadas. Deviam estar relembrando as coisas do Ceará", supõe.

A tensão o da retirada para a mata

41. "Com a chegada do Exército, as coisas mudaram. Era muita tensão. A gente sabia que isso podia acontecer mas não imaginávamos que seria tão cedo". Mesmo nos momentos de extrema preocupação, Luzia reforça a personalidade de Bergson. "Lembro de todos nervosos, menos o Jorge. Ele estava sempre exalando tranquilidade e nos passava segurança. Após uma semana que batemos em retirada para dentro da mata, três companheiros adoeceram de malaria, sequer conseguiam caminhar. Era ele quem segurava a barra", revela.

42. Luzia relembra que, escondidos na mata, Josias, um dos guerrilheiros, pediu para ir embora. Citando este como exemplo da liderança e da habilidade de conciliar que Bergson tinha, a ex-guerrilheira detalha. "Com aquele jeitinho dele, Jorge conseguiu acalmar e convencer Josias a esperar retomamos o contato com a Comissão Militar, priorizando a segurança no só de Josias mas de todos. Os outros companheiros correriam risco caso fossem descobertos. Foi com paciência e argumentos que ele conseguiu convencê-lo. Todos corriam para ele pois, de forma coerente, sempre colocava as coisas no lugar”.

A emboscada que vitimou "Jorge"

43. Atarefada com outras atividades, Luzia não estava com o grupo quando Jorge foi vítima de uma emboscada. “A morte dele foi digna de um herói. Ele foi procurar um morador para saber de uma encomenda de mercadorias que ainda não havia chegado. Ia em busca de gás, sal e fumo. A sua espera, uma emboscada. Houve troca de tiros. Ao invés de se proteger, Jorge deu cobertura para que os companheiros que estavam com ele conseguissem fugir ilesos. Ele foi metralhado nas pernas. Caído, o executam com uma baioneta”.

44. Luzia ainda se emociona quando comenta a perda precoce de Jorge. “Foi uma perda em todos os sentidos. Jorge foi o primeiro guerrilheiro a ser morto na região. A gente não esperava que fosse perder companheiros tão rapidamente e muito menos que fosse logo ele, exemplo de unificação, firmeza e convencimento”.

45. desse modo é que o Anistiando tem a sua história gravada junto à dramática trajetória das buscas pelos desaparecidos e desaparecidas no Araguaia, sendo que o seu corpo foi encontrado em Xambioá em 1996, tendo posteriormente sua ossada catalogada como “X-2”, até que, recentemente, em 06/07/2009, foi identificado como sendo o seu corpo, possibilitando que a sua família finalmente possa realizar o sepultamento de forma digna de acordo com suas convicções religiosas.

46. Dessa forma, a vida e a militância do Anistiando está registrada em diversos livros, notícias de jornais, documentos, dentre os quais destaca-se o registro no livro Direito à Verdade e à Memória, no qual consta relatório sobre mortos e desaparecidos políticos.

47. Forçoso, pois, nesse momento, parafraseando as palavras de também imortal líder paraibano, que ao discursar em praça pública quando do sepultamento de João Pedro Teixeira, líder das ligas camponesas da Paraíba, brutalmente assassinado sob a égide do Poder dominante que proliferava a fim de que possamos também proclamar e fazer ecoar aos mais longínquos cantos desse grandioso Estado do Ceará: “Vai, Bergson. Fica com Deus. Tu, bravo guerreiro, fizeste tua parte na consolidação da nossa Democracia… Pensaram eles, Jorge, os teus algozes que, com a tua morte, estariam enfim te enterrando. Mal sabem eles, aqueles infelizes, que hoje, após 37 anos de luta e espera, por este ato, nós estamos (re)plantando a tua semente, a fim de que possa brotar do solo donde fostes roubado mais irmãos teus, de tamanha honra e dignidade”.

48. Assim é que resta superada a caracterização da perseguição sofrida, por motivação exclusivamente política, de que trata a Lei 10.599/02

49. Verificada a perseguição política praticada, há de se estabelecer o tipo de reparação econômica a que faz jus o anistiando;

50. Em que se pese a afirmação da requerente de que o anistiando, para além de ser estudante de Química, trabalhava, ajudando-a na manutenção da casa, e em que pesem restarem nos autos elementos capazes de comprovar essas afirmações, não resta demonstrado nos autos elementos capazes de demonstrar a perda de nenhum vínculo laboral mantido pelo anistiando à época dos fatos;

51. Desta forma, ante a ausência de demonstração da existência de comprovação do nexo de causalidade entre o rompimento do sustentado vínculo laboral mantido à época dos fatos com perseguição política efetivamente sofrida, deixo de reconhecer a possibilidade de ser-lhe fixada a reparação econômica, ao menos na modalidade de Prestação Mensal Permanente e Continuada;

52. De outra banda, resta demonstrado nos autos que o anistiando respondeu Inquérito Policial Militar, tendo sido preso guando da sua participação no Congresso da UNE em Ibiúna, em 12 de outubro de 1968 (data em que fixou o início da perseguição política instalada contra o anistiando, tendo sido condenado a uma pena de dois anos e seis meses, restando ainda extinta a sua punibilidade apenas em 10 de abril de 1974;

53. Mais ainda, foi o anistiando executado, supostamente entre os dias 04 de maio e 04 de junho de 1972, tendo sido o seu corpo soterrado no Cemitério de Xambioá, e a sua ossada só foi efetivamente identificada no dia 06 de julho de 2009, permanecendo, pois, a perseguição praticada pelo Estado brasileiro até o dia 06 de outubro de 2009, data em que o seu corpo será devidamente restituídos aos seus familiares;

54. No entanto, por determinação da fixação legal estabelecida na Lei 10.599/2002, o lapso temporal máximo nela estabelecidos para a fixação do período de perseguição não pode ir além da promulgação da Carta Magna, qual seja, 05 de outubro de 1988, razões pelas quais estabeleço a referida data como termo final perseguição política praticada contra o anistiando;

55. Deste modo, tendo em vista que a cada ano de perseguição é devido o montante de 30 salários mínimos nacionais vigentes, a teor do art 4° da lei n° 10.559/2002, e, diante da comprovação do período de perseguição política comprovada;

56. Em assim sendo, opino pela concessão da reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única, equivalente a 600 (seiscentos) salários mínimos, equivalente a 20 anos de perseguição, cujo período fica fixado entre 12 de outubro de 1968 (data da sua prisão) e 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal;

57. Por fim, resta enfrentar a possibilidade de concessão da reparação econômica à ora requerente, uma senhora que, no auge dos seus 94 anos de idade ainda luta, uma batalha que já dura mais de 37 anos, para ver alcançado o seu direito de, simplesmente, poder enterrar dignamente o seu filho.

58. Um verdadeiro exemplo de mulher, mãe, guerreira, combatente, carinhosa, ousada, que se mantém, diante de tudo e de todos, com a cabeça erguida, no afã de ver reconhecida a luta do seu filho, a busca pela justa reparação, o pedido de desculpas do nosso Estado Brasileiro de que errou, ao estigmatizar o seu filho como alguém à margem da sociedade, à margem da legalidade, à margem da vida digna e justa que merecia ter vivido.

59. Foi com esse exemplo materno que o requerente, nascido em 17 de maio de 1947, terceiro dos quatro filhos de Dona Luíza Gurjão e Gessiner Farias (os outros eram Gessiner Júnior, Ielnia e Tânia), Bergson residiu com sua família na Rua Dom Joaquim, no centro de Fortaleza. Sua vida estudantil iniciou-se na escola Pathernon Santa Luzia e estudou também no Colégio Brasil, no Colégio Batista Santos Dumont e no Colégio Castelo Branco — curso preparatório para vestibular que frequentou.

60. Do jovem que praticava natação, tênis e basquete no Náutico Atlético Cearense ao estudante de Química da UFC, que também dava aulas para ajudar no sustento da família, afável e querido líder estudantil eleito vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFC, em 1967, Bergson deixou marcas de sua enérgica e a um só tempo suave presença por onde passou. No basquete do Náutico, começou a participar da equipe na categoria infantil, depois juvenil e em seguida passou para o time oficial, participando de competições em todo o Brasil, inclusive em disputas oficiais no glorioso Estado da Paraíba.

61. Seu espírito esportivo e sua suavidade se transformaram quando o manto do obscurantismo foi lançado com feroz truculência sobre o Brasil. A intolerância se abateu sobre o jovem líder estudantil, que, após se confrontar com a repressão militar, foi constrangido ao deslocamento para defender sua própria vida. Bergson foi preso durante o 30° Congresso da UNE, em lbiúna (SP), em outubro de 1968, e expulso da UFC com fundamento no Decreto-lei 477. Ainda em 1968, no Ceará, foi ferido na cabeça guando participava de manifestação estudantil.

62. No dia primeiro de julho de 1969 foi condenado a dois anos de recluso pela justiça Militar. Com isso, passou a atuar na clandestinidade e mudou-se para São Paulo, e, continuo rumou para a região do Araguaia, onde passou a residir na área de Caianos, na confluência do Bico do Papagaio, em plena selva amazônica, tendo de afastar-se da sua mãe, e consequentemente, quebrar-lhe um pouco do seu sustento, eis que era significativa a sua contribuição às expensas da família, para ser sumaria e covardemente executado pelos seus opositores.

63. A despeito de tudo isso, é imprescindível que a situação fática CM comento, encontre perfeita adequação no dispositivo legal que regulamenta o instituto da Anistia Política, ou seja, a atual Lei n. 10.559, de 13 de novembro de 2.002. Dispõe ela em seu art. 2°, § 2° que: "Fica assegurado o direito de requerer a correspondente declaração aos sucessores ou dependentes daquele que seria beneficiário da condição de anistiado político."

64. À luz da lei a declaração da condição de anistiado político pode ser requerida tanto por dependentes quanto por sucessores do perseguido político.

65. Quanto ao direito de pleitear a reparação econômica, de caráter indenizatório, no caso do perseguido político já falecido, a norma acima mencionada dispõe em seu art. 13, o seguinte: "No caso de falecimento do anistiado político, o direito à reparação econômica transfere-se aos seus dependentes, observados os critérios de vocação fixados nos regimes jurídicos dos servidores civis e militares da União."

66. Neste aspecto é curial observar que o legislador ordinário determinou ao aplicador da norma que se restringisse o alcance do dispositivo do art. 13, ao dizer que deverão ser observadas os critérios de vocação fixados no regime dos servidores da União.

67. É preciso, portanto, ver o que diz o regime jurídico, Lei n. 8.112/90. No seu art. 217 estão elencados os beneficiários das pensões em caso de morte de seus titulares, vejamos, apenas, o que interessa: "Art. 217. São beneficiários das pensões: I) vitalícia: a) o cônjuge; b) omissis c) o companheiro ou companheira designado que comprove união estável como entidade familiar; d) a mãe e o pai que comprovem dependência econômica do servidor; …"

68. No caso em análise, a Requerente comprovou que contava com o labor de seus filhos para fins de sustento do lar, eis que nunca trabalhara, sendo, pois os seus filhos da manutenção da casa.

69. Desta forma, é inegável também o direito da Requerente em auferir, além da declaração da condição de anistiado políticos do filho Bergson Gurjão Farias, conforme o previsto no art. 2°, da Lei n. 10.559/02, bem como em perceber a reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única a qual ele teria direito, nos termos previsto no art. 5', da mesma norma.

70. Ante o exposto, opino pelo DEFERIMENTO do pedido formulado para conceder:

A) Declaração post mortem de anistiado político, oficializando em nome do Estado Brasileiro, o pedido de desculpas ao Sr. Bergson Gurjão Farias.

B) Conceder à Sra Luiza Gurjão Farias, reparação econômica em prestação única, relativa a 20 anos de perseguição, cujo período fica estabelecido fica fixado entre 12 de outubro de 1968(data da sua prisão) e 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, contabilizando o equivalente a 600 (seiscentos) salários mínimos vigentes á época do pagamento e respeitado o teto legal máximo, estabelecido em R$ 100.000,00 (cem mil reais).

É o voto.

Fortaleza, CE 05 de outubro de 2009.
Virginius José Lianza da Franca
Conselheiro Relator