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Democracia moçambicana pede autocrítica

O escritor Mia Couto analisa o recente processo eleitoral em Moçambique e os caminhos trilhados pela jovem nação africana até a conquista de um Estado democrático pleno.

O escritor e biólogo moçambicano Mia Couto vê com ceticismo as possibilidades de o atual processo eleitoral em seu país induzir o renascimento das utopias que animaram o processo revolucionário moçambicano na década de 1970 e a consolidação de um projeto de nação que ele ajudou a construir. No entanto, não deixa de ressaltar o papel fundamental da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) – atual partido governista e fundamental no processo de redemocratização como grupo revolucionário – na estabilidade do país e na continuidade do processo de construção nacional.

Mia Couto nasceu em 1955 na Beira, segunda maior cidade de Moçambique, e na função de jornalista foi responsável – como diretor da Agência de Informação e do principal jornal de Moçambique – pela organização da imprensa nos primeiros anos do pós-independência. Atualmente, é um dos escritores africanos de maior reconhecimento internacional. Escreveu mais de 20 livros, traduzidos em diversos países como Alemanha, Bélgica, Polônia e Noruega, entre eles o romance Terra Sonâmbula, considerado um dos 12 melhores livros africanos do século 20.

Leia a entrevista concedida ao Opera Mundi por e-mail.

Qual sua análise sobre o atual estágio de consolidação das instituições democráticas em Moçambique?

As instituições democráticas estão se consolidando e não creio que seja possível esperar muito mais, ou algo melhor. Essa institucionalização leva tempo, sua eficiência não pode ser avaliada de forma cosmética. A instituição pode estar lá, mas não funcionar devidamente. Para que funcione, é preciso que haja uma cultura de democracia, forças da sociedade que façam pressão e peçam contas. E é isto que talvez mais falte em Moçambique.

Em seus livros, como é o caso de A Varanda do Frangipani, está presente uma perspectiva utópica que vislumbra um futuro para Moçambique mais livre das constrições – sobretudo a traumática belicosidade –, que marcaram a sua história recente. Como o processo eleitoral reacende essa perspectiva utópica de transformação social e política?

Reviver a utopia implica possivelmente em outros processos mais inventivos. As campanhas eleitorais viraram muitos empreendimentos de marketing. Vendem-se imagens e não ideias. Ninguém vota por programas políticos. Escolher a utopia obriga não apenas a renovar radicalmente a política, mas a repensar os processos de fazer política. Não vejo como os processos eleitorais, com este modelo importado, possam induzir o renascer de alguma utopia.

O cientista político português Boaventura Sousa Santos diz que o século 20 terminou com a diluição de uma diferença entre capitalismo e socialismo e formou como instituição inquestionável a democracia. Entretanto, a democracia quase sempre, segundo ele, está coligada ao pensamento liberal e à condicionante do desenvolvimento econômico. Como se dá isso na jovem democracia moçambicana?

É lógico que a democracia não pode ser isolada como um valor. É preciso entender que mais que um regime político, há de se criar sistemas de pensamento, impregnar a cultura e o pensamento dessa liberdade de escolher e de mudar caminhos. Mais que uma política, a democracia é uma cultura. O risco aqui é que os moçambicanos se desapaixonem pela política. Paul Valery dizia que a política é a arte de fazer desinteressar as pessoas dos problemas que realmente lhes dizem respeito. O ideal seria que todos nós achássemos que tudo nos diz respeito. Mas isso não sucede nem em Moçambique, nem em lugar nenhum do mundo.

Como a sociedade moçambicana lida com o fato de o presidente Armando Guebuza (Frelimo) ter sido uma personalidade de destaque na história da libertação nacional? Entre o governante e a figura histórica, como se dá a relação em termos personalistas?

A carga simbólica dos que combateram na mata, dos que deram a sua vida e a sua juventude pela libertação nacional, ainda tem muito peso. Mas há agora uma geração nova que não conheceu a dominação colonial e que busca um discurso mais virado para o futuro. Numa sociedade como a moçambicana, a pirâmide etária joga a favor desse estrato jovem.

No Brasil, a imprensa conservadora está constantemente em alerta contra políticos e partidos que se mantém no poder por muito tempo, mas tem uma postura tendenciosa a esse respeito, vide o tratamente diferenciado que se dá aos casos venezuelano e colombiano. O contexto político e histórico de cada país, bem como os projetos em questão, são lidos leviana e superficialmente. Como o senhor analisa, portanto, no caso moçambicano, o sucesso da Frelimo em se manter na direção das políticas nacionais?

A Frelimo foi capaz de suceder a si mesma. E isso foi vital para a estabilidade do país e para a continuidade do processo de construção nacional. Há que se tirar o chapéu a esse trabalho imenso de edificação das bases de um país que se estreava a si mesmo num contexto regional hostil e carregando uma pesada herança de miséria. Mas esse capital simbólico de construtores da nação pode, como disse, estar a ser desvalorizado em proveito de quem traga um discurso mais carregado de futuro.

O governo moçambicano tem procurado estreitar laços com o Brasil. Empresas como a Vale e a Odebrecht têm atuado na exploração de carvão, por exemplo. O que há de afinidade eletiva e o que há de exploração meramente capitalista?

Não sei se isso que chamas de afinidade eletiva pode nascer em contraponto com aquilo que classificas de exploração meramente capitalista. Talvez tudo isso deva marchar junto. A verdade é que só haverá mais proximidade entre os nossos povos quando esta for rentável e gerar negócios. É triste, mas é assim. Uma política fundada apenas na solidariedade e na evocação de laços históricos e culturais comuns seria mais bonita e mais nobre. Mas não podemos ficar à espera desse caminho feito de nobreza. Vamos fazendo, então, ao mesmo tempo, trocas de cultura e de negócios.

Por meio de sua compreensão como biólogo, qual tem sido a relação de Moçambique com a noção de desenvolvimento sustentável? Em que medida o crescimento econômico pleiteado pelos governantes rivaliza com a manutenção do ecossistema?

O desenvolvimento sustentável corre o risco de não ser mais que uma expressão de moda. Nada é sustentável se persistir a miséria. A necessidade de sobrevivência imediata dita comportamentos de predação e delapidação de recursos. É preciso integrar a conservação de ecossistemas na economia e converter essa postura de preservação numa atitude geradora de riqueza para as comunidades rurais. É fácil dizer isto, mas é muito difícil colocar em prática programas de desenvolvimento que resultem em melhorias sensíveis do bem estar e em harmonia com os processos ecológicos.

Fonte Opera Mundi