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EUA colocam tudo a perder nas eleições no Afeganistão

A recusa de Abdullah Abdullah em disputar o segundo turno das eleições presidenciais do Afeganistão de 7 de novembro constitui um momento decisivo. Do seu ponto de vista, o antigo ministro dos estrangeiros agiu de forma razoável, tendo cautelosamente concluído que não tem qualquer interesse numo segundo turno que não tem qualquer hipótese de vencer.

Por M. K. Bhadrakumar, para o Ásia Times

O presidente Hamid Karzai também mostrou a porta da saída aos patrocinadores ocidentais. Estes haviam-se aproximado na esperança de conseguir um "acordo" à última da hora que garantisse a Abdullah, o seu protegido, um lugar na futura administração. Abdullah compreendeu que dali em diante as coisas só iriam piorar caso ele continuasse a atacar Karzai.

Karzai considerou que Abdullah seria uma pedra no sapato; ou, pior ainda, um cavalo de Tróia para as potencias ocidentais. Tê-lo no governo em qualquer posto de relevo apenas resultaria em noites em branco no palácio presidencial.

De qualquer modo, Karzai pensou que Abdullah já tinha infligido o maior prejuízo possível ao ceder os seus préstimos aos detratores ocidentais do presidente. Karzai também sabe que ele continuará a beneficiar de forte apoio dos principais grupos não pertencentes à etnia Pachtun enquanto a sua parceria com os antigos líderes mujahideen Mohammed Fahim, Karim Khalili, Ismail Khan, Rashid Dostum e Mohammed Mohaqiq permanecer intacta.

O verdadeiro jogo político ao grande estilo afegão está agora pronto para começar. Os exercícios de preparação chegaram ao fim. No centro da cena do teatro político está Karzai. Ele virou completamente o jogo às potências ocidentais, mas não esquecerá facilmente as continuadas tentativas durante o ano passado e mesmo antes para o ridicularizar e derrubar. Houve um certo desgaste.

Os ataques dirigidos a ele e à sua família foram por vezes muito pessoais e deixaram marcas profundas. Os afegãos não estão habituados a semelhante difamação à maneira ocidental em nome da democracia.

O último ataque no New York Times, que apresentava o seu irmão, Wali Karzai, como traficante de droga, levou a questão a um ponto de não retorno. As autoridades oficiais americanas que fizeram declarações inconvenientes causaram danos colossais aos interesses dos EUA no Afeganistão.

Foi talvez uma tentativa desesperada, à última da hora, de atirar mais lama a Karzai. Pode ser que Washington não ordene um inquérito ao artigo do New York Times, como alegadamente pretendeu John Kerry, presidente do Comitê de Relações Externas do Senado dos EUA.

Qualquer inquérito semelhante apenas acabará por fazer regressar os fantasmas que nem Kerry nem o Presidente dos EUA Barack Obama querem ver.

Washington tem que tomar muita atenção ao facto do relatório do New York Times ter vindo nada menos que do ministro afegão do Combate ao Narcotráfico, General Khodaidad Khodaidad. O ministro trouxe para o debate público o segredo afegão mais bem guardado: o papel dos exércitos estrangeiros no tráfico de droga.

Uma coisa era não levar a sério quando o antigo director geral dos Inter-serviços de Inteligência do Paquistão (ISI), General Hamil Gul, alegou que a aviação militar dos EUA estava a ser usada no tráfico de droga no Afeganistão. Poderia também ter sido conveniente ignorar simplesmente o problema quando fontes russas bem documentadas fizeram comentários nas mídias segundo os quais as tropas dos EUA estavam a fazer tremendos negócios no tráfico de droga no Afeganistão, atingindo as centenas de milhão de dólares. Mas Khodaidad é um profissional altamente treinado que sabe do que fala.

Os indianos conhecem-no e os russos também. Khodaidad passou pela prestigiada Academia Militar Indiana em Dehra Dun e foi um produto da Academia Militar de Frunzé em Moscou. Teve um desempenho comprovado no governo socialista em Cabul enquanto general altamente condecorado; chefiou brigadas de paraquedistas na guerra, no princípio dos anos 1980 e serviu como comandante do exército na zona crucial de Kunduz e na linha de fronteira de Takhar, frente a Ahmad Shah Massoud, da Aliança do Norte. O Reino Unido, onde viveu no exílio durante uma década, também o conhece.

Portanto, quando Khodaidad disse no domingo que os contingentes da Otan dos EUA, Reino Unido e Canadá estão a "tributar" a produção de ópio nas regiões que controlam, emitiu um sério aviso em nome de Karzai. É uma mensagem simples e directa: quem tem telhado de vidro não atira pedras.

Foram as potências ocidentais que, sistematicamente, através de inúmeros actos completamente imbecis e sem prestar atenção à cultura e às tradições do povo afegão, trouxeram as coisas a este ponto lamentável. De agora em diante terão que evitar falar de "senhores da guerra" e de "caudilhismo" e aprender a comportar-se, logo que os seus soldados cheguem ao Afeganistão, do modo que Karzai pretende.

Este está prestes a tomar o poder para um segundo mandato por iniciativa própria, desafiando os desejos e frustrando os desígnios das potências ocidentais. Chegou o momento de enterrar o machado e fazer o balanço, com estilo. Vêm aí tempos perigosos. A própria presidência de Obama está na linha de fogo. As potências ocidentais não podem arriscar deitar de novo tudo a perder.

Em termos institucionais, quer a Casa Branca quer o Departamento do Estado têm uma tarefa tremenda que consiste em reatar os laços com Karzai. Tudo indica que as relações entre Obama e Karzai estão muito mal. Aparentemente, eles nem usam o telefone via satélite para falar um com o outro. Isto nunca deveria ter acontecido entre dois políticos dotados.

Do mesmo modo, o representante especial dos assuntos sobre o Afeganistão e o Paquistão, Richard Holbrooke, tornou-se persona non grata em Cabul. Kerry violentou Karzai publicamente há duas semanas e talvez se tenha tornado também um caso perdido.

É possível pedir ao ex-presidente George W. Bush para sair da aposentadoria e discutir o problema com Karzai. Foram companheiros e costumavam falar descontraidamente ao telefone pelo menos uma vez por semana. Mas esta não é uma forma sensata de travar uma guerra (sob a direção de um comandante-chefe aposentado).

Fazendo o balanço, o Pentágono é o único vencedor. O Secretário da Defesa Robert Gates manteve as suas mãos limpas. Com uma enorme experiência de governo e no combate burocrático, ele seria capaz de perceber, a quilómetros de distância, como se libertar das escaramuças sórdidas em Hindu Kush que Washington criou contra o obstinado líder afegão. Ele sabia que tais factos apenas poderiam acabar mal e, mais importante que isso, que haveria uma necessidade crítica de continuar a negociar com Karzai depois do acidente se verificar.

A dependência de Obama em relação ao Pentágono para que este possa "gerir" o governo de Karzai e levar Cabul consigo na prossecução da futura estratégia de guerra aumentou muito. Felizmente, Gates pode confiar no Embaixador e General (aposentado) Karl Eikenberry para levar a cabo a tarefa. Ele tem excelentes relações com poderosos "senhores da guerra" como Fahim, do tempo das suas duas missões na Guerra do Afeganistão. De fato, durante a primeira missão de Eikenberry em 2002-2003, o "senhor da guerra" Fahim servia como o todo-poderoso ministro da defesa do executivo de Karzai.

Na realidade, é uma salvaguarda o fato de Obama ter cuidadosamente escolhido alguém tão profundamente imerso na cultura e tradições orientais a nível acadêmico e pessoal como Eikenberry para este posto sensível em Cabul (Eikenberry tem um mestrado de Harvard e foi um candidato a doutoramento em Stanford em estudos sobre o Leste Asiático).

Quando Eikenberry chegou a Cabul na sua comissão na embaixada em Maio, a ponte de Washington com Karzai já então se tinha tornado bastante instável e praticamente para além de qualquer reparação. Eikenberry pode agora esperar reconstruir essa ponte de acordo com o seu plano; é uma extraordinária oportunidade e ao mesmo tempo um desafio formidável para um notável acadêmico/soldado/diplomata.

A fase tumultuosa dos últimos meses que se centrou em torno das eleições presidenciais no Afeganistão irá desvanecer-se mais cedo do que espera a maioria das pessoas no Ocidente. Na verdade, esperou-se demasiado (mas em vão) do fator "legitimidade" das eleições no Afeganistão.

A legitimidade não esteve nunca em questão, na medida em que as verdadeiras preocupações do povo afegão residem noutro ponto. Quanto à comunidade internacional, quer dizer, o mundo não-ocidental, ela estava bem habituada a lidar com Karzai e nunca misturou isso com o estado da democracia no Afeganistão.

A percepção geral entre a comunidade internacional era de que alguns capitalistas ocidentais motivados estavam deliberadamente a chamar a atenção para a "legitimidade" das eleições para "suavizar" Karzai politicamente e torná-lo bem maleável e, caso ele ainda resistisse, tirá-lo do poder.

Assim, a comunidade internacional assistiu sem nada dizer quando Kerry, o primeiro-ministro britânico Gordon Brown, a Secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton, o Ministro dos Estrangeiros francês Bernard Kouchner, o Secretário-geral das Nações Unidas Ban Ki-moon e o Secretário-geral da Otan, General Anders Fogh Rasmussen, cantaram em uníssono que deveria haver um segundo turno e que faltavam 0,3% dos votos a Karzai no primeiro turno, o que o tornava "ilegítimo" aos olhos do povo afegão (Karzai não obteve os 50% do total de votos confirmados suficientes para evitar um segundo turno).

Esta revelou-se uma farsa de primeira. A abdicação de Abdullah da arena política não irá incendiar o Rio Cabul. Também não haverá uma guerra entre os Pachtun e os Tajik. Até Mohammed Atta, governador de Balkh, que foi responsável por angariar votos para Abdullah na Região de Amu Dariá e ameaçou com violência se Karzai fosse eleito, perceberá o que está para acontecer.

O problema de Atta é na verdade uma velha contenda que se mantém com Dostum (e Mohaqiq), e não tanto com Karzai, como os repórteres ocidentais foram levados a crer pelos gestores de informação de Karzai. Portanto é bom a Turquia assumir a liderança da Força Internacional de Assistência para Segurança neste momento. Ankara tem considerável influência sobre Dostum. Talvez Washington possa usar Ankara como "mediadora" com o novo governo dirigido por Karzai. A Turquia apreciará este papel.

De uma maneira geral, os países vizinhos do Afeganistão (exceto talvez o Paquistão, até um certo ponto) acharão que é fácil trabalhar com a nova equipa de Karzai. Esta incluirá personalidades que são conhecidas há anos por Moscou, Teerã, Tashkent e Duchambé. A emergência de uma tal equipe em Cabul será tranquilizadora para estas capitais.

A grande questão é como irão os Talibã ver os desenvolvimentos políticos afegãos. Um cenário complexo está de facto a emergir. Os EUA estão mais próximos de discutir um modus vivendi com os Talibã e Karzai tem parceiros que têm negócios com os Talibãs (ironicamente, Wali Karzai é um daqueles políticos experientes profundamente envolvido no folclore talibã). Não será surpreendente se uma acomodação política for atingida com o poderoso Gulbuddin Hekmatyar num futuro muito próximo.

É arriscado concluir que os veteranos da Aliança do Norte têm as ideias feitas quanto aos Talibãs (ou quanto ao Paquistão). Dito de forma simples, não é assim que a cultura política afegã funciona. O que o mundo exterior, incluindo as capitais vizinhas como Delhi, muitas vezes não compreendem é que as linhas de combate nunca foram verdadeiramente claras no Hindu Kush. Isto deve esperar-se apenas em qualquer guerra civil essencialmente baseada numa luta fratricida.

Se Hekmatyar vier por aí, uma divisão radical dos mujaedin terá tido lugar. Ver-nos-emos então numa história repetida, situada algures no princípio dos anos 1990, depois do famoso diplomata das Nações Unidas Diego Cordovez e o Exército Soviético terem deixado o Hindu Kush e algum tempo antes da entrada em cena dos Talibãs para estragar a festa.

Mas se Hekmatyar preferir a política à guerra, um grande obstáculo terá sido ultrapassado no isolamento dos elementos intransigentes (irreconciliáveis) dos Talibãs – os chamados Quetta shura (conselho) e a rede de Haqqani. Curiosamente, o líder da ISI pediu uma audiência com o rei saudita em Riade no sábado.

* M. K. Bhadrakumar é diplomata jubilado e colaborador assíduo do Ásia Times. Este texto foi originalmente publicado no Ásia Times: www.atimes.com. Fonte: O Diario.Info.