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A surpreendente flexibilidade táctica dos talibãs no Afeganistão

Enquanto o exército paquistanês lança uma grande ofensiva no Vaziristão Sul, nos Estados Unidos intensifica-se o debate sobre o futuro do envolvimento no Afeganistão. Muitos comentadores estabelecem um paralelo com o atoleiro americano no Vietname. No terreno, as tropas estrangeiras enfrentam um inimigo que, para lá da retórica religiosa, dá provas de pragmatismo, tanto no plano táctico como político.

Por Patrick Porter, para o Le Monde Diplomatique

Andarão os Estados Unidos a combater extraterrestres? Ralph Peters crê que sim. Este polemista, tenente-coronel americano aposentado, teme que os talibãs sejam selvagens oriundos de um outro planeta, gente «que prefere os seus modos de vida rudimentares e os seus cultos implacáveis». Combatê-los resumir-se-ia a uma «colisão frontal entre civilizações de diferentes galáxias» [1].

Mas Ralph Peters não faz soar as trombetas da vitória. A seu ver, os soldados americanos estão nos Estados Unidos à mercê de media hostis, de dirigentes ignaros e de uma população que a opulência e o liberalismo iludem. Reatualiza assim Rudyard Kipling, o escritor britânico que advertiu a Inglaterra vitoriana de que os seus exércitos seriam submersos por hordas de selvagens e de que o Afeganistão era a terra onde os impérios iam morrer.

Uma tal viragem para o exotismo, em resposta às complexidades da guerra, transcende as divisões políticas. O “choque das civilizações” profetizado pelo falecido Samuel Huntington pode estar fora de moda nas universidades, mas a ideia de que os estrangeiros se parecem conosco ficou denegrida pelas consequências da guerra no Iraque e pelo projeto de George W. Bush que visava remodelar a imagem dos Estados Unidos. Doravante, a opinião pública pende a favor da diferença e no seu túmulo Huntington bem pode sorrir.

Como declarou um general americano, os Estados Unidos estão hoje envolvidos em conflitos “culturais” à margem do império. Para intervir nessas terras estranhas, quer seja em missões de estabilização ou em operações militares de “reconstrução nacional”, o exército tenta usar a cultura como uma arma. O programa do Pentágono intitulado Human Terrain Teams e o novo manual de contra-insurreição FM3-24 [2] estão a redescobrir a antropologia colonial, tendo-se registado um renovado interesse por trabalhos clássicos sobre a “mente árabe”.

Historicamente, crises imperiais como a revolta indiana dos cipaios, em 1857, estimularam a renovação da etnografia e o interesse pelas tradições tribais. Em 1940, na sequência das guerras contra “povos estranhos” – na Nicarágua e nas Caraíbas –, os fuzileiros navais dos Estados Unidos produziram o seu Small Wars Manual, em que recomendavam o estudo das “particularidades raciais” dos autóctones. É um velho reflexo.

A cultura serve de antídoto para a arrogância tecnológica norte-americana da década de 1990. Nessa altura, os visionários pensaram que as munições de alta precisão, as tecnologias da informação e os satélites desenvolveriam uma incomparável capacidade de matar, dissipariam o nevoeiro na guerra e tornariam esta potência invencível. Mas o Iraque e o ressurgimento dos talibãs cobriram com um brutal descrédito tais ideias. Por isso, a “revolução cultural”, o regresso à identidade e ao sangue, à terra e à fé enquanto origens de conflito soam como uma grande reprimenda feita a essa ideia fantasmagórica.

O culturalismo, porém, tal como o tecnologismo, pode induzir em erro. A hipótese da similitude pode revelar-se perigosa, tal como a fixação no excêntrico, no “orgulho” árabe ou na “honra” muçulmana. E a convicção de que “conhecemos” um inimigo intimamente ou de que podemos gerar um conhecimento sistemático da sua cultura corre o risco de engendrar uma confiança falaciosa e falhas na análise. É inesquecível o caso do experiente especialista do Irã, agente da Agência Central de Inteligência (CIA), que em 1978, seis meses antes da Revolução Islâmica, elogiou o governo e a estabilidade do xá.

Se há lugar que estas análises descrevem como um ninho de inimigos exóticos culturalmente congelados é realmente o cadinho formado pelo Paquistão e o Afeganistão, referindo-se a literatura de estereótipos, desde 2001, a esse eterno “cemitério dos impérios”, a essa “terra de ossadas” que no passado repeliu diversos invasores, de Alexandre, o Grande, aos soviéticos.

Segundo tais comentadores, os talibãs só podem ser entendidos como “estranhos ao pensamento ocidental”, resumindo-se a guerra a um choque cultural entre uma teocracia arcaica e uma grande potência rica e ultramoderna. Derrubados no outono de 2001, os talibãs levariam assim a cabo uma revolta que muitos consideram acima de tudo cultural…

É tentador encarar os próprios afegãos como prisioneiros das suas tradições, sustentando alguns comentadores que as tribos pashtunes, de onde provém a maioria dos talibãs, estão ligadas a um vingativo código de honra baseado nos laços do sangue. O semanário The Economist repisa o argumento: "O pashtun, logo que a sua honra é manchada – é esse precisamente o problema dos americanos –, é obrigado a vingar-se" [3]. Outros apresentam os talibãs como místicos de um outro mundo. Quando a certa altura, a meio de uma entrevista, alguns soldados talibãs a interromperam para rezar, um jornalista invejou a sua "força e pureza", o seu "sentido transcendental da paz, a sua determinação e proximidade com a morte e com Deus, características muito raras no Ocidente moderno".

O refrão é óbvio: onde nós somos estratégicos, modernos e políticos, eles são primitivos e desprendidos do mundo. Os ocidentais não são, aliás, os únicos impressionados com esse sentimento de diferença radical, tendo-se gabado do seguinte um combatente afegão: "Os americanos gostam de Pepsi-Cola, mas nós gostamos da morte".

Quando em 1998, na sequência da guerra civil, os talibãs se apoderaram de quase todo o Afeganistão, impuseram a charia na sua forma mais austera e intransigente. Num país onde o islã puritano só raramente dominou, a nova ordem baniu a música e o álcool, introduziu os castigos corporais, tais como a amputação ou a lapidação até à morte, proibiu as imagens tidas como iconoclastas, despedaçou no Museu de Cabul milhares de objetos de arte pré-islâmica, destruiu antigas estátuas budistas (principalmente as do vale de Bamyian), procedeu a uma limpeza étnica massacrando milhares de hazaras (xiitas) em Mazar-e-Charif, executou homossexuais e dissidentes políticos, impediu as moças de frequentarem o ensino público e criou uma policia religiosa encarregada de espancar as mulheres que não se submetessem ao código de vestuário obrigatório.

Guerrilheiros na era da Internet

Mas, à medida que o conflito foi evoluindo, os talibãs souberam redefinir os seus princípios. Alteraram a sua posição sobre a cultura do ópio, tornando-se, depois da queda do seu governo, defensores do narcotráfico e protetores da vida rural. Em Musa Qala revogaram algumas restrições à vida social para conquistar a simpatia da população, renunciando, entre outras coisas, a que os homens usassem obrigatoriamente barba e a que os instrumentos musicais e o cinema fossem proibidos.

Fizeram também marcha-a-ré no respeitante aos ataques suicidas. Anteriormente, defendiam que era um ato de covardia e uma afronta ao islã andar com a roupa cheia de explosivos. Agora servem-se disso e os seus dirigentes religiosos reinterpretam o Corão de forma a justificar tais atos, recorrendo a histórias sobre mártires voluntários num exército muçulmano do século 17.

Na guerra da informação, os talibãs adaptaram-se ao poder das mídias modernas com uma facilidade que ultrapassa, de longe, a dos seus adversários. Dão entrevistas na televisão, enviam delegados ao Iraque para se familiarizarem com as técnicas de fabrico de vídeos da al-Qaida e imitam as práticas ocidentais levando jornalistas a “acompanhar” os seus combatentes. Quando estavam no governo, comparavam as representações humanas à idolatria. Agora violam os tabus sobre o “fabrico de imagens” e transformam-se em guerrilheiros da era da Internet. Cúmulo da ironia, este movimento que proibia os instrumentos musicais emprega agora cantores para fins propagandísticos, distribuindo cassetes que louvam o mártir talibã, condenam os infiéis e imitam o rap americano.

Na sua luta para conquistarem a simpatia dos afegãos, os talibãs promovem um governo alternativo ou “anti-Estado”, o “emirado islâmico do Afeganistão”. Desenvolveram sistemas paralelos de escolaridade, de saúde e de justiça e até instituíram um mediador, perto de Kandahar, a quem a população pode apresentar as suas queixas. Tentam também limitar a ação das milícias privadas com base em códigos de comportamento que proscrevem os ataques às habitações, o roubo e a pilhagem. Para lutarem contra a coligação dirigida pelos americanos, estudam a doutrina da contra-insurreição ocidental, bem como as repercussões que esta exerce nos sentimentos e na mente das pessoas. A interação estratégica com o inimigo tem a mesma importância que as tradições veneradas.

Embora a insurreição afegã tenha uma base étnica nas comunidades pashtunes, ela não pode ser reduzida a isso. As lealdades tribais tradicionais foram desestabilizadas e transformadas após a emergência dos tanzims (uma espécie de “partidos políticos” ou agrupamentos) e dos qawms (grupos de solidariedade ou de propriedade não homogêneos no plano territorial, incluindo seitas religiosas e alianças pragmáticas). Os próprios talibãs não operam apenas com base no sistema tribal. Na sua direção há membros das tribos durrani e ghizai e o seu movimento congrega grupos rivais, incluindo hazaras (xiitas) marginalizados na província de Ghazni. Muitos religiosos tadjiques e uzbeques aliaram-se à sua causa. Dispõem de vias de aprovisionamento e de comunicação em regiões maioritariamente povoadas por minorias não pashtunes e recrutam muito para lá das regiões que estão sob o seu domínio.

Deste modo, os talibãs odeiam aquilo que consideram elementos degenerados da modernidade, mas pretendem tirar proveito das vantagens que a sua tecnologia lhes oferece. Pregam a tradição, mas praticam a mudança.

O paradoxo da al-Qaida é semelhante. Muitas vezes apresentada como uma relíquia da idade Média, sonhando com um califado muçulmano ou mostrando-se nostálgica de uma Espanha perdida em 1492, ou como um ator estratégico que emprega a força como um fim em si (não brandindo a guerra como um instrumento da política e pondo em cena um teatro de horrores), a al-Qaida, contudo, provém de um mercado mundial de ideias e tecnologias. Como rede, luta para controlar aderentes violentos e puritanos que afastam as populações muçulmanas, da Argélia ao Iraque, mas não pode ser reduzida a um movimento pré-moderno ou simplesmente niilista. Os seus comunicados contêm princípios estratégicos clássicos. Quando declara guerra aos Estados Unidos, Osama Bin Laden justifica a sua estratégia de “guerrilha” não só como uma manifestação da violência sagrada, mas também como um método indispensável perante o “desequilíbrio de forças”. O principal teórico da al-Qaida, Ayman Al-Zawahiri, pretende traduzir a violência em resultados políticos, escrevendo que as operações bem sucedidas contra os inimigos do islã de nada servirão se não permitirem criar uma "nação muçulmana no centro do mundo islâmico".

Longe de preconizarem o terror como um fim em si mesmo, os membros da al-Qaida deixaram no seu esconderijo de Tora Bora cópias anotadas da obra Da Guerra, o livro do estrategista prussiano Carl von Clausewitz.

A al-Qaida adapta-se às ideias dos infiéis e nos seus campos de treino há muitos livros publicados no Ocidente. Plagia manuais de treino ocidentais, os compêndios dos esquerdistas revolucionários, refere-se ao conceito contemporâneo de “guerra de quarta geração” e à teoria das “três fases” da guerrilha de Mao Tse-tung, amalgamando as crenças religiosas e o pensamento estratégico clássico e contemporâneo.

Entretanto, o novo interesse pelos universos sociais de sociedades estrangeiras levou o exército norte-americano a fazer reformas, tornando-se mais eficaz e "humano", por ser conveniente estar preparado para situações de guerra insurreccional, de conflitos comunitários ou do desmoronamento de um Estado. Mesmo assim, embora a cultura possa ser abordada através de muitos níveis de sofisticação, esta palavra deverá continuar a inquietar.

Talvez nunca possamos retirar da nossa consciência o oriental mítico, porque, tal como o medo da morte e do escuro, ele é demasiado poderoso para ser inteiramente exorcizado. Mas a natureza fluida e híbrida dos talibãs e da al-Qaida prova que a guerra congrega tanto como polariza. Nenhuma cultura, por mais estranha que seja, é uma ilha.

[1] Ralph Peters, “Taliban from Outer Space: Understanding Afghanistan”, The New York Post, 3 de Fevereiro de 2009.

[2] William O. Beeman, A antropologia, arma dos militares, Le Monde diplomatique, Março de 2008.

[3] “Honour Among Them: The Pushtun’s Tribal Code», The Economist, Londres, 22 de Dezembro de 2006.

Fonte: Le Monde diplomatique