Rosemberg Cariry: Uma trajetória em defesa da arte libertária
Homem da arte e da luta do povo. Do Cariri para o mundo ou vice-versa Rosemberg Cariry tem o seu trabalho marcado pela cultura do povo contextualizada com o seu tempo. Unir o popular ao erudito, o regional ao universal é uma das características do trabalho deste artista engajado. Em entrevista concedida ao Blog Coletivo Camaradas, Rosemberg fala de política, marxismo, estética, filosofia, artes e da sua intensa trajetória.
Publicado 27/01/2010 11:04 | Editado 04/03/2020 16:34
Quem é Rosemberg Cariry?
É sempre difícil um homem definir quem ele mesmo é. Parece absurdo, mas o tempo é quem define o homem. Sócrates, segundo Platão, inspira toda a sua filosofia na inscrição da entrada do templo de Delfos: Conhece-te a ti mesmo. Mas que homem pode, em essência, compreender-se diante do absurdo da condição humana e da dupla natureza humana: animal/espiritual, liberdade/contingência cósmica, transitoriedade/impulso de eternidade? O homem não é Deus e inventa-se em sua rebelião contra Deus ou no seu reencontro com o Deus que o põe à prova (ver o Livro de Jó). O homem é em relação ao espaço e ao tempo em que vive, em mutação, em transformação. O homem é um animal em construção. Acho que a morte, em alguns casos, dá a aparente completude e medida do homem. Mesmo assim, resta o mistério… Digo isto, para justificar, neste momento, a minha dificuldade em me definir…
Quando tiveram início seus trabalhos artísticos?
No final da década de 1960, quando organizei os primeiros espetáculos reunindo jovens e velhos mestres da cultura popular. Desde esse tempo, nasceu em mim essa vocação para reunir o “velho” e o “jovem”, o “popular” e o “erudito”, o “regional” e o “universal”, dualidades aparentes mas que se completam. Toda contradição é aparente. O regional contém o universal, o popular contém o erudito, e o jovem contém o velho, assim como a manhã contém a noite, e a noite, por sua vez, contém o dia. Tive envolvimentos com dois movimentos culturais importantes do Cariri. Um deles foi o “Grupo de Artes Por Exemplo”.
Fale-nos sobre o Grupo de Artes Por Exemplo.
Em 1973, no Crato, no Cariri cearense, surgiria o Grupo de Artes Por Exemplo, que reunia jovens da pequena classe urbana local e artistas populares em torno de diversas atividades artísticas e culturais. Publicava-se uma revista mimeografada chamada Por Exemplo. Rodavam-se os primeiros filmes Super-8 documentários e de ficção. Faziam-se performances artísticas, happenings, shows musicais, encenações teatrais, ao mesmo tempo em que era promovido um substancioso intercâmbio entre a região do Cariri e capitais dos Estados Nordestinos, notadamente com as cidades de Recife e Fortaleza. Esse grupo eclético, no qual me incluo, reunia nomes como Bil Soares, Hugo Linard, Jackson Bantin, Walderedo Gonçalves, Múcio Duarte, Pedro Ernesto, José Roberto França, Abdoral Jamacaru, Emérson Monteiro, Jefferson de Albuquerque Jr., Luiz Carlos Salatiel, Pachelly Jamacaru, Vera Lúcia Maia, Luiz Karimai, Ivan Alencar, Cleivan Paiva, Bá Freyre, Zé Nilton, José Wilton (Dedê), Stênio Diniz, José Bezerra (Deca), Valmir Paiva, Geraldo Urano, Socorro Sidrin e Célia Teles, entre outros. A principal marca do Grupo de Artes Por Exemplo era a diversidade das tendências, que se identificavam no objetivo de projetar a cultura do Cariri cearense para o País. Patativa do Assaré participava ativamente dos happenings, espetáculos e recitais do grupo. Fazíamos o Salão de Outubro…
O Salão de Outubro foi muito importante para a cultura do Cariri?
O Salão de Outubro, realizado pelo Grupo de Arte Por Exemplo, a partir de 1974, firmou-se, como um espaço privilegiado de reunião das vanguardas artísticas e das manifestações ditas populares, congregando poetas, artistas plásticos, escritores, cantores, compositores e cineastas em torno da ideia de promover mostras de trabalhos e espetáculos, bem como exercitar o intercâmbio com outros centros artísticos. A proposta do grupo, que se reunia em torno do I Salão de Outubro, era a representação da arte por meio do encontro com os materiais e os elementos da cultura local, buscando, ao mesmo tempo, o cruzamento da tradição com as vanguardas artísticas. Esse ideário transformou o evento num grande sucesso. Havia uma forte influência da contracultura norte-americana, do rescaldo cultural da década de 60, do underground, dos movimentos de contestação, do teatro de Augusto Boal, do Grupo Oficina, do teatro do absurdo de Qorpo Santo, das leituras dos movimentos de vanguarda pós-revolucionários soviéticos, da revista Rolling Stones, dos movimentos de contracultura norte-americanos e europeus – tudo isso junto com cegos cantadores, reisados de mestre Aldenir e do Meste Dedê de Luna, coco do Mestre Carnaúba, poemas de Patativa, Cine Clube da Fundação Padre Ibiapina e programas radiofônicos de Elói Teles. Patativa do Assaré, Cego Oliveira, Zé Gato, Banda de Pífanos dos Irmãos Aniceto, Azuleika, João de Cristo Rei, Mestre Tico, Correinha, Severino Batista do Berimbau de Lata, Mestre Nino, Zé Ferreira, Ciça do Barro Cru, Cícera Fonseca, Mestre Noza, Chico Mariano do Mamulengo, Mestre Bigode, Zé Oliveira, Pedro Bandeira, Cego Heleno e outros artistas populares tomavam parte ativamente dos eventos artísticos, sendo convidados para participações especiais em performances, happenings, recitais e shows.
Junto com Deca e Geraldo Urano, fizemos peças de teatro experimentais, happenings, recitais, apresentações bem vanguardistas no Festival da Canção. Agitávamos o Cariri. Para o Salão de Outubro, de Fortaleza, chegavam nomes como Caio Silvio, Graccho Sílvio, Ana Maria Roland, Ferreirinha, Ângela Linhares, durante a realização do Salão. Na geléia geral brasileira, misturava-se tradição e vanguarda, regional e universal, popular e erudito, como é o caso da Escola de Música do Padre Ágio e a orquestra do Belmonte. O grupo mantinha ainda intercâmbio com os artistas caririenses do êxodo. Em São Paulo, Hermano Penna já conquistara importantes prêmios com seus filmes, e Jefferson de Albuquerque Jr. se profissionalizara no cinema. Tiago Araripe compunha com Tom Zé, fazia parceria com os concretistas Irmãos Campos e participava de um grupo de pop-rock brasileiro chamado Papa Poluição, que tinha, em sua formação, músicos cearenses e baianos, todos radicados em São Paulo. Tiago Araripe ligou-se, posteriormente, com o pessoal da Lira Paulistana.
Uma época de grande efervescência…
Sim, um período de grande efervescência e de vivências intensas. Se Fagner, Ednardo, Belchior, Rodger, Téti, Amelinha, Fausto Nilo e Brandão faziam sucesso e exerciam grande influência sobre os jovens músicos e compositores do Cariri, não menos sucesso e influência exerciam Zé Ramalho, Alceu Valença, Quinteto Violado, Banda de Pau e Corda, Quinteto Armorial, Gil, Caetano, Tom Zé e outros compositores e grupos da cena nordestina contemporânea, além de todo um clima de busca de integração latino-americana por meio das músicas de Violeta Parra, Atahualpa Yupanqui, Victor Jara e Mercedes Sosa. O Jefferson de Albuquerque Jr. chegara do Chile e trazia todas essas novidades. O jornal Versus, com artes e culturas da afro-latino-américa era uma grande referência literária e jornalística. De Minas, chegavam os ecos profundos do Clube da Esquina. Além do mais, o Festival da Canção do Cariri era o grande acontecimento musical da região e revelaria toda uma geração de jovens compositores.
E o Nação Cariri, que rompeu as fronteiras da região?
No início de 1979, em período de férias, reuniram-se, no Crato, vários artistas aí radicados com artistas e produtores culturais que moravam em outras regiões do País. O motivo da reunião era criar um movimento mais amplo de arte e cultura e um jornal que tivesse uma ampla circulação e fosse um elo entre a cultura popular tradicional e jovens artistas contemporâneos antenados com outras influências. Procurou-se um nome para ele, e surgiu Nação Cariri, em homenagem aos índios Cariris e à luta que travaram contra os colonizadores, na chamada Confederação dos Cariris. O grupo inicial foi praticamente o mesmo que fazia o movimento Por Exemplo, no qual eu estava inserido, tendo sido um dos seus fundadores, ao lado de Jackson Bantin, José Wilton (Dedê), Cleivan Paiva, Teta Maia, José Roberto França, Emérson Monteiro, Geraldo Urano, Pachelly Jamacaru, Zé Nilton, Luiz Carlos Salatiel, Stênio Diniz, Jefferson de Albuquerque Jr., Valmir Paiva, Luiz Karimai e Decas, entre outros.
O movimento teve, logo em seguida, a colaboração de artistas que moravam em São Paulo (Tiago Araripe, Hermano Penna, Francisco Assis do S. Lima); em Recife (Ronaldo Brito) e em Fortaleza (Oswald Barroso, Firmino Holanda, Marta Campos, Itamar do Mar e Carlos Emílio Correa, entre outros). A estes nomes, foram acrescidas dezenas de outros, durante a segunda fase do jornal; entre eles, citamos: Floriano Martins, Natalício Barroso Filho, o livreiro Gabriel José da Costa, Fernando Néri, Rejane Reinaldo, Joana Borges, Fátima Magalhães, Juarez Carvalho, Pingo de Fortaleza, Ronaldo Cavalcante, Diogo Fontenelle, Nilse Costa e Silva, Ronaldo Lopes, Alan Kardec e Luciano Maia. Patativa do Assaré era o mestre, aquele que consagramos como poeta maior. Editamos um jornal muito legal, com poemas, artigos, desenhos, ensaios…
E o jornal conseguia circular?
Desde os seus primeiros números, o jornal foi distribuído em várias cidades do interior cearense e em algumas capitais brasileiras, por meio de seus correspondentes, chegando assim a circular em universidades, grupos literários, bancas de revistas, livrarias, sindicatos etc. Contudo, o maior impacto do jornal, com ampla divulgação na imprensa e nos meios intelectuais, foi em Fortaleza, cidade onde o Nação Cariri faria sua história. O ano de 1979 foi um período de grande atividade para aquele movimento. Foi quando, na qualidade de um dos coordenadores do movimento, tomei parte das reuniões preparatórias do Massafeira Livre e sugeri a participação dos jovens artistas e dos artistas populares do Cariri. Como saberíamos depois, o Massafeira Livre iria ter grande importância na carreira e no reconhecimento de alguns desses artistas e servir também de balão de ensaio para o show Canto Cariri, ao qual já fiz referência, quando tratei do Grupo Siriará.
O Nação Cariri deixou de ser apenas do Cariri?
O campo de atuação do jornal foi crescendo cada vez mais e recebeu, inclusive, um efetivo apoio do livreiro Gabriel José da Costa. O Nação Cariri não se conteve em ser apenas um jornal e se transformou em um movimento amplo, independente e combativo, tendo sido capaz de deixar duradouros marcos na cultura e nas artes do Ceará. O Nação Cariri atuou nas áreas de música (promoção de shows, editoria de discos), teatro (peças em sindicatos, bairros e campanhas políticas progressistas), literatura (publicações e recitais públicos), artes plásticas (ilustrações de livros e exposições) e cinema (realização de curtas-metragens sobre cultura popular). A atriz e produtora cultural Teta Maia dá também o seu testemunho: “Foi a partir dessa experiência que os poetas do Nação Cariri retomaram a oralidade dos poemas e realizaram inúmeros recitais em teatros, sindicatos e praças públicas”. Como editora, a Nação Cariri publicou vários livros de autores cearenses, bem como álbuns de desenho, cartazes e folhetos.
Uma das grandes preocupações do movimento, ao mesmo tempo em que dialogava com poetas de vários países e com as manifestações de vanguarda, foi a valorização crítica da cultura popular. Os artistas do povo tiveram vez e voz. Grandes mestres e artistas do povo foram divulgados, com grande repercussão. Exemplo maior dessa ação foi a decisiva participação do grande poeta popular Patativa do Assaré, que sempre fez uso das páginas do Nação Cariri e deu grandes contribuições também em recitais e shows artísticos. Artistas e grupos de artes tradicionais foram valorizados e se tornarem bastante conhecidos das novas gerações. A aproximação do Nação Cariri com os artistas populares do Ceará foi uma experiência muito rica. O encontro da tradição com a vanguarda, do popular com o erudito, do saber científico com o empírico, no calor das lutas e das conquistas de espaços simbólicos, marcou o início de uma caminhada que considero vitoriosa para as culturas populares cearenses.
Oswald Barroso foi outro artista de esquerda com grande contribuição nesse movimento, não é mesmo?
Sim, Oswald Barroso, além de dramaturgo e poeta, é também um pensador, com importante contribuição teórica. A respeito do Nação Cariri, ele afirmou: “Para além das suas buscas estéticas e suas preocupações políticas de esquerda, Nação Cariri caracterizou-se pelo relevo dado às artes e aos artistas populares, trazendo-os para o primeiro plano. Cultivava-se uma arte, que se queria de vanguarda, mas referenciada nas tradições do povo. O encontro com os artistas populares influenciou profundamente setores intelectuais da classe média, ligada ao Nação Cariri. O Nação Cariri buscava a ligação com uma literatura de combate terceiromundista. Nessa direção, publicou uma série de autores estrangeiros, latino-americanos, africanos e asiáticos, de preferência, identificados com suas propostas. (…) A presença recorrente de temas e traços estéticos da vida e da linguagem popular no cinema, no teatro, na música, na literatura e até nas artes plásticas, que hoje se faz no Ceará, não é de todo alheia à influência militante que Nação Cariri exerceu em nosso movimento cultural. O mesmo acontece com o reconhecimento do mérito (inegável, mas por tanto tempo negado) de artistas populares que são hoje orgulho de cearenses e brasileiros”. (Ceará – Uma cultura mestiça. Livro inédito).
Quais suas influências artísticas?
A minha primeira e mais importante influência foi a do meu pai, seu Zé Moura e das minhas avós: Perpétua e Mourinha. Do meu pai, foi um legado ético e de amizade; das minhas avós, o contato com o mundo encantado da cultura popular, por meio das histórias, das canções e das atividades lúdicas. No tempo em que meu pai morou no Crato, ele foi amigo de grandes mestres da cultura popular: Patativa do Assaré, Cego Heleno, Dona Ciça do Barro Cru e outros. A bodega do meu pai e o Bar Tupy, do meu avô Manoel Pereira, bem próximos da bodega de Joquinha, na rua dos Cariris, eram pontos de encontro desses e de muitos outros artistas populares. Conheci ainda Walderedo Gonçalves, mestre Aldenir, Zé Gato Azuleica, os Anicetos antigos, Mestre Noza, Cizin, Cícera Lira, entre tantos outros. Patativa indicou-me a leitura dos primeiros poetas clássicos. Seu Elói já era famoso, e o programa “Coisas do Meu Sertão” era assistido por todos, dos velhos às crianças. Depois entrei nos Seminário São Francisco de Juazeiro e no Sagrada Família, de Crato, onde tive contato com toda uma literatura clássica europeia. Pude assim perceber que muitas dessas influências eruditas e clássicas encontravam-se ainda vivas em muitas das manifestações populares dos grandes mestres.
Como você vê a relação entre arte e política?
Toda arte é política, mesmo quando o artista pretende realizar “arte pela arte”, se partimos da compreensão aristotélica de que o homem é um ser político, vive em sociedade preservando e transformando essa sociedade, em permanente conflito. No entanto, a arte não pode ser enquadrada em ditames burocráticos partidários e ideologias que sufocam a liberdade. As tentativas históricas de acorrentar a arte em padrões burocráticos e sistemas ideológicos fechados, seja por qual ideologia for, sempre se mostraram desastrosas. Eu aprendi a ver a arte ligada à insubmissão, à liberdade.
Você também é poeta. O que a poesia representa para você?
Poesia é sempre a possibilidade da renovação, não apenas da linguagem, mas também do sentido da vida. Em épocas de crise, poetas-samurais podem até ver alguma poesia no brilho das espadas ou no fogo dos canhões e confundirem este brilho fugaz com o brilho da eternidade. No entanto, este brilho aparente é treva. A poesia pode falar da luta libertária, mas ela não é luta, é apenas o sonho de liberdade. A poesia pode ser filha do conflito, mas não se subjuga ao conflito. Hoje, já na meia idade, é que vim compreender isto. Enquanto vida, a poesia é maior do que as guerras e que as revoluções, pois almeja a paz e só se realiza no mais profundo humanismo, de forma radical, tendo o homem como raiz do homem. Mesmo quando ela é sagrada e fala de Deus, é do homem que ela fala; do homem e dos seus sentimentos, do homem e da sua fragilidade, do homem e da sua busca irrealizada de absoluto. Quando o instinto da morte triunfa, a poesia se faz ainda mais necessária. Adorno afirmou, certa vez, que não era possível fazer poesia depois de Auschwitz. Talvez o certo seja afirmar que, depois de Auschwitz, a única coisa que ainda pode salvar o homem é a poesia. Quando eu penso em poesia, no Cariri, eu penso em Patativa do Assaré e Geraldo Urano, dois grandes poetas, de estilos e visões do mundo completamente diferentes, e, no entanto, necessários e vitais. O Cariri seria mais pobre sem esses dois grandes poetas. Patativa do Assaré já morreu e foi reconhecido em vida e também na posteridade. O Geraldo continua vivo e ainda desconhecido. Quero um dia dedicar um ensaio à poesia de Geraldo Urano.
A sua estética cinematográfica busca uma contextualização histórica e apresenta um discurso engajado. A estética de Glauber Rocha e Bertolt Brecht está contida na sua produção?
Sim, pode ser compreendida como um discurso engajado, no sentido de que, embora buscando um discurso universal, não me desligo dos processos históricos e culturais nos quais estou inserido, o que provoca novas possibilidades de reflexões sobre esses mesmos processos históricos e culturais. As contribuições marcantes de Glauber e Bertolt Brecht estão presentes nas minhas obras, mas não mais do que cineastas como Paradjanov e Pasolini, ou de mestres como Patativa do Assaré , Mestre Aldenir e Mestre João Aniceto e Ariano Suassuna, para ficarmos apenas em alguns poucos exemplos, entre os muitos. Não parti apenas do discurso neo-barroco glauberiano ou do teatro épico de Brecht, descobri outras formas do barroco, do épico, do figural, do poético, do sagrado, do rebelde, nas próprias manifestações das culturas populares nordestinas, que são herdeiras das grandes correntes culturais ibéricas, mediterrâneas e magrebinas. Ainda estou buscando caminho. Talvez por isso, eu goste muito do filme Siri-Ará, enquanto busca de construção narrativa e estética. Neste filme eu trabalhei, ao lado de atores profissionais, com o reisado do mestre Aldenir Callou e com a Banda de Pífanos dos Irmãos Aniceto.
A diversidade cultural das manifestações populares é recorrente nas suas obras. Qual a importância da “cultura do povo” (termo utilizado pela filósofa Marilena Chauí para reformular o conceito de cultura popular) para afirmação da identidade nacional?
Uma identidade nacional não é algo definido, é algo em construção. O que é o povo brasileiro? Para Darcy Ribeiro, que vê o Brasil como uma Roma tardia, é resultante do “encontro de todas as taras e talentos da humanidade”. Para mim, o povo brasileiro é esse imenso caldeirão étnico e cultural, onde a humanidade se reinventa com a contribuição de mil povos, de mil raças e de mil culturas. Quando falamos em cultura do povo, no Brasil, estamos falando de culturas dos povos, sejam povos autóctones ou povos transplantados que trouxeram também suas influências e mestiçagens. Quando se fala em povo brasileiro, estamos falando nessa herança de toda a humanidade. Quando estamos falando em regional, com certeza, queremos dizer universal. É preciso pensar o que chamamos de “cultura do povo”, de forma mais ampla e mais generosa, sem as peias do regionalismo ou do nacionalismo fechado.
Quando você foi Secretário da Cultura no Crato desenvolveu um projeto audacioso de intersetorialidade no bairro Alto da Penha, que foi denominada de Projeto Rabo da Gata, o qual envolveu implantação de videoteca, biblioteca, realização de cursos e até saneamento básico, entre outras ações. Qual a importância da intersetorialidade nas políticas públicas para a cultura?
Em 1996, eu estava na França, quando fui convidado pelo Dr. Raimundo Bezerra para ser Secretário de Cultura do Crato. Abandonei alguns projetos importantes e vim para o Crato. Na época, a Violeta Arraes era Reitora da Urca. Vim porque um sentimento mais profundo me chamou e eu acreditava que poderia dar alguma contribuição para o desenvolvimento da cultura local. Fizemos o possível, dentro das possibilidades reais, lutando contra visões bem conservadoras. Mesmo assim, ainda conseguimos realizar um bocado de coisas, e mesmo as coisas que não foram realizadas no Crato terminaram por fecundar e ser gestadas no Estado do Ceará em outros Estados. Alguns projetos, como o dos Mestres e Guardiões dos Saberes Populares, que lançamos no Crato, com a grande contribuição de Cacá Araújo e Elói Teles de Moraes, em 1976, vieram depois a se tornar política pública federal. Entre alguns projetos que foram postos em prática ou elaborados naquele momento, cito: o I Encontro das Culturas Populares do Nordeste e os projetos do Parque Histórico do Caldeirão, da Universidade de Saberes Populares e Contemporâneos (Escola de Saberes), Festival de Cultura dos Povos (transformado posteriormente em Encontro de Mestres do Mundo), do Centro Cultural da RFFSA, do Crato, do Corredor Cultural do Crato (que previa o estabelecimento de escolas de teatro, de dança, de cinema, de artes plásticas, oficinas de literatura, entre outras, deste o sítio Lameiro, onde está situada a Escola do padre Ágio, passando pelo bairro do Pimenta, pela URCA, Parque de Exposição, pelo Rabo da Gata – derivando para a Praça da Sé, pela Estação Ferroviária, seguindo a ferrovia com ocupação dos espaços com quiosques culturais, passando pela Faculdade de Direito, até chegar ao Pau do Guarda), da Associação dos Curumins do Sertão (terminou acontecendo em Farias Brito), da Fundação Cego Aderaldo (depois intitulada Mestre Elói) e da Revitalização do Bairro Rabo da Gata (Crato), entre outros. O projeto da Estação chegou a ser realizado, e a revitalização da Quadra também. Não sei como ficou o Cine Estação Moderno, que já tinha sido começado e para cuja conclusão conseguimos mais recursos, na época.
E as festas populares?
Lembro-me também do Grande encontro da malhação do Judas, da Coroação de Nossa Senhora, na igreja matriz, com centenas de anjos e a orquestra do Padre Ágio. Um espetáculo de significado profundo (que toma o religioso sob o signo do feminino), o Projeto de Revitalização do Bairro Batateiras (Parque Ecológico da Nascente) etc. Tentamos ainda fazer grandes festas ligadas a Nossa Senhora do Belo Amor, à Confederação do Equador e à memória de Dona Bárbara. Não conseguimos tudo, mas os projetos foram feitos. Queríamos colocar o Crato novamente no grande circuito cultural do Nordeste. Em tudo que fazíamos, havia essa integração entre cultura, educação, saúde, bem estar social, cidadania etc. Não praticávamos um conceito fechado do exercício cultural. Cultura, para nós, tinha um conceito bem amplo e participativo, intersetorial. Era um projeto que estava ligado às lutas pelas transformações sociais. Tínhamos uma turma boa: o Cacá Araújo, a Dane de Jade, o Carlos Rafael, Alemberg Quindim, Cleivan Paiva, o Bola e tantos outros. Não custava sonhar, e nós sonhávamos. Essa experiência durou apenas um ano. Dr. Raimundo Bezerra, o prefeito do Crato, que morreria algum tempo depois, também era um sonhador, um homem culto que lutara contra a ditadura e que conhecia o mundo. O Crato deve uma homenagem a esse grande homem.
Você tem uma forte ligação com o movimento de esquerda, tendo inclusive sido militante do PCdoB. Isso contribuiu para a forma do seu pensar e fazer artístico?
Sim, fui militante político do PCdoB, no final da década de 1970, até meados da década de 1980 e foi um período muito importante da minha vida, pela participação nas lutas coletivas e pelos companheiros que conheci. Do partido, ampliamos os nossos campos de leitura sobre filosofia, sobre história, sobre cultura e sobre arte. Aproximamo-nos ainda mais das artes russas do período pós-revolucionário, das leituras e de Brecht etc. No entanto, jamais consegui engolir o conceito de “realismo socialista”, que deveria ser imposto a todos os povos do mundo, passando por cima das diversidades culturais dos povos. Zadnov sempre me pareceu um burocrata medíocre e fez um enorme mal às artes dos artistas socialistas de todo o mundo. Essa visão burocrática e reducionista afastou das lutas socialistas alguns dos mais importantes artistas do mundo e, subsequentemente do Brasil, da militância socialista. A arte não pode ser presa em formas burocráticas. Panfletária, romântica, dadaísta, surrealista, barroca, futurista, popular, erudita, não importa, a arte deve ser libertária.
Qual a contribuição do marxismo para a compreensão da arte e da cultura?
O marxismo contribui de forma marcante com o pensamento crítico das culturas e das artes no século XX. Podíamos mesmo dizer que foi influência dominante nas universidades e nos grupos intelectuais de todo o mundo. O que não era marxismo, muitas vezes, eram respostas ao marxismo. Georg Lukács (1885-1971), Antonio Gramsci (1891-1937) e Theodor Adorno (1903-1969) são nomes importantes, mas a eles somam-se centenas de outros. Marx, Engels, Lenin e Trosky também têm importantes reflexões sobre a cultura e as artes. Se fôssemos citar os artistas que fizeram uma arte ligada aos princípios da filosofia marxista, teríamos uma enorme quantidade de nomes que perpassam todos os movimentos culturais e artísticos do século.
Como vê você a circulação da produção cinematográfica brasileira?
A circulação, ou seja, a distribuição e exibição são os grandes problemas do cinema brasileiro. Muitas vezes, 2/3 das quase duas mil salas de cinema no Brasil são ocupados por um único produto norte-americano, os chamados blockbuster. As majors, as empresas transnacionais que detêm a hegemonia do mercado internacional, determinam a ocupação desses espaços. Por outro lado, as salas estão concentradas nos shoppings centers e constituem um espaço de lazer da classe média dos grandes centros urbanos. O cinema popular no Brasil foi destruído, não existem mais cinemas populares nos bairros das grandes metrópoles e nas cidades de médio e pequeno porte. Imaginem que, na cidade do Crato, na década de 1960, existiam seis cinemas. No Cine Educadora, funcionava um Cineclube ligado à Fundação Padre Ibiapina que era importantíssimo. Nós víamos o melhor do cinema mundial. O que resta, hoje? Quantas salas de cinemas existem no Crato? Quantas salas de cinema existem no Cariri? Que filmes são exibidos nessas salas? O Cine Mais Cultura, do MinC, está com o projeto de instalar 2.000 salas de cinemas populares no Brasil, em cidades de pequeno e médio porte. O Cariri devia se mobilizar e instalar salas de cinema em todas as cidades da região. Seriam salas de cinema em pequenos centros culturais comunitários, com gestão coletiva etc. É preciso criar novos modelos. Com as novas tecnologias e a convergências de mídias, ficou mais fácil encontrar soluções criativas.
A produção cinematográfica estadunidense é um empecilho para o cinema latino- americano e caribenho?
A produção de Hollywood é um problema não apenas para o cinema latino-americano e caribenho. Acredito mesmo que essa produção, que detém por volta de 90% do mercado mundial, é um problema para todo o mundo e mesmo para os cineastas independentes dentro dos Estados Unidos. Esta indústria de cinema é tratada como indústria estratégica e é colocada pelo Estado no mesmo pé de igualdade da indústria da guerra. Eles sabem que aonde chegam os filmes norte-americanos chegam também seus produtos, seu modo de vida, sua ideologia… A grande guerra que se trava no mundo hoje não é a de tanques, é a de satélites, é a do controle dos meios de comunicação de massa, é o domínio das mentes e dos corações.
O Coletivo Camaradas homenageará a sua produção em 2010, tendo em vista o caráter engajado das suas obras. O que isso representa para você?
Representa que esse coletivo de jovens do Cariri poderá levar os meus filmes e meus poemas a encontrar-se com o público da periferia da cidade do Crato e de outras cidades da região. Se os meus filmes sempre foram feitos com a marca da coletividade, é bom que esses filmes sejam devolvidos à comunidade.
Quais seus planos para 2010?
Rodar o filme Folia de Reis, uma farsa popular sobre o neocolonialismo e o consenso de Washington (os reflexos perversos dessas políticas nos países subdesenvolvidos). Também quero instalar no Cariri, de forma experimental, as primeiras “Escolas de Saberes Tradicionais e Contemporâneos”, no caso, o “Saber Reisado” e o “Saber Cabaçal”. Vou tentar.
Fonte: Blog Coletivo Camaradas