Camponês é história viva do movimento sindical

Euclides Nascimento viu de perto o golpe militar de 64. Dirigente camponês, foi odiado por usineiros e plantadores de cana. Enfrentou, olho no olho, um ministro do Trabalho, devolvendo a abanação que sofrera no rosto. Conheceu de perto o padre Melo, que “conseguiu intervenção em 30 sindicatos” rurais.

euclides

Foi presidente de sindicato, e por sete anos presidiu a Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco. Na primeira vez que conversou com Miguel Arraes, disse-lhe que o Estado não tinha governo porque camponeses eram espancados pela polícia. Arraes, então, respondeu que nenhum trabalhador seria mais agredido. “Dito e feito”, diz Euclides. Há pouco, ele foi o assunto principal do documentário A voz do Campo, exibido em circuito nacional. Na entrevista abaixo, ele descreve sua trajetória.

 Onde você nasceu e como começou sua militância sindical?

Eu nasci em 17 de junho de 1932, no Engenho Cafundó, hoje município de Buenos Aires. Muito jovem, já fazia um trabalho de apostolado, na diocese de Nazaré da Mata. Vi trabalhadores em situação de extrema miséria. Fui chamado pela Igreja católica para fundar sindicatos de camponeses na Zona da Mata, em 61. Eu não sabia o que era sindicato. Eu tinha 27 para 28 anos. Vim para Recife fazer um curo no Sorpe – Serviço de Orientação Rural de Pernambuco. Na volta, fundamos o sindicato de Nazaré da Mata no mesmo ano, com base territorial também em Carpina, Paudalho e Recife. Eu morava no sítio de meu pai, plantando mandioca, inhame, milho, feijão. Criava um garrotinho na cocheira.

– Ficou conhecido pelos latifundiários?

O sindicato cresceu. Em 62 os latifundiários se revoltaram contra mim. Diziam que eu era perigoso, comunista. O trabalhador não tinha direito nem a férias, vivia escravizado. Em 63 o sindicato foi reconhecido legalmente. Com o Estatuto do Trabalhador Rural, passou a ter direitos. Em 63, houve a maior greve de trabalhadores na Zona da Mata. Foi quando trabalhadores e usineiros sentaram pela primeira vez para negociar cara a cara. Então, no primeiro governo Arraes, foi assinado o Acordo do Campo. Obtivemos 80% acima do salário oficial, e o primeiro contrato de trabalho no meio rural, a Tabela Normativa de Tarefas. Houve uma melhora na condição de vida no campo. Em Nazaré da Mata, no sábado, 14 bois eram abatidos para a carne ser vendida na feira. Com o salário, o trabalhador começou a comer carne e a comprar seus móveis e melhorar suas casinhas. Em Nazaré da Mata, passaram a matar 40 bois por semana, e não sobrava carne. O comércio cresceu, os trabalhadores passaram a andar de bicicleta. O sindicalismo passou a ser orgânico, de base pra valer. Foi quando houve o golpe militar.

– No golpe militar você era um sindicalista novo. O que representou o acontecimento para você?

Chamavam de revolução. Pensávamos que a “revolução” vinha para corrigir as injustiças dos usineiros e senhores de engenho. Antes nós tínhamos um inimigo que era o latifúndio. Com o golpe militar passamos a ter dois inimigos: o latifúndio e a ditadura militar. Houve espancamentos e torturas de lideranças.

Com o golpe você perdeu algum amigo?

Muitos amigos fugiram de mim, passaram a me evitar. Diziam que eu era perigoso. Até gente que trabalhava comigo no apostolado da Igreja, com uma fitinha vermelha no pescoço, me evitou. Diziam que eu era cangaceiro, que evangelho não era aquilo. Até em casa meus pais me pediram para eu sair disso, porque podia morrer a qualquer momento. Eu dizia que ia morrer… Quando, como e onde, eu não sei. Mas não fugi, continuo até hoje na luta.

– Quando você abriu os olhos, como começou a reagir contra o golpe?

Os latifundiários me denunciavam. Eu era chamado pela ditadura. No começo pensava que seria bem acolhido, mas eu ouvia era grito. Ah…- eu disse – é outro inimigo desgraçado. Então, briguei muito com coronel, com polícia federal. Em 72 eu tive meus direitos sindicais cassados.

– Em quais anos você foi presidente da Fetape?

A partir de 66 a 72. Em 74 e 75, fui secretário interino. Em 72, quando terminei meu mandato, já foi com meus direitos cassados, para não me recandidatar na Fetape nem no sindicato. Minhas relações com os militares eram quando eu era chamado, intimado. Também procurei imprensar eles. Como no caso de Honorato Cabral, em Condado, onde ele derrubava as casas dos trabalhadores. Denunciei Honorato no IV Exército. Pegaram minha denúncia e mandaram para a Justiça Federal. Fui chamado para depor, disse tudo e provei. Honorato Cabral ainda passou uns 18 dias preso. Foi solto com o relaxamento da prisão preventiva.

– Como foi o caso do enfrentamento que você teve com o general do IV Exército?

Foi com o ministro do Trabalho, Júlio Barata, da ditadura. Fui eu quem pedi a audiência, porque ele havia intervido em dois sindicatos, Pesqueira e Alagoinha, injustamente. Ele veio ao Recife, para a Delegacia Regional do Trabalho. Romeu da Fonte quis falar mas não deixaram, disseram que advogado fala em juízo, “não aqui.” Ele disse: “Intervim justamente porque eram sindicatos subversivos que estavam sendo dirigidos por estudantes!” Não era. Pedi para ele sustar a intervenção. Ele abanou a mão na minha cara, dizendo “Você é juiz, para julgar a questão!” Eu pensava que aquilo era uma cortesia, da ética pedagógica deles. Eu abanei a mão na cara dele também, dizendo que não precisava de abano na cara não. Ele zangou-se e acabou coma a audiência. O delegado do Trabalho era Romildo Leite.

– Houve represália?

A perseguição era muita. Quando havia denúncia contra usinas, feita por trabalhadores, eu ia em cima. Tive um pega com a Usina Salgado, fui chamado na DRT porque reagi contra a expulsão de 300 famílias de camponeses, que eles queriam botar num cercado de animais para ficar com as terras das famílias. Eu disse que o acordo não seria assinado, a não ser que as famílias fossem transferidas para uma terra semelhante ou melhor.

– Qual a diferença entre padre Melo e padre Crespo?

A diferença era muita. Padre Melo ajudou a fundar sindicatos, mas quando veio o golpe, ele conseguiu botar intervenção em 30 sindicatos da Zona da Mata. E padre Crespo foi coerente até o fim; está bem velhinho, fraquinho, mas não mudou. A Fetape entrou em guerra contra Haroldo Veloso Furtado, delegado do Trabalho, e padre Melo. Tentaram intervir na Fetape. Eu estava no Rio de Janeiro, chegaram com uma ata de fora pra dentro, até com camburão da polícia. Ninguém assinou a ata de intervenção.

– Qual governo do golpe causou mais problemas ao movimento dos trabalhadores rurais?

Foi o de Garrastazu Médici, ruim dos pés à cabeça. No governo do Estado, é até difícil dizer qual foi o pior, foram todos ruins. O melhor foi o de Miguel Arraes. A gente se reuniu no salão nobre do Palácio, camponeses da Zona da Mata Sul e Norte. Eu disse que até aquela data Pernambuco não tinha governo. Em Barreiros, a Polícia Militar tinha espancado trabalhadores e suas famílias. Foi quando ele disse: “A partir de agora, a polícia não bate mais em trabalhador.” Dito e feito. Eu era presidente do sindicato de Nazaré da Mata.

– Qual o usineiro mais violento que o movimento sindical teve que enfrentar?

Foi Honorato Cabral de Souza Campos, que não era usineiro, era plantador de cana. Depois, a família Leão, em Palmares, onde foi morto o trabalhador José Benedito da Silva. Honorato Cabral destruía os sítios dos trabalhadores, com tratores derrubava as fruteiras. 45 foreiros foram prejudicados no engenho Patrimônio. No golpe, juntou os capangas, ele de metralhadora. Derrubou a porta do sindicato de Condado e deu uma surra no presidente, Severino Correia, que ficou aleijado. Arrastou a mãe e a irmã de Severino pelas ruas; elas estavam de camisão. E roubou seis mil cruzeiros do sindicato. E forçou um trabalhador a cavar um buraco e enterrar um outro vivo!

– Já acompanhou Miguel Arraes em campanhas eleitorais?

Já. Em Timbaúba, eu estava na calçada… Tinha uns lojistas que eram contra Arraes. Começaram a falar mal dele. O povo que estava por perto ouviu e se juntou a Arraes. Ele nem precisava pedir voto. Conversava sobre os preços das mercadorias e dizia que era preciso unir as forças populares.

O movimento sindical rural, hoje, está unificado?

Não está. Ou está em parte. De dirigente para dirigente, está. Na Fetape está. As diferenças com o MST é porque o MST prega o confronto armado. A Fetape, não. Mas a Fetape defende e tem feito ocupação de terras improdutivas.

Por Marco Albertim