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Cultivo do algodão tem forte incidência de trabalho escravo na BA

A escravidão é um dos capítulos mais tristes da história da humanidade. Na Bahia, estado com maior número de descendentes de negros escravizados trazidos da África, ocorrem novas formas desta prática, principalmente na região Oeste do estado, onde grandes empresas do chamado agronegócio submetem trabalhadores a condições desumanas nas lavouras de soja, milho, algodão e café. Aos sindicatos rurais e ao Ministério do Trabalho cabe a tarefa de resgatá-los.

Alojamentos precários, falta de água potável, alimentação insuficiente e cerceamento do direito de ir e vir. Estas são as principais características do que hoje é definido como trabalho escravo no Brasil. As vítimas são em sua maioria trabalhadores rurais com pouca ou nenhuma instrução, que se submetem a tarefas degradantes em troca da promessa de uma pequena remuneração, que muitas vezes não chega. Levados para fazendas distantes e sem ter como retornar para casa, homens e mulheres acabam trabalhando para pagar a comida e o alojamento.

Já chegam devendo

“Muitos chegam a estes locais já devendo a viagem e são obrigados a permanecer ali até quitar a dívida que só faz crescer com o tempo. Feijão, farinha, café e até água são cobrados dos empregados, todos a um preço muito alto. Depois de algum tempo, eles acabam trabalhando por um prato de comida e o direito de dormir em uma barraca velha de lona”, informa Edivandro Oliveira, assessor sindical da Fetag – Federação dos Trabalhadores na Agricultura na Bahia.

O recrutamento acontece nas zonas rurais ou via carro de som em cidades pequenas. São nos bolsões de pobreza que os agenciadores de mão-de-obra, “os gatos”, atraem desempregados com oferta de trabalho. Na maioria das vezes, o acerto não prevê carteira assinada, férias ou quaisquer outros direitos trabalhistas. Ainda assim, para sustentar a família, muitos arriscam a vida na carroceria de caminhões pelas estradas. “A maioria das vezes o trabalhador não tem contato com o dono da fazenda. São os gatos que resolvem tudo. Eles recrutam, transportam e fazem os trabalhadores se endividarem, mas o principal responsável pela escravidão é o dono da lavoura. É ele que responde pelo pagamento dos direitos, quando a fiscalização chega. Terceirizar o serviço não diminui o crime dos fazendeiros”, reforça Oliveira.

Realidade baiana

Na Bahia, a situação não é diferente. No ano passado, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontrou 285 pessoas vivendo em condição análoga à escravidão. Os dados não refletem a realidade, pois se referem apenas aos trabalhadores resgatados. Na prática, o número de escravos pode ser ainda maior. “Muita gente passa por essa situação, mas tem medo de denunciar. Outros são mandados de volta para casa depois que o período da safra passa e voltam para sua cidade com uma mão na frente e outra atrás. São pessoas que não conhecem os seus direitos e não procuram os sindicatos”, lamenta o diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barreiras, Walmir Santos.

O perfil do trabalhador escravizado no estado é de maioria masculina, entre 18 e 44 anos, predominantemente analfabeta ou com, no máximo, dois anos de estudo. São normalmente recrutados nos estados vizinhos como Minas Gerais, Piauí e Goiás ou em cidades de regiões bem afastadas do local de trabalho. A maior incidência de casos está na região Oeste da Bahia, compreendida entre os municípios de Formosa do Rio Preto, ao norte, e Cocos, ao sul. Composta por 39 municípios, a região tem vários fatores que facilitam o trabalho escravo, como a grande extensão territorial, baixo índice demográfico e dificuldade de acesso e locomoção, além de ter no agronegócio a principal atividade econômica. Em 2009, a maior parte dos casos ocorreu nos municípios de São Desidério, Luís Eduardo Magalhães, Barreiras, Formosa do Rio Preto e Correntina, cidades que ficam a mais de 800 km da capital.

Algodão, soja, milho e café

Na região, foi detectado trabalho escravo nas plantações de soja, milho e café irrigado, mas é na capina do algodão que acontece a maior incidência. “A colheita é praticamente toda mecanizada, mas o serviço pesado de limpar a terra, catando as raízes e preparando para um novo plantio é todo feito pelo trabalhador braçal. Em cada propriedade é preciso de 200 a 300 pessoas para este serviço e ai eles tentam economizar, burlando a lei e os diretos destas pessoas”, afirma o sindicalista, que costuma receber denúncia de trabalho escravo de diversos municípios da região. “As pessoas confiam no Sindicato e sabem que vamos levar o problema ao conhecimento dos fiscais do trabalho para que a questão seja resolvida”, enfatizou Santos.

Ao grupo de fiscalização móvel – formado por auditores fiscais, procurador do Trabalho e agentes da Polícia Federal – cabe a ação de apuração das denúncias, localização e libertação dos trabalhadores escravizados. A operação é sigilosa e muitas vezes necessita da ajuda dos sindicatos rurais, que por conhecerem melhor a região levam os fiscais com maior facilidade às propriedades que praticam o trabalhado escravo. São normalmente fazendas em área de difícil acesso, o que dificulta a fuga do trabalhador.

Intoxicação

A operação do MTE mais recente ocorreu em 19 de março, na Fazenda Guarani, em São Desidério, a 879 km de Salvador, que empregava 42 trabalhadores rurais no cultivo do algodão sem equipamentos de proteção individual, mesmo lidando com agrotóxicos, e instalados em alojamento sem chuveiro e em condições precárias de higiene. Um dos trabalhadores apresentava sintomas de intoxicação por exposição ao agrotóxico, mas confessou que, apesar da queimação e mal estar, não reclamava por medo de ser demitido.

A libertação do trabalhador da fazenda onde está preso pode parecer o final do problema, mas na verdade é apenas o primeiro passo para solucionar uma questão muito maior. Quando um trabalhador é resgatado do trabalho escravo, o empregador é obrigado a pagar todos os direitos negados até então, como assinatura da carteira de trabalho, pagamento de férias, 13º salário, horas extras e outras verbas indenizatórias. “Normalmente o trabalhador fica satisfeito com o dinheiro que recebe, volta para a sua cidade e nunca mais dá notícia. O problema é que o dinheiro acaba, a necessidade aperta e o cara cai novamente nas mãos do gato”, lembra Edivandro Oliveira, assessor sindical da Fetag.

Emprego

“Uma das maiores preocupações da Fetag é garantir emprego para estes trabalhadores. Não é só uma questão de receber o dinheiro, mas tem também o principal que é oferecer as condições para que este trabalhador não volte para aquela situação. As pessoas são vítimas do trabalho escravo porque não têm trabalho em seu estado. Então a fiscalização devolve o cara para a sua cidade, mas ele fica lá sem emprego, correndo o risco de ser enganado novamente”, reforça Oliveira.

Os diversos órgãos envolvidos na questão também têm pensado em uma solução definitiva para a questão. Desde 2002, a OIT e o governo brasileiro deram início ao projeto de cooperação técnica Combate ao Trabalho Forçado no Brasil, que promove a atuação integrada de todas as instituições nacionais que defendem os direitos humanos. Em 2003, o Governo Federal referendou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Forçado. Em âmbito local, o governo estadual formulou a Agenda Bahia do Trabalho Decente, sob a coordenação da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte, que tem como um dos eixos centrais o combate e a erradicação do trabalho escravo.

De Salvador, Eliane Costa