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A política externa e a questão iraniana: recalibrar o debate

A atuação da política externa brasileira na disputa entre o Irã, Estados Unidos e aliados foi objeto de controvérsia nos últimos dias. No Brasil e no exterior, as opiniões dividiram-se. De um lado, aqueles que saudaram a iniciativa do governo Lula, caso de Roger Cohen no Herald Tribune (http://bit.ly/8Zv5sc). De outro, os analistas que criticaram a diplomacia de Brasília em termos duros, como Samuel Feldberg na Folha de S.Paulo (http://bit.ly/b7jzXY).

Por Por Flávio Rocha de Oliveira *

Isso sem falar nas previsíveis avaliações dos representantes diplomáticos do PSDB, que sempre freqüentam os programas de Míriam Leitão e William Waack na Globonews.

O protagonismo do Brasil, simbolizado na atuação da dupla Lula-Amorim, tem um mérito inegável: trouxe a importância das Relações Internacionais para o debate cotidiano. Ao mesmo tempo, serviu para mostrar a dificuldade que setores inteiros têm em absorver o fato de que a República Brasileira está ajudando a reordenar o tabuleiro do poder mundial.

Analisando esses acontecimentos em vários níveis, pode-se obter uma visão um pouco mais clara do que está em jogo, dentro e fora do Brasil.

Num primeiro nível, há a situação do sistema internacional em relação ao Irã. É sabido por todos os observadores que os iranianos estão num jogo pesado com os Estados Unidos e seus aliados, que temem as finalidades bélicas do programa nuclear de Teerã. Essa disputa é observada com atenção pelos países árabes do Oriente Médio, como Arábia Saudita e Egito, que não desejam ver o Irã possuidor da arma nuclear e em posição de reivindicar uma hegemonia localizada no Golfo Pérsico.

A posição da Rússia e da China sempre aparece como dúbia. É difícil para os EUA convencê-los a entrar no barco das sanções contra os iranianos. Os russos usam a sua posição para enfraquecer os americanos na Ásia Central e na Europa Oriental, procurando recuperar parte do status de grande potência perdido com o fim da União Soviética. No caso chinês, a voracidade por petróleo pesa na protelação diplomática que Pequim executa no Conselho de Segurança.

Num segundo nível, temos as ambições diplomáticas globais brasileiras. O Brasil é uma potência ascendente. Reivindica uma reforma no Conselho de Segurança da ONU e tem um foco consistente no desenvolvimento de tecnologias sensíveis, como a nuclear (geração de energia e construção de um submarino nuclear). Vários setores da sociedade e do Estado compartilham a visão de que o Brasil tem muito a lucrar ocupando espaços junto a países em desenvolvimento da África e da Ásia.

A partir daí, mediar um acordo diplomático com o Irã surge como uma possibilidade de ganho diplomático e de posicionamento estratégico no Oriente Médio, em particular, e em outros países do mundo em desenvolvimento.

Ao empreender uma ação mediadora juntamente com a Turquia – aliado imprescindível dos Estados Unidos – o Brasil envia um recado para a comunidade internacional: defenderá seus interesses ativamente, negociando mesmo sob condições desfavoráveis. Enfrentando a desconfiança e a incredulidade da diplomacia norte-americana (lembremos do ceticismo da secretária de Estado Clinton), o Brasil toma uma atitude calculada de modo a mostrar que ele saberá tomar uma posição frente a temas controversos.

O Brasil aceita correr o risco de um fracasso diplomático (isso sempre existe, e qualquer analista político sabe disso), mas mostra que agirá como uma potência emergente que deseja participar da gestão responsável do sistema internacional.

Apresenta essa prática como uma política de Estado e não apenas uma aventura da chamada diplomacia presidencial. Também deve-se levar em conta que essa crítica está mal colocada por certos analistas brasileiros. Praticamente não há política externa nas grandes potências que não tenha um toque presidencial, como é o caso dos EUA, com Obama, ou da França, com Sarkozy, e em ambos os casos ela ocorre junto com o funcionamento normal das instituições diplomáticas profissionais.

Se o Irã seguir o acordo proposto, o Brasil poderá reivindicar ter sido um dos construtores de uma importante vitória diplomática que estabilizará a região. Se os iranianos e a comunidade internacional (leia-se EUA e aliados) não chegarem a um acordo, então o Brasil poderá dizer que fez a sua parte juntamente com a Turquia, mas que o ônus caberá a um ou a todos os principais protagonistas.

Num terceiro nível, temos as relações com os Estados Unidos. Alguns grandes órgãos da imprensa brasileira (Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e Veja),e da imprensa americana (The New York Times, Washington Post) abriram espaço para esse tema. Houve uma profusão de análises sobre o desgaste que o Brasil sofrerá em sua relação com os EUA por ter ficado ao lado dos iranianos, com alusões a uma possível perda de apoio em Washington quando da reforma do CSNU (como se a reforma estivesse na pauta hoje…).

Essas críticas são apressadas e pouco realistas. O Brasil não se alinhou incondicionalmente ao Irã, como o fez a Venezuela. O Brasil não realizou, em nenhum momento, uma declaração oficial antagonizando os Estados Unidos e o Brasil não está fazendo nenhum esforço de transferência de tecnologia nuclear para o Irã.

O que há é uma ação diplomática que visa, entre outras coisas, mostrar principalmente (mas não exclusivamente) aos Estados Unidos que o nosso país é um ator político relevante e com disposição para correr riscos calculados no sistema internacional.

Num quarto nível, temos a política doméstica brasileira. Estamos em época de eleição. Por vezes, a impressão que surge quando se presta atenção ao noticiário, é que isso não está influindo na cobertura da imprensa brasileira!

A ação do presidente Lula tem o componente das eleições em mente pelo menos numa parte do tempo. O tema Relações Exteriores nunca foi central no debate eleitoral e político brasileiro. Muito menos o de Defesa. Essa situação mudará dramaticamente nos próximos anos, e o que a sociedade está testemunhando atualmente são os primeiros passos nesse sentido. Nessa eleição, a atuação do governo brasileiro fará parte dos discursos dos candidatos presidenciais da situação e da oposição, Dilma Roussef e José Serra.

Para melhorar ainda mais o posicionamento de sua candidata, o presidente Lula seguramente defenderá o acordo diplomático com o Irã e outras atuações inéditas no Oriente Médio. Em relação a Israel, por exemplo, o presidente Lula poderá chamar a atenção para a visita que fez a esse país e para o fato, que passou quase desapercebido na imprensa brasileira, de que o primeiro acordo firmado pelo Mercosul com um país fora do hemisfério foi justamente assinado pelo Brasil com os israelenses esse ano!

Da parte da oposição, compreensivelmente surgem as críticas mais pesadas. Todavia, o clima eleitoral produz comentários apressados e desprovidos de bom senso. E isso ocorre através da mediação de certos órgãos de imprensa.

As informações desencontradas brotam continuamente da imprensa brasileira mais alinhada com a oposição, como o jornal O Estado de São Paulo, a revista Veja, e a Globonews. Há o argumento de que o Brasil está abrindo mão de uma diplomacia responsável e discreta em prol de uma pirotecnia política que nada acrescenta aos interesses brasileiros. E surgem comentários indicando que o presidente Lula articula sua ida para a ONU ou para o Banco Mundial, o que poria em dúvida sua atuação junto ao Irã…

Por vezes, essa predisposição “jornalística” gera situações curiosas. Nos primeiros dias após a assinatura do acordo, em alguns sites noticiosos ligados a esses jornais, temos algum especialista criticando a atuação brasileira, e não é citado nenhum pensamento contrário, que elogie a ação do Brasil. Alguns dos órgãos acima citados fornecem informações no sentido de mostrar que as sanções econômicas acabarão abalando o regime iraniano, e não noticiam que o comércio de petróleo não será objeto das punições para não criar uma disposição negativa por
parte da China.

A título de exemplo, no dia 21 de maio, o programa Painel reuniu alguns especialistas com uma capacidade desconcertante de repetir o óbvio e de fugir das questões mais relevantes. O ex-chanceler Celso Lafer passou boa parte do programa apenas defendendo a sua atuação como Ministro das Relações Exteriores durante a Era FHC.

Perguntado sobre como o Brasil votaria no CSNU no tocante às sanções contra o Irã, o Prof. Eduardo Viola respondeu que a racionalidade implicaria na votação pela aplicação das punições, mas que a irracionalidade desse governo (o brasileiro) não permitiria isso. Haveria uma irracionalidade extrema, que seria votar contra (!!) e uma irracionalidade moderada, prisioneira do passado, que levaria o Brasil a abster-se (!!!).

O Prof. Guilhon Albuquerque, na mesma pergunta, disse que se a China votar a favor, só resta ao Brasil abster se para salvar a cara (!!!) (http://bit.ly/dhi0xc). O mesmo Prof. Albuquerque sugeriu, na primeira parte do programa, que a atitude brasileira fechava as portas para uma solução diplomática e abria espaço para uma ação militar por colocar os EUA numa posição de eventualmente não conseguir conter um ataque israelense contra o Irã (!!!!).

Finalmente, a partir dessa análise em múltiplos níveis, uma conclusão possível: boa parte da sociedade, da imprensa, dos atores políticos e dos estudiosos deverá empreender um esforço titânico para desenvolver uma perspectiva brasileira dos assuntos mundiais, sob o risco de serem atropelados por um Brasil dinâmico e que se articula rapidamente num mundo em transformação.

A julgar pelo que está sendo produzido atualmente sob o rótulo de “análise de política externa”, provavelmente algumas dessas pessoas já ficaram irremediavelmente obsoletas em sua visão do país e do sistema internacional.

* Flávio Rocha de Oliveira é cientista político, coordenador do Curso de Pós-Graduação em Política e Relações Internacionais da Escola de Sociologia e Política de São Paulo