Sem categoria

João Miguel: faço cinema, uma indústria a se construir

Louco, cozinheiro, pai, caminhoneiro, ladrão, homossexual, palhaço… João Miguel é tudo isso. É, também, Serrano Leoneli, sobrenomes que escolheu não usar. “Tenho dois nomes já. Acho que é o suficiente pra você existir”, afirma o filho de dona Magali e seu Domingos.

O encontro foi marcado para as 15 horas no café do Reserva Cultural, na Avenida Paulista, em São Paulo, lugar preferido do ator para dar entrevista (ele gosta de frequentar os mesmos lugares, sempre).

João chegou com 15 minutos de antecedência. Vestia camiseta, calça bege, mochila nas costas e, nos pés, tênis com jeito de bota. Nas mãos, óculos escuros e um iPod. Prestes a trocar Chico Science e Nação Zumbi, os amigos Lucas Santtana e Moreno Veloso por um set list de perguntas, João Miguel pede: “Posso comer durante a entrevista? Não vai atrapalhar?”. Do cardápio, escolheu risoto ao funghi e água sem gás.

Baiano de Salvador, João cresceu em meio à arte. Seu pai trabalhou com produção teatral na década de 1960, sua mãe é artista plástica. É tataraneto de um italiano anarquista com uma negra descendente de escravos. “Daí nasce uma família nervosa e comunista”, em suas palavras.

Aos 9 anos, precocemente, participou da primeira peça teatral, no Teatro Castro Alves, em Salvador. “Eu convivi com amigos de meu pai que eram atores. Não quer dizer que minha trajetória foi orgânica; teve aí um precipício, uma vida, procura, perguntas, encontros e desencontros”, conta o palhaço.

O palhaço

De Salvador, aos 18 anos, João arrumou as malas e partiu para o Rio de Janeiro, em busca de “expandir o olhar que já estava de alguma maneira confirmado – com todas as interrogações do mundo”. Fez CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) e lá conheceu o ator Luiz Carlos Vasconcellos. É dessa época o palhaço que permeia toda a sua carreira. “O humor e o trágico estão juntos no trabalho do palhaço, que é um retrato do Brasil, de alguma forma.”

Com o Grupo Piolim, de Vasconcellos, viajou à Paraíba, onde ficou por um ano e meio desenvolvendo um trabalho social com meninos da favela e fazendo pesquisas técnicas em torno do ofício. De volta a Salvador, em 1995, Magal – o palhaço – seguiu atuante no grupo baiano Picolino.

Fazia graça nas ruas, escolas e hospitais. Foi se desenvolvendo a partir das trocas, da mistura. João também dava aulas de artes em escolas. Participou, como ator, da montagem infantil Ver Estrelas, de João Falcão, entre outras. E escrevia.

Colaborava com uma produtora, fazia dois programas para a televisão local, um voltado para a comunidade negra e o outro ligado a propaganda e marketing. Quando caiu em suas mãos a biografia de Arthur Bispo do Rosário, leu-a de um dia para o outro. A partir dali, “tudo mudou”, diz o louco.

O louco

Para viver Bispo do Rosário no teatro, em parceria com o cineasta Edgard Navarro, João levou quatro anos e meio entre preparação e pesquisa. “De repente, encontrei um cara que viveu 50 anos num manicômio, que dizia ser enviado de Deus, que desfiava as colchas do hospício e transformava em arte”, conta ele sobre o artista sergipano, morto em 1989.

Escolheu o Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, em Salvador, para conviver com os internos. Fazia leituras e ensaios não convencionais dentro do hospital. Chegou a ter medo da loucura. “A loucura catalogada é institucionalizada. O cidadão que não pertence à sociedade, que sai do fluxo de ordem social, é catalogado como louco. Mas trabalhei a lucidez o tempo todo no espetáculo”, afirma.

Com o monólogo, o ator rodou o Brasil por cinco anos. A repercussão foi tão grande que chegou a Marcelo Gomes, diretor de Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), primeiro protagonismo de João Miguel nos cinemas. Com o longa-metragem, ganhou prêmios de melhor ator no Festival Internacional do Rio de Janeiro e na Mostra Internacional de São Paulo de 2005.
 
“Eu faço um sertanejo aparentemente quase nada caricato, o contrário de Estômago, em que o personagem é caricato como um todo. Como fazer isso é o que me interessa. Não tem nenhum filme que eu ache que vai ser uma fórmula de sucesso”, conta o cozinheiro.

O cozinheiro

Depois da fama com Ranulpho, o personagem de Cinema, Aspirinas e Urubus, nos últimos cinco anos João Miguel fez história no cinema nacional. Cidade Baixa (2005), de Sérgio Machado; Eu Me Lembro (2006), de Edgard Navarro; O Céu de Suely (2006), de Karim Aïnouz; Mutum (2007), de Sandra Kogut; Deserto Feliz (2007), de Paulo Caldas; e Estômago (2007), de Marcos Jorge, contam-se entre os melhores.
 
Muitos de seus longas-metragens são estreias do diretor. Para um ator inseguro, como ele repete algumas vezes, isso pode ser bom. “Eu divido muito a dúvida. Vou fazendo a partir da pergunta. Eu não chego com certeza, com o personagem pronto”, explica.

Com Raimundo Nonato, cozinheiro com dotes especiais e tendência assassina de Estômago, o ator ganhou prêmios de melhor ator no Festival Internacional do Rio de Janeiro e no Festival de Punta del Este.
 
“Basicamente, o que me interessa no meu ofício são os encontros e o que eles possibilitam de desdobramentos. Tem uma coisa linda que o Grotowski [diretor de teatro polonês e figura central no teatro do século 20 falecido em 1999] fala: é como se o ator fosse dois pássaros, um que bica e outro que observa”, reflete ele, que faz análise há anos.

Além do cinema, arte que o consagrou nacionalmente, João Miguel voltou aos palcos no ano passado com o monólogo Só e levou o prêmio de melhor ator na 22ª edição do Prêmio Shell de Teatro de São Paulo. Na televisão, fez minisséries, como Carandiru, Outras Histórias (2005) – em que viveu uma história de amor com um travesti – e Ó Paí, Ó (2008).

Neste ano, já fez dois filmes: uma ficção com Cao Guimarães, baseada no livro Catatau, de Paulo Leminski, e um longa dirigido por Breno Silveira. “Foram experiências boas e diferentes. O filme do Cao é ficcional, mas não ensaiamos nada. Chama-se Esxisto e deve estrear neste ano. O do Breno Silveira chama-se À Beira do Caminho, sobre um caminhoneiro que foge do mundo e, no percurso, encontra um menino de 11 anos, o que detona uma série de memórias do cara. É de amor. Tem um vento de Roberto Carlos que sopra no filme”, conta João, que é solteiro e não tem filhos.

Aos 40 anos, o ator não para. Em junho, viajou de São Paulo – cidade em que vive atualmente – ao Xingu para gravar um longa de Cao Hamburger sobre Cláudio Villas-Boas e seus irmãos. E está prestes a estrear A Hora e a Vez de Augusto Matraga, do diretor Vinícius Coimbra, longa-metragem rodado no ano passado. “Estou trabalhando à beça. Mas não posso pensar em descanso agora. Eu faço cinema, que é uma indústria a se construir.”

Fonte: Cult