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As leis que sacodem a relação entre Estado e cultura popular

A secretária de Articulação Institucional do Ministério da Cultura (MinC), Silvana Meireles, tem uma pedreira pela frente. Depois de coordenar a 2ª Conferência Nacional de Cultura, realizada em março em Brasília, está incumbida de fazer andar no Congresso as leis que sacodem as relações entre o Estado e a cultura popular – e que podem repercutir muito na vida de milhões de brasileiros.

As transformações começaram em 2003, quando Gilberto Gil assumiu o ministério. Desde então, os recursos públicos destinados pelo governo federal à área saltaram de R$ 287 milhões para R$ 2,5 bilhões, avançando de 0,2% para 1% do Orçamento da União. Mais importante, porém, foi a mudança na distribuição do bolo.

Ministério recente, o MinC, criado em 1985, quase sempre reproduziu a visão bacharelesca e elitista de cultura que marcou o Brasil desde sua fundação. Seu papel era “iluminar o povo”, “levando” a ele as obras que supostamente expressavam o saber artístico da humanidade – depois, é claro, que essas produções circulassem comercialmente nos meios “eruditos”. Os recursos do ministério praticamente só patrocinavam filmes e peças teatrais de grandes diretores, orquestras sinfônicas, grandes mostras, museus.

Gil abriu os olhos (e o bolso) do MinC para a riqueza e a diversidade cultural brasileira. E o novo conceito adotado pelo ministério é muito bem expresso pelo programa Cultura Viva e seus Pontos de Cultura. O MinC reconhece como cultura todas as criações originais do ser humano. Enxerga numa moqueca capixaba, na obra de uma bordadeira, numa rádio comunitária ou num software inovador tanta sabedoria, habilidade, talento e poder de criação quanto pode haver numa sinfonia.

E movido por essa ideia iniciou uma pequena revolução no uso dos recursos públicos. Por meio de concursos, mais de 2 mil iniciativas comunitárias espalhadas pelo país, foram transformadas em Pontos de Cultura. Recebem durante três anos um apoio financeiro que, embora pequeno em termos de orçamento público (R$ 60 mil anuais), é capaz de mover montanhas no trabalho de quem o recebe.

São, na maioria dos casos, coletivos culturais das periferias das metrópoles ou de regiões remotas. Vistos antes como meros espectadores das “belas-artes”, agora revelam a força e a diversidade da cultura brasileira.

Utilizam os recursos públicos para se converter em grupos musicais, dedicados tanto a manifestações tradicionais, como o maracatu ou coco-de-umbigada, como ao rock ou ao rap. Articulam grupos de teatro e de dança. Animam rádios livres, sites e blogs. Produzem vídeos e jornais. Montam cooperativas especializadas em criar programas de computador. Atuam em quilombos e comunidades indígenas.

A transformação tem desdobramentos econômicos. Para os grupos ou comunidades participantes, significa novas ocupações (às vezes criativas e bem-remuneradas) e a possibilidade de desenvolver o empreendedorismo coletivo.

Para o Brasil, abre a janela para uma nova vocação e um novo papel internacional. O país que sempre foi dependente no momento em que a indústria era o setor mais dinâmico da economia, pode ser um produtor destacado de bens simbólicos – cultura, conhecimento, comunicação, ideias, técnicas e afetos – na era pós-industrial.

Nesta entrevista, Silvana fala em detalhes sobre a Conferência Nacional e aborda um tema que agitará o ambiente da cultura nos próximos meses: a elaboração de uma nova lei de direitos autorais, após amplas consultas à sociedade – para desconforto de alguns cartéis da indústria cultural.

Brasil de Fato: Qual o sentido de realizar uma Conferência Nacional de Cultura a menos de um ano do fim de um governo?
Silvana Meireles:
As conferências visam sacudir uma visão arcaica de política, segundo a qual a sociedade limita-se a eleger os governantes e deve esperar deles as decisões. O governo Lula não as inventou, mas realizou mais de 70 delas. São uma janela para a expressão direta da sociedade civil em meio ao nosso sistema institucional ainda fechado e baseado apenas na representação.

Em nosso caso específico, a Conferência Nacional de Cultura comprova que a sociedade está disposta a debater temas complexos, sempre que há espaços reais de participação. Mais de 206 mil pessoas compareceram nas etapas municipais, estaduais – em todos os estados e em 3.117 municípios – e nacional.

Se ainda faltava algum sinal de que cultura não é assunto apenas das elites, esse foi dado agora. Os trabalhos também mostraram que a sociedade está pronta para formular alternativas. Foram aprovadas centenas de recomendações, entre elas, a aprovação de um conjunto de leis e emendas à Constituição capazes de consolidar as conquistas dos últimos anos.

Brasil de Fato: O que estabelecem essas propostas?
Silvana: Vamos começar pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 416/05. Estabelece o Sistema Nacional de Cultura, que representa para nossa atividade algo tão importante quanto o SUS para a saúde. Na tradição do Estado brasileiro, cultura foi sempre tema secundário. Da União aos municípios há estruturas permanentes para a educação, a saúde, a segurança e outras áreas. Mas nem todo município tem uma Secretaria de Cultura. Quando existem, as estruturas e políticas são vistas como concessões do prefeito. Se seu sucessor tiver outra proposta, a secretaria morre.

Mas essa PEC não se limita a instituir secretarias de Cultura nos estados e municípios. A proposta determina a criação de fundos de apoio à cultura. Sintonizada com os novos tempos, institui a participação. Em cada esfera de governo haverá Conselhos de Política Cultural. Neles, 50% dos participantes deverão ser eleitos democraticamente e representar a sociedade civil. A PEC deixa para trás as visões bacharelescas de cultura e arte ao estabelecer 11 princípios para o Sistema Nacional de Cultura. Entre eles, o reconhecimento da diversidade das expressões culturais e a garantia da universalização do acesso aos bens e serviços da cultura.

Brasil de Fato: Qual a diferença entre o Sistema e o Plano Nacional de Cultura?
Silvana:
O Sistema representa uma mudança institucional profunda e de longo prazo. O Plano Nacional de Cultura, expresso no Projeto de Lei (PL) 6.835/06, é um planejamento também ambicioso, mas com horizonte de dez anos. Determina, por exemplo, que os próximos governantes continuem adotando políticas para garantir acesso de todos à cultura, e que se respeite e se promova a diversidade artística e cultural.

Brasil de Fato: A mudança na Lei Rouanet é uma prioridade?
Silvana: Sem dúvidas. Essa lei está há 18 anos sem mudanças, e nesse período a cultura passou por enormes transformações. As mudanças estão expressas no Projeto de Lei (PL) 6.722/2010, que cria o Pró-Cultura, democratiza a política de financiamento, estabelece processos públicos para definir quais iniciativas receberão apoio financeiro e desconcentra a destinação dos recursos, evitando que a maior parte das verbas disponíveis irrigue um pequeno número de produtores.

Ao longo dos anos, acumularam-se inúmeras distorções. Em tese, a Lei Rouanet estimula as empresas a investir em cultura. Na prática, poucas tiram do próprio bolso o que destinam ao setor. A maior parte dos recursos, quando não a totalidade, vem do Estado, por meio de renúncia fiscal. A empresa faz mecenato com dinheiro da sociedade.

Criou-se uma indústria de projetos. Metade dos recursos – cerca de R$ 1 bilhão, em 2010 – é captada por apenas 3% dos produtores culturais, e 80% das verbas são canalizadas para Sul e Sudeste. Ao Nordeste, de enorme riqueza cultural, restam 6%. Os projetos têm méritos reais, mas que sejam, então, executados também com recursos da própria iniciativa privada.

Brasil de Fato: Quais as alternativas?
Silvana: O projeto republicaniza a destinação do apoio cultural. Em vez de depender de empresas, artistas e produtores poderão buscar recursos num Fundo Nacional de Cultura, que além de patrocínio oferecerá bolsas e prêmios. A destinação dos recursos não será decidida apenas pelo Estado, mas por um conselho, no qual estarão representados 20 setores da sociedade com interesse nos financiamentos.

E as obras que forem financiadas por recursos do Fundo Nacional de Cultura poderão ser oferecidas gratuitamente à população três anos depois de lançadas – ou em 18 meses, se o objetivo for educacional. Isso vale, por exemplo, para a reedição de um livro ou a exibição de um filme pela TV pública.

Brasil de Fato: No processo de debate da nova Lei Rouanet, surgiu a ideia do Vale-Cultura. A que se destina?
Silvana:
O Vale-Cultura surgiu na mesma trilha, mas já se transformou num projeto próprio: é o PL 5.798/09. Apesar de todos os nossos avanços, não foi possível reverter, em oito anos, a elitização do acesso à cultura no país. É algo que tem a ver com a péssima distribuição de riqueza e renda. Assistir a um filme pesa muito no orçamento de uma família. Por isso, apenas 5% dos brasileiros já foram a um museu, 13% vão regularmente ao cinema, e 17% compram livros.

A nova lei oferece 
R$ 50 mensais a quem ganha até cinco salários mínimos. É um vale utilizável apenas para aquisição de bens culturais – um livro, o ingresso para um filme, peça ou show. Vem em cartão magnético, não pode ser convertido em dinheiro. Além de beneficiar dezenas de milhões de brasileiros, criará um circuito novo de cultura, onde estarão as maiorias, excluídas do mercado tradicional.

Como costuma lembrar o ministro Juca Ferreira, este circuito viabilizará, por exemplo, a criação de cinemas nos bairros populares, a multiplicação de companhias de teatro e de pequenos editores de livros.

Brasil de Fato: Há uma emenda específica para vinculação de verbas à cultura. Por quê?
Silvana:
A Cultura recebe hoje 1% do Orçamento da União, cinco vezes mais do que no último governo. É preciso garantir esse patamar e ampliá-lo. A economia contemporânea tende cada vez mais para a produção simbólica. A efervescência e a diversidade cultural do Brasil podem ser uma grande vantagem internacional.
 
Mas, para isso, é preciso estimular os produtores. Viver da produção de cultura deve ser uma alternativa, algo que um adolescente possa levar em conta tanto quanto ser metalúrgico ou servidor público, por exemplo. A PEC 150/2003 cria para a cultura uma vinculação de verbas semelhante à que existe em favor da educação ou da saúde.

A União deverá destinar 2% de seu orçamento para a atividade; estados, 1,5%; e municípios, 1%. O pensamento tradicional rejeita a vinculação orçamentária porque ela restringe a margem de manobra dos gestores políticos e o desejo de liquidez da área econômica dos governos. Mas a Conferência Nacional de Cultura aprovou a PEC 150 em três instâncias – talvez por julgar que a vocação cultural da sociedade brasileira deva falar mais alto.

Brasil de Fato: Por que o MinC está realizando consultas públicas visando a reforma da lei do direito autoral?
Silvana: A atual lei brasileira do direito autoral está defasada. O texto em vigor foi aprovado em 1998 e é uma atualização da legislação criada em 1973. Já não garante plenamente o direito do autor e não atende às necessidades da sociedade brasileira contemporânea.

Coloca na ilegalidade uma série de práticas atuais, costumes banais como transportar músicas de um CD original adquirido para um tocador de MP3; copiar um CD para o pen-drive; fazer xerox de um livro esgotado, para fins de estudo; ou exibir partes de um filme, com objetivos pedagógicos. Isso não pode perdurar, simplesmente porque a lei não acompanhou o surgimento e a evolução do ambiente digital e as novas possibilidades de trocas simbólicas e econômicas decorrentes.

Queremos garantir os direitos aos criadores, permitindo a eles maior controle sobre sua criação. Ao mesmo tempo, julgamos que é indispensável assegurar aos cidadãos o acesso a bens culturais com segurança jurídica para usuários e investidores. A ampliação da segurança jurídica para investidores estimulará o desenvolvimento de novos modelos de negócios no ambiente digital, promovendo o fortalecimento da economia da cultura.

Brasil de Fato: De que forma a mudança dessa lei poderá contribuir para um maior acesso da sociedade às obras artísticas?
Silvana:
A proposta apresentada pelo Ministério da Cultura para consulta pública reconhece o direito da cópia individual e com isso garante o acesso da sociedade ao conhecimento, com segurança jurídica. A regulação estatal proposta no anteprojeto acaba com certos excessos dos detentores de direitos sobre determinadas obras.

Por isso, ampliará as possibilidades de seu uso para fins didáticos. Por fim, o novo texto prevê a criminalização do “jabá” (pagamento para execução de determinadas músicas nas rádios e emissoras de TV). Todos sabem que esse vício submete a programação das rádios a um sistema de remunerações pouco ético e impede o usuário de ter acesso à diversidade cultural.

A quantas anda

Saiba em que pé estão projetos que podem ampliar a produção cultural no Brasil

Sistema Nacional de Cultura
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 416/05. Precisa do voto favorável de pelo menos 308 deputados e 49 senadores. Já passou por comissões especiais da Câmara e aguarda votação em plenário. Se aprovado, vai para o Senado.

Plano Nacional de Cultura
Projeto de Lei (PL) 6.835/06. Já provado pela Câmara dos Deputados, foi enviado ao Senado em junho.

Pró-Cultura
Altera e renova a Lei Rouanet (de incentivos fiscais a empresas que patrocinam produções culturais). Está em debate na Câmara (PL 6.722/2010), comissões de Educação e Cultura e de Desenvolvimento Econômico.

Vale-Cultura
Prevê a adoção de “tíquetes” (PL 5.798/09) a ser concedidos pela empresas a seus funcionários para uso em atividades ou bens culturais. Aguarda votação no plenário da Câmara.

Vinculação de verbas para a Cultura
PEC 150/2003. Sofre oposição dos setores que julgam ser prerrogativa de cada governante definir as prioridades orçamentárias. Apresentada há sete anos, passou apenas pela Comissão de Constituição e Justiça.

Nova Lei do Direito Autoral
Ainda não está no Legislativo. O governo está promovendo, antes, uma série de debates com a sociedade civil.

Fonte: Rede Brasil Atual