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Secretário do Tesouro dos EUA faz lembrar Keynes

Podemos dar-nos conta da fragilidade invisível da recuperação quando os governos começam a fazer propostas inviáveis. Os EUA apresentaram há uns dias a proposta mais surpreendente desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Através de Tim Geithner, secretário do Tesouro, Washington sugeriu um esquema no qual cada país limitaria o volume dos seus excedentes na conta corrente. Até adiantou um limite de 4% do PIB.

Por Alejandro Nadal, no Informação Alternativa

O propósito é evitar uma guerra cambial na qual as desvalorizações façam a vez de instrumentos protecionistas e ponham em risco a “recuperação”.

O discurso de Geithner faz lembrar a proposta de Keynes em Bretton Woods, em 1944, embora esteja mais dirigido a salvar o que resta do sistema monetário baseado na hegemonia do dólar. Um pouco de história é importante para aquilatar os alcances da postura de Washington.

Formalmente, a conferência de Bretton Woods teve dois objetivos centrais: estabelecer as bases do sistema monetário mundial e proceder à reconstrução. A verdade é que os Estados Unidos estavam interessados em consolidar o seu papel hegemônico à escala mundial. Perante a visão estadunidense erigia-se o visionário plano de Keynes para criar um verdadeiro sistema monetário internacional.

Esse projeto continha duas premissas básicas. Em primeiro lugar, cada país devia enfrentar a deficiência de procura acrescentada crônica das economias capitalistas sem recorrer a práticas mercantilistas, exportando o seu desemprego para os sócios comerciais e acumulando excedentes na sua conta corrente. Em segundo lugar, era necessário contar com uma união monetária internacional e uma divisa, o bancor, que integrasse todo o sistema capitalista mundial. O sistema permitiria uma maior estabilidade de preços, melhor coordenação no comércio internacional e recorrer a uma política macro-econômica anti-cíclica quando fosse necessário.

O principal problema que tinha marcado o sistema de padrão ouro era o dos desequilíbrios sistêmicos que se geravam nos fluxos comerciais. Países e regiões inteiras sofriam deficits crônicos, enquanto outros países acusavam superavits permanentes nas suas balanças comerciais. O sistema que Keynes oferecia estava delineado para solucionar os problemas e crises gerados por estes desequilíbrios globais.

Keynes estava preocupado pela possibilidade de que um país caísse num processo deflacionário pela acumulação de dívidas para financiar um déficit comercial crônico. Numa economia na qual o setor externo tem uma contribuição negativa para o crescimento e o emprego, o endividamento pode tornar-se insustentável pelos aumentos nas taxas de juro ou por uma queda nos preços das suas exportações. Para Keynes, recorrer a cortes na despesa pública conduz a uma crise maior e a tentação de melhorar a competitividade das exportações através de mudanças na paridade provoca uma concorrência de desvalorizações e o afundamento de toda uma região na recessão.

Para remediar isto, Keynes propôs a concessão de créditos a taxa zero pela união monetária aos países deficitários até 50% do deficit. Para o outro 50%, os empréstimos estariam afetados de uma taxa de juro. E para os países com excedentes crônicos (a outra face dos deficits), o plano de Keynes contemplava sanções. Os países com superavit crônico em excesso de um certo limite teriam que pagar juros ao banco da união monetária: isso forçá-los-ia a apreciar a sua divisa e a corrigir a sua balança comercial.

Mas os Estados Unidos não estavam dispostos a desperdiçar a oportunidade para consolidar a sua hegemonia. Harry Dexter White tinha um plano diferente: um sistema de tipos de cambio fixo com o dólar no topo. As flutuações só estariam permitidas numa pequena banda de 1% e os governos tratariam de permanecer no interior dessa cota utilizando as suas próprias reservas. Os tipos de cambio poderiam ser renegociados ao demonstrar-se que a balança comercial e de capital não se podia manter com as reservas existentes. O Fundo Monetário Internacional seria o organismo encarregado de manter esta ordem de coisas.

Nada do que saiu da conferência de Bretton Woods serviria para resolver o problema da acumulação de desequilíbrios comerciais. Hoje constituem um dos traços mais patológicos da economia mundial. Por detrás destes desequilíbrios está o esforço de países como a China ou (em menor medida) a Alemanha para exportar o seu próprio problema de desemprego.

Impulsionar a procura interna ajudaria a resolver o problema dos desequilíbrios comerciais. Mas isso implica tocar na distribuição do rendimento. Com que poder de compra vão as mercadorias circular no interior da China ou da Alemanha? Não é segredo para ninguém que os custos trabalhistas nestes países são o principal instrumento na concorrência internacional. Incrementar a procura doméstica implica modificar o arranjo existente de distribuição entre lucros e salários. Isso é algo que esteve ausente nas deliberações sobre a proposta de Geithner.