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Cabeto Rocker: Pontos de Cultura, de Campinas para o mundo

Estou na Argentina desde o dia 24 de novembro com minha família em visita aos familiares de minha companheira, Maria Castellano, argentina. Nossa filha, Alanís, que completará 4 anos dia 4 de dezembro, é o centro das atenções. E por quê? Como em qualquer lugar do mundo ela, como criança, transmite a esperança no futuro e na continuidade da saga humana sobre esse planeta.

Por Cabeto Rocker*

celio turino

Sua inocência e jovialidade dão uma injeção de ânimo para os mais velhos, automaticamente trazendo à tona histórias da infância de todos e avivando a tradição oral dos familiares. Maria e eu pensarmos em gravar esses relatos para que, quando nossa filha for mais adulta, ela possa ter contato com sua história familiar com mais precisão. O futuro não é nada sem a memória e o registro do passado.

Eu estive aqui em Buenos Aires em 1997 com minha já extinta banda, Bando, fazendo uma micro turnê, convidados pelo também extinto Esquizoonautas Danza Rota, grupo de vanguarda de dança portenho. Foram maravilhosos dias de encantamento com essa cidade que respira arte e tem ares europeus sem perder sua identidade latino-americana.

Estou revivendo lembranças de fortes laços de amizade com Fabio e Laura, fundadores do Esquizoonautas, suas duas turnês em Campinas, o nascimento de sua filha, Sol Merlina, a iniciativa deles de trazer o Bando para cá demonstrando na prática a força do que costumamos chamar de “intercâmbio cultural”. Tudo feito com simplicidade, porém, com muito profissionalismo e senso de troca de saberes.

O que me leva a contar tudo isso para vocês?

A resposta é minha alegria e orgulho (orgulho bom, baseado na admiração e no reconhecimento de ações positivas) de me encontrar aqui justamente na época do ápice do Movimiento Pueblo Hace Cultura (www.pueblohacecultura.org.ar), iniciado a partir do contato dos artistas, produtores culturais e gestores públicos argentinos com o Programa Cultura Viva/Ponto de Cultura, iniciativas gestadas e postas em prática pelo campineiro Célio Turino.
 
Quem aí nunca ouviu falar nas Casas de Cultura precisa se aprofundar mais no que é feito em nossa cidade e que é produto de exportação para mais de 11 países atualmente. Essa experiência, nascida em terras de Carlos Gomes, depois levadas para o Governo de Marta Suplicy, em São Paulo, e depois embarcada para Brasília já no Governo Lula, com Gilberto Gil como Ministro da Cultura, tem, justamente na sua simplicidade, transparência e energia pura, seu sucesso em dignificar o fazer cultural brasileiro com o aporte dos impostos pagos pela população e administrados pelos nossos servidores públicos.

O Movimiento Pueblo Hace Cultura (Povo faz Cultura) já nasce com ares de gente grande: mais de 300 grupos organizados de toda a Argentina, com redação de documento que constitui um relato da situação atual da classe artística e o que essa classe espera e demanda que seja feito com seu destino como organismos vivos da sociedade e agentes transformadores de suas realidades. Esse movimento se organiza extraindo os pontos positivos da experiência brasileira adaptadas à realidade argentina.

O que eu tive a oportunidade de vivenciar aqui, dia 30 de novembro, na Plaza del Congresso, no centro pulsante e nervoso da capital, foi uma manifestação enérgica de atores de todos os seguimentos artísticos argentinos, se utilizando de uma fórmula criada por um campineiro, gestada com autonomia e protagonismo pelos argentinos antenados com o que o Brasil tem produzido de melhor (sim, a admiração deles ultrapassa a praia, o carnaval e o futebol brasileiro), nesses últimos oito anos, e o reconhecimento (que eu ouvi diretamente da boca dos organizadores e participantes do evento) de que os Pontos de Cultura são a prova viva de que os trabalhadores da cultura estão desenhando um novo mapa cultural no mundo.

As murgas (espécie de blocos carnavalescos), que estavam quase extintas, estão sendo resgatadas aqui com a força da participação de crianças tocando instrumentos percussivos, dançando e cantando suas raízes. A proximidade com o frevo, a capoeira e o maracatu brasileiros instantaneamente me fez perceber nossos laços com a cultura africana e sua força na construção dos ritmos latinos.

O colorido dos trajes, a alegria das coreografias e a força das letras me trouxe a sensação de que precisamos rever urgentemente nossas fronteiras impostas por “nacionalidades” forjadas em guerras e disputas por um poder que só cabe a poucos grupos econômicos e poucas pessoas “abastadas”.

Pueblo Hace Cultura, Programa Cultura Viva, Ponto de Cultura, Redes Sociais e tantas outras iniciativas “invisíveis” aos olhos do “velho mundo concentrador de poder” são o contraponto original, simples, audacioso, saudável, acolhedor e generoso, que fazem valer a pena dizer: eu sou um ser humano e não uma máquina de consumo fria e descartável.

A “grande mídia” da era do WikiLeaks precisa rever sua vocação de registro e fornecedora de conteúdos informativos e formativos. Existem “outros mundos” acontecendo com a força da simplicidade e gratuidade da vida. Nesses outros mundos pode estar contida a força que vai ditar as novas regras para a convivência pacífica, justa, cultural e sustentável que tanto precisamos afirmar e fazer valer para a nossa sobrevivência futura.

Além de “produtos culturais” temos que olhar com mais carinho e amor para a força da vida “simples e gratuita” que estamos cada vez mais nos distanciando. Precisamos divulgar essas ações pois nelas poderemos encontrar as possíveis chaves para a troca de modelos sociais tão apregoadas pelos nossos governantes.

Foi com muita alegria e orgulho (de percepção) que participei aqui do Movimiento Pueblo Hace Cultura. Foi com alegria e orgulho campineiro que assisti à chegada de Célio Turino na Plaza Del Congresso. A alegria que vi estampada no olhar dos argentinos, organizadores, artistas e público participante em receber esse campineiro “do mundo” me encheram o peito com “Buenos Aires”.

Respirei bons ares do reconhecimento dado a essa pessoa que gesta ações culturais revolucionárias e generosas. Um turbilhão de pensamentos me passaram pela cabeça: será que o novo governo brasileiro (incluso aí Campinas) tem a real noção da capacidade de trabalho desse filho dedicado às políticas públicas que estão ganhando o mundo?

A chuva que estava prometida para vários dias atrás começou a cair muito forte justamente no final da leitura do documento do Movimiento Argentino. Acho que ninguém percebeu minhas lagrimas de reconhecimento ao reconhecimento dado ao árduo trabalho desse campineiro-brasileiro por essa nova cultura que nasce como ação viva, livre e sem fronteiras.

Voltei encharcado para Martinés, onde estou hospedado com a família Stafforini com uma sensação de esperança no futuro. A mesma sensação que tenho quando olho para minha filha brincando seriamente de viver.

*Cabeto Rocker é músico e produtor cultural