Artigo: O Apartheid visível e introjetado

Apartheid significa "vidas separadas" (em africano), nome do regime de discriminação racial mais perverso que se tem relato na história da humanidade. O sistema segregacionista, que negava aos negros da África do Sul os direitos sociais, econômicos e políticos, teve inicio em 1948 e perdurou até o ano de 1990.

Por Juci Santana*

As principais leis do apartheid foram: proibição de casamentos entre brancos e negros; proibição de circulação de negros em determinadas áreas das cidades; determinação e criação dos bantustões (bairros) só para negros e a criação de um sistema diferenciado de educação para as crianças dos bantustões. Os negros sempre foram a maioria da população Sul-Africana (70%), os europeus (12%), eurafricanos (13%), indianos (3%), outros 2%.

Em dezembro de 2010, participei do 17th World Festival of Youth & Students (Festival Mundial da Juventude e Estudantes), sob o lema "Por um Mundo de Paz, Solidariedade e Transformação Social”. A cidade sede foi Pretória, antigo símbolo do domínio afrikaner (descendentes dos colonizadores holandeses que foram para a África e mentores do apartheid). O festival me possibilitou estar no continente-mãe, pisar na terra dos meus antepassados, estar no continente africano e berço da diáspora negra no mundo.

O regime do apartheid, bem como a escravidão, são assuntos tabu na sociedade brasileira, temas pouco explorados pelos monopólios privados de comunicação. Porém, dificilmente encontraremos alguém que não saiba o que foi o holocausto e a dimensão da façanha de Hitler contra o povo judeu.Creio não ser por acaso, que a grande maioria da população brasileira não saiba da sua real história.

Durante o festival, organizamos uma excursão para Johanesburgo. No total éramos 13 jovens do país do futebol e logo na saída, duas garotas questionaram o roteiro, que elas já tinham feito em outra excursão. A solução encontrada foi sugerir que elas ficassem no centro da cidade, visitando outros lugares, então foi mantido o roteiro original, no final do passeio elas seriam recolhidas no mesmo local.

As jovens, uma mestiça e outra teoricamente branca, segundo os padrões brasileiros. Vale a pena ressaltar, que ambas falavam fluentemente o inglês.

Minhas conterrâneas começaram a questionar sobre a segurança delas enquanto “brancas” no centro daquela cidade. Detalhe, eram exatamente 12 horas, o sol brilhava. Fiquei me perguntando se elas conheciam o centro de Salvador, cidade de maior população negra fora da África. Assim era o centro de Johanesburgo, uma grande Salvador, com negros para lá e para cá nas calçadas, camelôs ocupando tudo, pedintes no chão, vendedores de milho e amendoim, mulheres na rua trançando o cabelo, carrinhos de sorvete para amenizar o forte calor.

Qual era mesmo a real representação daquele temor? Estávamos num Safári? Ao sair do carro elas seriam atacadas por aquele povo que caminhava tranquilamente cuidando cada qual da sua rotina?

Johanesburgo não perde em nada para capitais como Londres, Paris, Madri, Lisboa, Buenos Aires, São Paulo, etc. Tão urbanizada quanto todas as cidades supra citadas. Fiquei impressionada com a quantidade de carros importados, o tapete que eram as estradas e a estrutura das universidades.

Aquela atitude racista, fruto de valores arraigados como “meu filho não pode namorar uma negra”, “o negro não tem capacidade intelectual”, “todo preto é pobre, ladrão e favelado”. O que representava então aquele mar negro que caminhava pelas ruas? Qual era a real ameaça?

Aquela reação era reflexo de um racismo introjetado. A imagem do negro no Brasil e no mundo sempre fora associada à violência, no entanto a negritude é símbolo de resistência. Quem sofreu com um regime de separação? Quais foram as vitimas do massacre de Soweto, onde foram mortos 600? Quem foram os responsáveis por essa e tantas outras atrocidades que aconteceram naquele país durante o regime do apartheid? Porém, aquelas turistas sentiram medo do mar negro nas ruas de Johanesburgo, capital do país que elegeu Mandela, que acabou de sediar uma Copa do Mundo de Futebol e caminha a passos largos para a democracia racial e o desenvolvimento.

O 13 de maio está chegando e continuamos em um país, onde apesar da Lei 10.639/03 estabelecer as diretrizes e bases para inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", a medida ainda não foi implementada. Como educaremos nossas crianças para que possam tomar ciência dos fatos históricos que influenciam o Brasil de hoje? É preciso dizer que a Lei Áurea foi o pontapé inicial no processo de marginalização das negras e dos negros desse país; que o processo de ocupação das encostas, origem das atuais favelas nas grandes cidades, é conseqüência de uma abolição, onde o Estado não foi responsabilizado; é preciso colocar em negrito que nessa mesma época, os negros escravizados das fazendas foram substituídos por imigrantes assalariados, os recém-libertos saem da condição de escravos para uma grande massa de desempregados.

Muita gente defende que o racismo no Brasil é invisível, porém ele é gritante. Não existem linhas imaginárias, elas são bem definidas. As desventuras da viagem já tinham ficado para trás, quando fui a um grande shopping em Salvador e caminhando pelo shopping, foi inevitável recordar que estava na terra do apartheid escancarado. Pude ver os restaurantes que não precisam instaurar um regime de segregação para preto não ir, porque eles não vão. Sabemos quais são as lojas que eles não vão entrar, quais são os carros que eles não vão ter, os colégios que eles não vão estudar, os bairros que eles não vão morar, em muitos casos, nem precisa mandar a polícia para cumprir o papel de capitão do mato, como foi no caso do negro espancado no Banco Bradesco do bairro da Graça. Então, quem é mesmo que não vê o apartheid que existe aqui?

Sentada entre as paredes do Apartheid Museum, chorei de indignação.Chorei pelo que acontece todos os dias nas nossas grandes ou pequenas cidades.Chorei pelos milhares de jovens assassinados nas favelas e periferias, por fornecer as drogas que a classe media e a elite consomem. Chorei pela mediocridade dos racistas. Chorei pelo nosso apartheid, que não é institucionalizado, mas não deixa de ser. Chorei quando vi a foto de um garoto negro, datada dos anos 70, dormindo com a cara em cima de um livro onde ensinava como melhor servir um branco. O apartheid no Brasil ainda não acabou, já dura há mais de 300 anos.

Nossas crianças, todas elas, negras, brancas, amarelas, mestiças, índias, pardas, precisam conhecer a historia da construção dessa nação, para que possam desenvolver uma consciência critica para que em um futuro bem próximo, possamos juntos superar todo e qualquer preconceito, bem como, todas as desigualdades sociais.

*Juci Santana foi diretora da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (ENECOS) e da União dos Estudantes da Bahia (UEBa). Atualmente é conselheira Estadual de Juventude pela UBM e faz parte da Direção Executiva da UJS na Bahia.