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José Carlos Ruy: Coligações partidárias fazem parte da democracia

A novidade no debate da reforma política é a intenção de alguns grandes partidos de proibir as coligações nas eleições proporcionais (para deputados federais e estaduais). Esta tese já foi condenada, na década de 1950, como antidemocrática e prejudicial aos pequenos partidos por um gigante do pensamento político democrático e naciona, Barbosa Lima Sobrinho.

Por José Carlos Ruy*

Por trás do palavrório bonito e das boas intenções manifestadas, a disputa sobre as regras eleitorais diz respeito ao funcionamento do poder político e à sua distribuição entre as diferentes classes sociais e seus representantes institucionais, os partidos.

Daí poder-se dizer que poucos “assuntos terão sido tão discutidos, no Brasil, quanto a matéria eleitoral. Pode-se dizer que desde que se tratou de escolher uma representação nacional, o sistema dessa indicação passou a figurar entre os temas de cogitação e análise permanente. Foi assim no Império; continua a ser assim na República. E sempre se fez notar, nesses debates, a insatisfação quanto ao sistema e às leis em vigor, assim como a necessidade de reformas imediatas”. Esta frase não é atual: ela foi escrita há exatos 55 anos e seu autor foi o escritor, jornalista e político brasileiro Barbosa Lima Sobrinho no começo de seus comentários à publicação dos textos de uma mesa redonda da qual ele foi relator.

O tema da mesa redonda foi “Sistemas eleitorais e partidos políticos”; ela foi realizada em 31 de agosto de 1956 no Instituto de Direito Público e Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, reunindo alguns pesos pesados da época, como o jurista conservador Carlos Medeiros e Silva (que, mais tarde, foi relator do primeiro ato institucional imposto pela ditadura militar de 1964 e ministro da Justiça do general Castello Branco), pelos juristas democráticos Miguel de Seabra Fagundes e Victor Nunes Leal, por políticos como Nereu Ramos (PSD), Bezerra de Medeiros (UDN), Nestor Duarte (UDN) e Samuel Duarte (PSD), o ex-senador Nestor Massena e os especialistas Orlando Monteiro de Carvalho e Jorge Vinhais.

A pauta daquele debate continua atual. Um dos temas dizia respeito ao uso de recursos públicos para financiar as eleições. Não se falava ainda em financiamento público de campanhas, mesmo porque existiam outros gastos que se podem considerar mais urgentes em relação à lisura e transparência do processo eleitoral. Um deles dizia respeito às cédulas eleitorais. Até elas eram impressas e distribuídas pelos candidatos ou seus partidos, e eram motivo de muitas fraudes. Este sistema mudou em agosto de 1955 quando foi instituída a cédula única de votação (Lei 2.582/1955) e Barbosa Lima Sobrinho, em suas anotações sobre a mesa redonda da qual foi relator um ano mais tarde, incluiu seus custos de impressão entre as “despesas que podem ficar com o governo”.

Outras despesas eram referentes aos custos de transporte e alimentação dos eleitores no dia da votação, atividade que estava na origem das principais manipulações e fraudes que eram cometidas nos períodos eleitorais, e que, Barbosa Lima Sobrinho considerava, com razão, deviam ficar a cargo do poder público.

Debateram também outro tema que frequenta as discussões atuais: a adoção das listas partidárias que, já então, eram encaradas como meio para fortalecer os partidos e conter a influência do poder econômico nas eleições. Mas aqueles especialistas eram pessimistas sobre este ponto, como Barbosa Lima Sobrinho registrou ao escrever que esta proposta encontraria uma “oposição invencível ou, pelo menos, difícil de remover” na Câmara dos Deputados e no Senado.

Um ponto fundamental eram os partidos políticos. A legislação inaugurada em 1932, mas colocada efetivamente em prática desde 1945, exigia a formação de partidos nacionais, criando obstáculos para a existência de agremiações meramente regionais que, nas palavras de Barbosa Lima Sobrinho, “se confundem com os homens que os chefiam” sendo “grupos sujeitos ao mando de caudilhos”.

Eram partidos de conveniência, de escassa ideologia e bases sociais estreitas, sendo articulados em torno de algum cacique notável – realidade que ainda hoje, meio século mais tarde, persiste, sendo exemplos disso o efêmero PRN (Partido da Reconstrução Nacional), criado para apoiar Collor de Mello em 1989, ou o recente PSD (Partido Social Democrático) do prefeito paulistano Gilberto Kassab.

Naqueles anos já era visível, nas eleições brasileiras, a tendência de crescimento das coligações partidárias em todas as eleições – majoritárias ou proporcionais.

Na mesa redonda, Nereu Ramos se manifestou contra elas. Barbosa Lima Sobrinho argumentou, ao contrário, sobre a “conveniência das alianças”, que aumenta principalmente quando o coeficiente eleitoral é alto e existam pequenos partidos sem a “possibilidade, ou certeza, de chegar àquele resultado mínimo”.

Era um argumento democrático que ele reforçou dizendo que, em relação “à Câmara Federal, sendo alto o quociente, é natural que os pequenos partidos procurem entender-se com outros”, podendo “assegurar à legenda o direito de figurar no quadro das maiores médias”. Ele declarou não “encontrar maior inconveniente nessas alianças, pois que pressupõem uma certa aproximação entre os partidos que as realizam”. Além disso, escreveu, a proibição seria inútil, pois só “mudaria as aparências, mas o resultado acabaria sendo o mesmo. Os candidatos dos pequenos partidos passariam a figurar na lista dos grandes, sem a formalização das alianças partidárias”. E finalizou sua argumentação perguntando: “Que se ganharia com isso?”

Barbosa Lima Sobrinho, que era deputado pelo Partido Socialista Brasileiro, foi um democrata e um nacionalista preocupado com o fortalecimento da democracia no Brasil. Neste sentido ele encarava as disputas eleitorais como aquilo que elas são na realidade: episódios da luta de classes, embora ele não usasse esta expressão. “No fundo das campanhas políticas brasileiras”, escreveu, “há uma espécie de ressentimento contra o voto popular”.

Naquela época circulavam propostas conservadoras para limitar o voto popular; havia mesmo a defesa de atribuição de valores mais altos ao voto dos detentores de diplomas universitários e mais baixos ao voto dos daqueles meramente alfabetizados. No passado, o valor do voto já havia sido determinado pela renda do eleitor, como ocorreu no Império, quando só podiam votar aqueles que tivessem rendas superiores a 100$000.

Foi contra ideias deste tipo que Barbosa Lima Sobrinho escreveu: “Determinadas classes entendem que estão certas e que representam o verdadeiro interesse público. Como não vêm vitoriosas as suas teses, acreditam que o mal está na qualidade do eleitor e pensam que se poderia remover esses males por meio de um eleitorado de censo alto, quando a evolução do direito eleitoral se processa, exatamente, no sentido da universalização do sufrágio”.

Era uma crítica correta, de profundo caráter democrático. O exercício dos direitos políticos, e o do voto entre eles, não pode ser condicionado pela escolaridade do eleitor, exigência que não passa de um disfarce para a distinção de classe favorecendo o poder da classe dominante e seus representantes a pretexto de uma alegada “ignorância” dos setores populares.

A explicação dada por Barbosa Lima Sobrinho foi clara: “Grande parte da violência e exaltação da vida política brasileira, nos últimos tempos, expressa a revolta ou a exasperação das elites contra a tendência de libertação que as massas vêm revelando nos últimos pleitos políticos. Pode haver equívocos e contradições neste processo de libertação, mas nem por isso serão menos exatas e menos definidas as linhas gerais do movimento. Que os interesses se vistam como se fossem ideias, é perfeitamente natural, pois que a vida política precisa de ênfase e de sublimação. Na verdade, porém, tanto a burguesia reacionária, como o proletariado alucinado pelo encarecimento da vida, pensam e agem em função de interesses e não de ideias. E é exatamente isso o que põe nos mesmos planos das realidades políticas o voto do eleitor que possui títulos universitários, como o do eleitor que mal consegue desenhar o próprio nome, na lista de votação”.

É uma situação parecida com a que o Brasil vive hoje. Naqueles anos houve uma forte “tendência de libertação das massas”, registrada por Barbosa Lima Sobrinho, e ela se manifestava nos resultados eleitorais. A votação dos partidos conservadores (UDN e PSD) diminuia, enquanto cresciam os votos do PTB e também das coligações.

Os conservadores perderam também as eleições presidenciais de 1950 (vencida por Getúlio Vargas) e de 1955 (quando Juscelino Kubitschek foi vitorioso), mesmo tendo deposto Getúlio em 1954 e o levado ao suicídio. Havia uma tendência democrática, desenvolvimentista e nacionalista muito forte no eleitorado que a direita só conseguiu derrotar com o golpe militar de 1964 e os 21 anos de ditadura que se seguiram.

Vendo escassearem os votos a seus candidatos e a seus partidos, a direita – aliada ao imperialismo americano – usou a força que lhe restava para impor seus interesses: a força das armas. Conseguiu paralisar a roda da história por algumas décadas: o período do governo dos militares e, depois, os anos de hegemonia neoliberal de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso.

Desde 2002, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, o desenvolvimento político brasileiro reencontrou seu rumo democrático e o cenário político-eleitoral assiste desde então ao renascimento da tendência que a direita tentou paralisar. O pano de fundo para o intenso debate sobre a reforma política é este: os partidos ligados ao povo e comprometidos com o avanço democrático, como o Partido Comunista do Brasil, exigem regras políticas para consolidar a democracia, aumentar o protagonismo do povo e dos trabalhadores e impor limites ao exercício do poder econômico e aos privilégios da elite. Os conservadores, ao contrário, querem regras para restringir a democracia e conter a onda de “libertação das massas”. Para conter a falência eleitoral de seus partidos, como a vivida por agremiações como o PPS, o DEM e em menor medida o PSDB, querem um sistema eleitoral restritivo baseado em formas de voto distrital e cláusulas de barreira, não aceitam o voto em lista ou o financiamento público de campanha e querem proibir as coligações partidárias que favorecem as pequenas agremiações. É um debate semelhante ao de meio século atrás e o que está em jogo, nele, não são “ideias”, mas interesses.
O que está em jogo é o futuro democrático do Brasil.

(o texto do debate na mesa redonda de 1956 foi publicado no livro Sistemas eleitorais e partidos políticos, publicado pela Fundação Getúlio Vargas em 1956)

* José Carlos Ruy é jornalista e editor do jornal Classe Operária