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Marco Albertim: Perdão para Santina

Fora abandonado pela mulher. Ela dissera, à queima-roupa, estar amando outro. Não reagiu. Não a advertiu para os perigos da desrazão. Ficou pasmo, sereno. Quando ela atravessou a porta, ele sentiu escorrerem para o vácuo, dez anos de casamento; dez anos que trariam mais dez, mais dez, o resto da vida. Toda a vida, nos seus quarenta anos, não dera sinais de emoção; morreria sem dores.

Por Marco Albertim

Duas semanas depois, ela, sem consumar o status de ex-, morreu; morreu de infarto quando coitava com o novo parelho. Foi enterrada numa segunda-feira à noite. Sentiu-se viúvo, mais viúvo que o outro. Foi ao velório. Os dois sentaram-se juntos; levantaram-se ao mesmo tempo. A defunta, com as mãos cruzadas, teve os dois pulsos seguros pela mão de cada um. Acompanharam o enterro juntos, juntos assistiram ao coveiro fechar a gaveta, tijolo por tijolo.

Os escassos parentes de Santina comoveram-se com as coroas; numa, lia-se: Dez anos. Obrigado, Santina; noutra: O amor não tem idade. Adeus, Santina. Pouca louvaminha, muita gratidão. O coveiro pôs o último tijolo. Os viúvos se abraçaram, e choraram um no ombro do outro. Suetônio, lembrando o coito interrompido, pagou meio a contragosto as despesas do enterro. Pacajus, ao fim da cerimônia, deu uma gorjeta ao coveiro.

A afinidade fúnebre tornou-os amigos.

Na páscoa, não tinham com quem compartir ovos. Tomaram vinho juntos, vinho do porto que o pranto não secara de vez.

– Choro pelo meu passado – disse Pacajus.

– Minha saudade é pouca – respondeu o outro. – Lamento pelo que não pude construir. Conte-me como vocês se conheceram.

– De que vai adiantar?

– Não tivemos tempo, eu e ela, de conversar sobre o passado de cada um.

– Conhecemo-nos na igreja. Sentávamos juntos. Os pais dela estavam sempre perto. Cruzávamos os braços. As costas das cadeiras escondiam nossas mãos e aproveitávamos para nos tocar. Uma noite, a mãe dela foi chamada pelo pastor para cantar. Faltou energia na rua. A igreja ficou escura. A velha ficou lá, parada, para não tropeçar. Foi quando nos beijamos pela primeira vez.

– Por que se casaram tão tarde?

– Ela não queria ser minha dependente. Fez concurso. Só depois de efetivada professora, me disse que queria casar.

– Por que não tiveram filhos?

– Estéril. Santina era estéril. Ela não lhe disse para não o assustar.

– Por conveniência. Nós só fomos para a cama depois que ela lhe contou que me amava. – Santina não me traiu?

– Não. Descobrimos que nos amávamos com o olhar. Depois nos tocamos e trocamos beijos. Sempre ocultos sob uma árvore, à noite, na Praça do Carmo.

– Ela me dizia que ia para a igreja.

– Não ia.

– Então fui corneado!

– Meio-corneado. Foi sincera com você e comigo. Chamei-a para a cama. Ela resistiu até lhe confessar. Quando chegou em minha casa, não disse nada. Puxou-me pelo braço, direto para o quarto. Devoramo-nos sem pensar na morte. Antes, disse que no dia seguinte iria à padaria comigo, comprar pão, de braços dados, para a cidade se acostumar com o novo casal. Morreu como minha mulher, não como minha amante.

Trocaram segredos até a garrafa secar. Uniram-se nos urdumes do passado. Suetônio proveu-se no perfil recém-descoberto de Santina, nos últimos dez anos. Pacajus não poupou a memória de seu casamento, por desagravo, por sentir-se viúvo de fato. Ela morreu com o seu nome, e legou-o o direito a uma pensão. As roupas de Santina eram os únicos petrechos legados a Suetônio; logo as doaria ao abrigo de velhos. A cama, agora espaçosa, acumpliciou-se aos relatos de Pacajus. Rendeu-se, Suetônio, ao legado do outro.

A prefeitura, no fim do mês, depositou no banco a pensão em nome de Pacajus Picasso. Santina estava generosamente viva, pensou ele. Confortou-se no dinheiro, na lealdade da confissão dela, no nome incrustado na lápide… E acossou na memória a cisma de ter sido corneado.

Na sessão espírita, a médium não trouxe Santina; ou trouxe, mas ela, confusa, perdida, não soube como se anunciar. A médium fechava os olhos, grunhia sem se fazer entender. Era uma matrona de cinquenta anos. Voz cava, revirando o céu da boca, soltando ruídos, dando conta de uma hipnose sem rumo. Fora do transe, trágica, urdia ameaças aos incréus. Disse a Pacajus que Santina estava sofrendo, arrependida; queria o perdão dele, sem saber como.

– Traga-a de volta! – suplicava ele.

– Não sou eu! Ela está sem rumo. Vai penar durante muito tempo, até encontrar meio de ter o seu perdão.

– Ela não precisa me pedir perdão. Diga isso a ela!

– Não sou eu que vou dizer. É você. Só você pode dizer isso a ela.

– Chame-a de qualquer modo…

– Não posso imprecar contra o espírito, Pacajus. Ele precisa de sossego, quer paz.

– Ela pode vir a mim?

– Como!?

– Eu posso falar com ela, posso olhar para ela?

– Não. Você não é médium, não é vidente. Você vai falar com ela, mas só quando ela aprender a se anunciar. Está vagando.

– Coitada de Santina. Está só, sem proteção nas trevas. Antes do sono pesado, ele inquiria o ar, com os olhos semiabertos para vê-la no sonho ou sua aparição de fato. No seu transe e no do espírito dela, supunha a energia que o tornasse vidente. Apagava a luz para o caso de ela querer aparecer, e não se intimidar com a claridade. Olhava, deitado, para o pufe em frente ao toucador, onde ela se sentara por dez anos, penteara os cabelos. Antes de se deitar, descobria-se no penhoar branco, cobria-se com o lençol, sabendo que em seguida Pacajus a descobriria, tiraria a roupa de baixo para penetrá-la com pouco carinho. Ela gemia no primeiro forcejo.

Pacajus julgou ouvir o gemido tão familiar a seus sentidos. Manteve os olhos fechados, mirando o vazio. A janela do desvão tinha um lado aberto. Santina costumava fechá-la para não ouvir a coruja corvejando. Pacajus a mantivera aberta desde o dia em que Santina se fora com a bagagem.

O vento soprou trazendo perfumes de vinagre. Distante, o canavial ardia no fogo, em volta de Goyaninha. Aanh… Outro gemido. Santina entrara pela janela do desvão, descera descalça a escada, e entrara no quarto. Pacajus pôs o braço no travesseiro de seu lado, fechou a mão, amassando o pano fino da fronha. Aanh. Santina, perdida, queria ajuda, o perdão pelo adultério interrompido.

– Perdão, Pacajus!

– Tire o penhoar. Aqui não faz frio…

– Perdão, Pacajus!

– Você não tem do que ter medo. Eu a protejo. Ninguém vai lhe fazer mal.

– Quero sua ajuda, por favor!

– Não vou deixar que tirem você de mim outra vez. Juro!
– Não jure. Também jurei fidelidade a você quando nos casamos. No entanto…

– No entanto, estamos juntos. Nem a morte vai nos separar.

– A morte!? Perdoe-me. A morte não quer me perdoar.

– Os anjos vão lhe perdoar. A morte não será nada.

– Pacajus! Estou com frio, com muito frio. Vão me levar daqui, não deixe.

– Ninguém vai tirar você da sua casa. Esta é a sua casa. Olhe o espelho do toucador, olhe-se. Você se penteava antes de se deitar.

– Não me deixe ir… Não me deixe ir!

A janela do desvão bateu empurrada pelo vento. Ele se levantou, subiu a escada, fechou a janela. Antes, pôs a cabeça do lado de fora, sentiu o forte perfume de vinhaça vindo dos lados da usina, onde o canavial crepitava no fogo. Desceu, foi à cozinha. Quando bebeu o último gole d’água, confuso, creu no diálogo como um dote da morte. Santina o visitara sem lhe causar sustos. Segurou na braguilha do pijama, sentiu umidade; um jorro espermicida in memoriam.

Estava vestida com o penhoar branco!? A memória não retivera o detalhe. Não declarara seu perdão. “Continua ela penando!? Santina!” Acendeu a luz do quarto. No pufe havia o molde de nádegas. Santina tinha o costume de revirar as gavetas à procura de quinquilharias. Quando saíra de casa, esquecera bijuterias de rosto, coisas à toa. Ele, na primeira noite que dormira sozinho, examinara os objetos nas pontas dos dedos.

Voltou à sessão espírita.

– Só você pode ajudá-la – reiterou a médium.

– Conversei com ela mas não tenho certeza. Só posso dizer que ela está rondando a casa. Quer entrar para ficar.

– Ela está avisando. Está dando sinais de que quer ajuda. Não tenha pressa. Ela mesma vai aprender o caminho para obter a paz de que seu espírito precisa.

– Chame-a agora!

– A matéria está pronta para receber o espírito. Mas só os espíritos experientes conseguem o benefício da comunicação.

A mulher acomodou as costas na poltrona, estendeu os braços sobre a mesa, fechou os olhos. Em volta, os assistentes improvisaram uma oração, pedindo paz para os espíritos desnorteados. De novo, a matrona soltou grunhidos incompreensíveis, sons rascantes. Com exceção de Pacajus, todos tinham os olhos fechados. Ele queria que a médium abrisse os olhos, olhasse para ele, para se convencer de que Santina estava ali. Santina não veio, não soube vir, continuava erradia, disse a mulher.

– É esperar, Pacajus. Esperar para que Deus se apiede da alma de sua mulher e a guie pelo caminho seguro. Você não pode perder a fé; se perder a fé, não poderá dar o perdão a ela. – Se isso acontecer?

– Pode ser a condenação sem remissão. Tenha fé nos seus fluidos. Antecipe o seu perdão, mesmo que ela não use a matéria para pedir. Deus poderá ouvi-lo.

– Quero que ela me ouça, ela!

– Ela ainda não pode ouvi-lo. Terá que errar muito pelas trevas, antes disso.

– Eu queria estar junto dela…

– Se ela evoluir, logo estará junto de você. Ela precisa de você.

À noite, ele abriu a janela do desvão. A coruja não anunciou a morte sobre o telhado de Pacajus, porque Santina se mudara; anunciara no telhado de Suetônio. Teria ela ouvido? Fornicava, certamente.

Pacajus abriu a janela para ouvir a coruja. Não temia a morte àquela altura. Dormiu olhando para o pufe, de onde vinha o odor da roupa dela. Ainda que não viesse, por impossibilidade, imperícia, podia dar indícios com o cheiro de defunta nova. Ele não voltou a sentar no pufe, até se convencer de quem seria o molde de nádegas. Sentava-se de lado, na beira da cama, olhando, examinando o assento. Os olhos não se mexiam, só a cabeça, o queixo, assuntando medidas.

Uma semana com a janela do desvão aberta. No último dia, sem nada pressentir, a janela foi sacudida pela mesma força com que fora na noite em que supunha ter conversado com Santina. “Está imprecando… Ela está imprecando contra a indiferença de seu único viúvo!” À noite, Pacajus vestiu-se com a casimira-cinza com que se casara, paletó e calça; camisa branca, sem gravata. Fechou a janela do desvão. Alma nenhuma podia suspeitar que alguém estivesse em casa. Se ela o procurasse, sem encontrá-lo, voltaria à sepultura. Esperou que o relógio batesse a primeira hora da noite; a pancada soou abstrata, só para ele. Abriu a porta, foi ao cemitério. Em frente à cadeia pública, viu seis polícias conduzir dois homens à carceragem.

Menos mal, não teriam que fazer ronda. No começo da rua das Quintas, avistou a luz sobre o portão do cemitério; um quilômetro de passeio. No meio do percurso, a coruja corvejou sem que nenhuma casa estivesse sob seu voo. O aviso era para ele, para Pacajus. Olhou para a ave, distinguiu a brancura das penas no papo. Penas brancas, como o penhoar branco de Santina. Empurrou o portão de ferro; a ferrugem assoviou. Olhou para trás, não viu ninguém, nem a alma de Santina que podia tê-lo seguido. Andou em direção à capela, virou à direita.
 
Sentiu uma pancada no ombro, e ouviu um objeto rebolar no chão de cimento; um morcego soltara um sapoti da boca, verde, pingando leite. A cada vinte metros, um poste de pouca altura, com luz indecisa, indicava um lote de sepulturas. Ele andou sessenta metros depois que virou à direita. Por fim, viu o nome de Santina na gaveta, com o seu sobrenome e ano de nascimento.
 
Olhou por cinco minutos, e fruiu o prazer de Suetônio não ter sido legitimado viúvo. Só ele, Pacajus, tinha o direito de posse sobre a memória da defunta. Ela estava enterrada na sua frente, esperando que desse o perdão pelo único erro que cometera. Ajoelhou-se, quis rezar.
 
Mas não estava com medo, tinha o poder de alforriar a alma da mulher; tinha o poder e quis demonstrá-lo sem pejo, para não se intimidar com a intromissão de outros espíritos. Primeiro um sussurro piedoso. Devia, ela, acordar sem sustos. Sussurrou o perdão seguidas vezes, olhou para os lados, para trás. Os joelhos começaram a doer sobre o chão estropiado, logo veio a dormência. Sentou-se sobre as pernas. Não conteve um gemido, um gemido parecido com o dela quando fornicara com a vagina pouco lubrificada. Aanh. Aanh! ? “Ela está falando, quer receber o marido.” Outra vez olhou para trás. Na sepultura em frente à galeria de covas onde Santina fora enterrada, viu um vulto se mover; um vulto impreciso, branco-cinza. “Está com medo, tem medo que lhe recuse o perdão. Santina!” Pacajus se virou de vez, correu para a cova onde vira alguém. “Santina!” Abaixou-se para olhar atrás da parede de mármore; esticou o braço, tocou num ombro duro. “Quem está aí! ?” Suetônio levantou-se com os ombros encolhidos, simulando frio.

– Você! O que está fazendo aí?

– E você, o que faz aqui?

– Não me lembro de ter combinado um encontro com você. Faz tempo que está aí? É a primeira vez?

Suetônio conhecera tão pouco a defunta, a breve e infeliz Santina, que pouco tinha a dizer. Flagrado, sem disfarces, não obrou na calça, embora tivesse vontade. Falou sem rebuços. À luz do dia, fora do cemitério, tentaria algum truque, mas…

– No dia de finados, não estarei na cidade. Vou viajar, decidi me mudar depois de tudo. – Vai se mudar com a defunta? Achou pouco ter surrupiado a mulher de outro… Agora quer raptar o cadáver da minha mulher.

– Quero a sua mortalha…

– O que está dizendo? Vai profanar o sossego de Santina!

– A sua mortalha. Eu comprei a sua mortalha. Paguei as despesas do enterro. Você deu apenas uma gorjeta ao coveiro.

– O que vai fazer com as vestes da defunta? Travestir-se com elas? Papa-defunto.

– Defunta…

– Dá na mesma. Não se pode dizer a essa altura que Santina tem as carnes tenras.

– Tentei chegar mais cedo. Na noite seguinte a sua morte. Não pude entrar. Havia rondas da polícia.

– E o que iria fazer? Consumar a lua de mel na gaveta mortuária?

– Eu tinha um litro de formol. Iria perfumar todo o seu corpo. Protegê-la de bactérias. – Santo Deus! Minha mulher ia casar com um zeloso guabiru de mortos.

– Não me ofenda, Pacajus. Eu amava sua mulher, de verdade.

– E acha que eu sentia o quê por ela! ? Asco? Para lhe deixar entregue a um rato de cemitério? Vamos, diga! Você enganou Santina. Ela dormia com a bíblia na cabeceira. Era evangélica, modelo de religiosa.

– Gosto das santas. As santas me atraem. As outras apodrecem antes de ir para a cova. – Deve se entender com um exorcista… Não com um viúvo de papel passado, ora essa! Antes que se insultassem, ouviram latidos. Um cachorro latia nos fundos do cemitério, do lado de dentro. Os latidos aumentavam.

– É o animal do vigia – disse Pacajus.

– Vamos embora. Não quero mais saber de mortalha. Ele olhou para a gaveta da defunta:

– Perdão, Santina. Adeus.

– Pare com isso! Correram entre covas, derrubando cruzes podres. Alcançaram o portão, ganharam a rua. Inda que suados, sorveram a brisa livre da rua. Andaram juntos toda a rua das Quintas, do modo como seguiram o enterro da defunta comum.

– Estamos juntos. Por que não nos separamos? – quis saber Pacajus.

– Não. Ainda tem vinho na sua casa?

– Você não deve entrar na minha casa. Ainda conservo o cheiro de Santina em cada canto. – Ela não é mais minha nem sua. Pertence à vaguidão, às sombras. Deixe-me entrar na sua casa, sentir o cheiro do nicho de Santina.

Pacajus concordou lembrando-se que triunfara como herdeiro da memória de Santina. Persuadindo-se, ainda, de que Suetônio não consumando o casamento, mal fornicara com Santina. A morte surpreendera os dois por desagravo. Mesmo que aparecesse, ela o exprobraria com a repulsa pelo pecado.

Sentaram-se na sala, onde por dez anos Santina fizera as refeições. Suetônio sentou-se numa cadeira menor, de madeira, encosto incômodo. O anfitrião apontou-a para que ele evitasse contato com os objetos de uso costumeiro de Santina. Aquela cadeira, ela detestara por causa de sua coluna. E ele, Pacajus, mais familiar que o costume, descansou a perna no braço do sofá unipessoal; sentou-se de tal modo que imaginou Santina viva, preparando café para a visita.

– Sirva-nos o vinho – lembrou-se Suetônio. – Estou com frio.

– Bebamos conhaque. É mais apropriado para quem se encontrou no cemitério.

– Se eu não estivesse aqui, você beberia o conhaque?

– Por que não?

– Você sabe celebrar a morte além do que exige o ritual.

– Bebo para me comprazer da morte. Evito o propósito da morte… Que é nos deixar vivos para a morte. E você, o que ia fazer com a mortalha de Santina?

– Celebrar a vida, a vida que ela não teve tempo de me dar.

– Você antecipou a morte de Santina. Ouviu-se forte pancada no desvão. Pacajus subiu. A janela estava aberta. “Santina!” Não era dia. O cheiro de vinhaça cobria a cidade junto à fumaça que vinha do canavial. Ele acendeu o lume do candeeiro; a luz minguada foi apagada duas, três vezes pelo vento. Mesmo que fechasse a janela, as brechas nas telhas abriam caminho ao sopro insonoro. “É ela!” Terá o perdão quando Suetônio confessar que fora importuno, pensou.

“Ainda está insano, demente; beberá o conhaque; quando estiver sóbrio, cobrirá o rosto de vergonha, vergonha de si mesmo.” Pacajus desceu. Foi o vento, disse. Propôs outro cálice, a revanche dos ofendidos. Suetônio bebeu imaginando que Santina já pusera os lábios finos no cálice. Sorveu a bebida para, de algum modo, fruir-se nas entranhas da amante. Amante!

Tornar-se-ia sua mulher para deixar de ser amante. A luxúria não entornara das entranhas de Santina. Forcejara-a, entupira-a de luxúria. Suetônio estudou cada objeto na sala, picado pelo ciúme de não ter compartilhado com ela a toalha de mesa, os talheres, a louça.

– Esta casa está impregnada de seu cheiro.

– Sim – respondeu Pacajus, respondeu com vindita na língua. – Tudo está conforme ela deixou. Durante dez anos ela nunca trocou a posição da mobília. Dizia que era para manter o casamento. Santina era o equilíbrio desta casa.

– Não guarda nenhum retrato seu na parede?

– Está na sala, coberto por uma cortina de rendas. Não me peça para lhe mostrar. É o meu santuário, meu culto a sua memória.

– Ainda não me disse o que estava fazendo no cemitério.

– Tenho o direito de visitar o túmulo da mulher que viveu comigo por dez anos.

– Àquela hora! ?

– Eu e Santina não tínhamos hora para nos amar. Só guardávamos a hora santa. Vivíamos abençoados. Ela relaxou a guarda quando deixou que você falasse em seu ouvido.

– Santina me atraiu como uma vestal. Ela me atraiu, queria me redimir dos pecados que eu lhe confessasse.

– Você foi o fim da santidade dela. Devia se achar culpado. Foi uma serpente, com mais força que a pureza dela, que ela encontrou no caminho. Tirou-a da via láctea.

A janela bateu outra vez. Pacajus subiu sem pedir licença. Suetônio voltou a encher o cálice, bebeu de uma vez; correu para a sala de visitas. Na penumbra, distinguiu a cortina de renda cobrindo um retrato na parede. Descortinou-o, viu Santina em pé, empertigada, ao lado de Pacajus sentado na poltrona. Ela, certamente com o vestido com que se casara, apoiava-se com a mão esquerda num dos lados da poltrona. O marido usava o terno casimira-cinza. Ele abriu toda a cortina e acendeu a luz do foco que levara ao cemitério. Todo o rosto de Santina estava iluminado, quando apareceu Pacajus.

– O que está fazendo? Vamos, retire-se! Você não tem o direito. Já! Fora daqui! Suetônio correu para a porta da rua. Quando estava do lado de fora, ouviu o barulho do cálice que Pacajus atirou para atingi-lo.

– Suma! Não volte mais aqui! Você profanou o altar de Santina! Pacajus chorou convulsivo. Tirou o retrato do alto, pôs no chão, encostou-o à parede. Levantou a cortina para enxugar o pranto. Pediu perdão à severidade do rosto dela, clemência por não ter dado amparo a sua pureza.

– Piedade, Santina! Eu sou o culpado! Deixe que o diabo me arraste pela escuridão. Mas reconcilie-se comigo.

Dormiu ali mesmo, com os braços cruzados sobre o retrato, o corpo apoiado num dos lados. Na sala de jantar, sobre a mesa, a garrafa de conhaque vazia, e o cálice deixado por Suetônio. Arrebentara o outro na porta, para escorraçar o agourento. Segurou garrafa e cálice, enrolou-os num pano de chão, uma estopa, jogou-os na lixeira. Correu para a calçada em frente a casa, deixou-a lá. O caminhão da prefeitura levaria para os quintos, os resíduos do agourento.
O banho sob o chuveiro restituiu a força. Demorou sob o chuveiro, inspirando, intoxicando-se no sabonete usado por Santina.

No desvão, a janela aberta, ainda aberta. No parapeito, sob o ferrolho, fios de madeira misturados à tinta verde. Os ferrolhos de cima, de baixo, soltos, fora dos buracos na madeira. Algo forçara, como uma lima, a frente de cada buraco; eram cortes desiguais, de través. Havia ratos no desvão. Uma semana antes do adeus de Santina, ele espalhara veneno. Matara dois camundongos, catitas; nunca iam à cozinha, ronronavam na madeira, famintos. Guabirus! Ratos de sótão… “Não bastasse a raposa de cemitério!…”

Pacajus recompôs o retrato da falecida; pôs outro cortinado, fino. Passou o espanador no rosto, nos cabelos, como ela os penteara sentada no pufe.

À noite bateram na porta. A médium queria que não faltasse à sessão, dali a duas horas.

– Onde esteve ontem à noite? – perguntou a mulher.

– …Em casa!

– Como em casa! ? Não sentiu nada de estranho? Sua mulher, o espírito de sua mulher deve ter andado por toda a cidade a sua procura.

– Santina?!

– Sim. Ou enviuvou outra vez? Não me deixou em paz, usou-me até as últimas horas da madrugada. Tentou falar, mas só deixou meu corpo dorido; queria falar, não conseguia, revirou-me as costas, o pescoço, a cabeça. No fim, quase amanhecendo, ouviram quando disse as duas últimas sílabas de seu nome. Deve ter sofrido demais para dizer só: cajius. Pobre mulher. Infeliz espírito.

– O que devo fazer?

– Reze. Acenda velas no seu túmulo.
 
Comprou um maço de velas brancas. Subornou o vigia do cemitério para prender o cachorro toda a madrugada. Chegou ao local a uma hora. Cobriu de velas o piso abaixo da cova. Seguro, sem Suetônio, sem latidos, sentou-se sobre as pernas dobradas. Balbuciou rezas, entoou um cântico sacro, o cântico que aprendera com ela. O falsete da voz foi ajudado pelo assovio do vento. Parou de cantar, pigarreou para expulsar a borra do conhaque na garganta. Chuva fina. As velas se apagaram. Abrigou-se sob uma árvore, ouviu um choro, um pranto miúdo confundindo-se com os pingos. “Santina! Chora com a chuva…” Pacajus andou entre covas, esbarrou em lajes. A chuva, insistente, escorria entre lápides, estatuetas de anjos; escorria entre os sapatos dele, penetrando no rés de covas sem trato. O choro, mais baixo que o ruído da água, tinha medo da água. “Onde você está, Santina? Onde?” A chuva caiu abundante. Um raio clareou túmulos, o transe de Pacajus, seu rosto empapado. Trovão. O ruído não calou o choro, o choro se fez ouvir sob a indiferença do tempo.

Não era o gemido de gozo, agonia, era o choro de um pesar fundo. “Santina, receba o perdão!” Quis gritar. O temporal lembrou-o do pecado da incúria. Ainda assim, quis gritar, tossiu, tossiu até cair de joelhos sob o peso da casimira encharcada. Duas mãos o levantaram sob um dos braços.

– Venha, seu Pacajus. A minha casa é aqui atrás do muro.

O vigia conduziu-o pela alameda principal. Nos fundos, abriu um portão. Rente ao muro, a casa de um vão onde morava com a filha. A moça, sentada na cama, rosto molhado, olhar indistinto, vago, pálpebras semifechadas.

– O que tem ela? – perguntou Pacajus.

– Sai quando tá dormindo, sem falar. Anda no meio das covas. Se encontrar qualquer estranho no caminho, chora, pode até gritar. Pensa que vão lhe atacar. A mãe dela está enterrada aí, tinha a mesma doença.

– É sonambulismo.

– Deve ser isso. Não tem cura. O médico diz pra não acordar ela. Ela mesma sabe o caminho de volta para a cama. O curandeiro receitou reza, banho de alecrim. E o senhor, o que tem?

– Não sou eu. É a minha mulher. Também ela precisa dormir em paz. Não consegue descansar. Eu estava rezando por ela, pela sua alma.

– Procure o curandeiro. Ele tem reza própria pra alma penada, receita para espíritos bons. Pode ser que o senhor precise da ajuda de caboclo. Custa nada.

Pacajus voltou à médium. A mulher entronchou o rosto por duas horas, e não disse nada familiar a Santina.

– É ela. Tenho certeza. É o desespero dela – insistiu ele.

– Temos que esperar, esperar que ela evolua – explicou ela. Esperou uma semana. O pufe permaneceu com o molde de duas nádegas. Ele acendeu velas sob o retrato de Santina. Não chovia nem ventava. Insônia. Riscando, suave, o rosto dela, sucedia uma suspeita de gemido, uma dor com sonoridade familiar. No escuro, olhando dois cotocos de velas com o lume minguando, supunha a aparição. Trouxera o retrato para a cama, de seu lado. No monólogo, podia entreter-se com ela.

Mais uma semana. Nenhum recado da médium. A espera de Pacajus tornou-se litúrgica. Na gaveta da cômoda, achou um antigo porta-joias. Ela abjurara as joias depois que afiançara a própria vida no respeito ao evangelho. Abriu a caixa, apreciou velhos colares, pulseiras, anéis, tudo em madrepérola. Podia deixar a caixa aberta, as joias estendidas sob o retrato. Tirou-a da gaveta, pôs em cima da cômoda, na frente do pufe. Espíritos são atraídos por costumes em desuso.

Mais duas semanas. Foi ao túmulo. A parede da gaveta desbotara, musgos nos cantos deixados pela chuva. Encontrou o vigia, perguntou pela moça.

– Melhor, seu Pacajus. Tá melhor. Dorme mais.

– Deu remédio?

– Ajuda do curandeiro. Muita reza. Pacajus foi ao curandeiro. Na primeira noite, não teve coragem de perguntar, tinha medo que lhe receitassem um clister para se ver livre de maus encostos. Na terceira vez, contou a infortuna. O curandeiro, um preto de rosto lustroso, cabelos eriçados, bafo de pinga e roupa abundante no corpo gordo. Possesso, olhos chispando, cuspindo com o sopro instigado pelo transe.

– E o porta-joias, o que faço com o porta-joias? – quis saber Pacajus. Decerto tomado por uma alma incivil, o curandeiro abespinhou-se com a fadiga de Pacajus.

– Enfia no cu, porra! Suetônio, por certo, teria feito pouco do rival. Mas desde que fora escorraçado da casa de Santina, conjeturava solitário o futuro que lhe escapulira.

Todo mundo ouviu a descompostura, comum a afins de exus. Pacajus, patético, arredou os passos, saiu dali para longe, para casa, para o nicho de Santina.