Sem categoria

Josué de Castro, o ilustre antecessor de Graziano na FAO

A eleição de José Graziano para a direção da FAO coloca outra vez um brasileiro à frente daquela agência internacional. Com ele, o combate à fome e o apoio à agricultura familiar voltam a ser a prioridade daquela agência da ONU

Por José Carlos Ruy

"Denunciei a fome como flagelo fabricado pelos homens, contra outros homens".
Josué de Castro (1908-1973)

 

A presença do agrônomo brasileiro José Graziano da Silva à frente da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação – em inglês Food and Agriculture Organization) a partir do dia 1º de janeiro de 2012 tem um antecessor ilustre, cujas ideias e atividades precisam ser recordadas neste momento de reforço à luta contra a fome e de reconhecimento internacional das políticas brasileiras adotadas desde 2003, após a posse de Lula na presidência da República, e do importante papel desempenhado nelas pelo novo dirigente da FAO, eleito no último dia 26. E que recoloca a FAO na linha de vanguarda do combate à fome que aflige quase um bilhão de seres humanos.

Esse antecessor é o humanista e cientista Josué de Castro que, na década de 1950, foi o primeiro brasileiro a dirigir aquela agência da ONU, levado a ela pelo pioneirismo de seu estudo, registrado no clássico Geografia da Fome, que lhe valeu a cassação dos direitos políticos pela ditadura militar de 1964 e o exílio na França, onde morreu em 1973.

Após a ditadura militar a fome, como questão de política pública, foi relegada a um plano subalterno, condição acentuada na década de 1990, sob Collor e Fernando Henrique Cardoso, só voltando às preocupações do governo brasileiro após a eleição de Lula, em 2002, e aos cuidados justamente de José Graziano da Silva.

Mas havia sido uma preocupação científica importante até a primeira metade da década de 1960, cuja expressão mais alta e definida ficou registrada na obra de Josué de Castro, autor daquele clássico publicado originalmente em 1946, e que foi traduzido em 25 idiomas.

Josué de Castro morreu no exílio em 24 de setembro de 1973, no limiar da velhice: tinha 65 anos. Desde a juventude dedicou-se ao problema em que se transformou autoridade mundial. Formado em medicina pela Universidade do Brasil, em 1929 (com 21 anos de idade), exerceu uma extensa lista de atividades, iniciada como professor de fisiologia na Faculdade de Medicina do Recife, em 1932, e concluída como professor de Geografia Humana da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), de 1940 a 1964.

Entre outras atividades, coordenou também, em 1933, o inquérito sobre as Condições de Vida das Classes Operárias do Recife (o primeiro feito no país). Em 1936, foi membro da Comissão de Inquérito para Estudo da Alimentação do Povo Brasileiro, do governo federal; idealizou e dirigiu o Serviço Central de Alimentação, depois transformado no Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS ), de 1939 a 1941

Em 1947, representou o Brasil na "Conferência de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas", da FAO. Sua intervenção teve tanta repercussão que foi indicado como membro do Comitê Consultivo Permanente de Nutrição, da FAO e, de 1952 a 1956, foi presidente dessa organização da ONU. Em 1960, foi presidente do Comitê Governamental da Campanha de Luta Contra a Fome, da ONU.

No Brasil, foi deputado federal pelo PTB de Pernambuco, de 1954 a 1962 e, depois, embaixador do Brasil na ONU, em Genebra, 1962 a 1964. Estava nesse cargo quando o golpe militar de 1964 interrompeu a frágil democracia da Constituição de 1946; teve seus direitos políticos cassados já na primeira lista de punidos, divulgada em 9 de abril daquele ano. Tinha 56 anos de idade e sabia que já não podia voltar ao Brasil. Exilou-se então na França, onde fundou e dirigiu o Centro Internacional para o Desenvolvimento (CID), e lecionou Geografia Humana na Universidade de Paris, até 1973, quando morreu.

Estudo científico da fome

No exílio, não parou. A ditadura militar tentou apagar seu nome do horizonte político e intelectual brasileiro, mas o reconhecimento de sua atividade científica, no exterior, foi crescente. Foi um pensador e cientista revolucionário – daí a intensa repercussão internacional e o prestígio de sua obra, pioneira no estudo científico da fome como um problema sobretudo social, como seu primeiro livro, O Problema da Alimentação no Brasil, de 1933, já registrara. Ano e década emblemáticos, que viram surgir as obras de autores como Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. Josué de Castro revela preocupações semelhantes à deles, de aprofundar a visão da sociedade e do homem brasileiro. Elas amadureceram no clássico Geografia da Fome, publicado em outro ano emblemático, 1946, quando o Brasil vivia intensamente outra esquina de sua história.

Josué de Castro não era marxista, e seu diagnóstico da fome como problema social decorre do profundo humanismo daqueles brasileiros que, nas décadas de 1930 a 1960, geraram explicações criativas e inovadoras para os problemas do país, enfatizando a necessidade de consolidar a democracia através de reformas profundas cujo resultado seria a reconciliação da nação com seu próprio povo, defendendo um desenvolvimento autônomo que eliminasse privilégios elitistas sobreviventes do passado colonial e fortalecesse a independência e a soberania de nosso país. Nesse sentido, mais que revolucionário, o pensamento de Josué de Castro foi subversivo.

Silêncio premeditado

"Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome?", perguntou em Geografia da Fome. E respondeu: "Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tomaram a fome um tema proibido".

Ele tinha uma visão aguda sobre a questão: "Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno".

Josué de Castro colocava no centro da análise o problema, ainda atual, da dependência externa: "É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos – dirigidos e estimulados dentro de seus interesses econômicos – e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública".

O monopólio da posse da terra e as relações de dominação decorrentes que, empregando o jargão da época, Josué de Castro identificava como "feudais", também compunham sua explicação para o problema da fome.

Nenhum outro fator "é mais negativo para a situação de abastecimento alimentar do país do que a sua estrutura agrária feudal, com um regime inadequado de propriedade, com relações de trabalho socialmente superadas e com a não utilização da riqueza potencial dos solos".

Isto é, ele via a reforma agrária como "uma necessidade histórica nesta hora de transformação social que atravessamos como um imperativo nacional". Isto em 1946, há mais de sessenta anos. "Do latifúndio decorre também a existência das grandes massas dos sem-terra, dos que trabalham na terra alheia, como assalariados ou como servos explorados por esta engrenagem econômica de tipo feudal", escreveu. "Por sua vez, o minifúndio significa a exploração antieconômica da terra, a miséria crônica das culturas de subsistência que não dão para matar a fome da família."

A fome é um assunto político

Castro combatia os argumentos de que a fome é um fenômeno natural, fruto da superpopulação ou da produção insuficiente de alimentos, que servem para os privilegiados culparem as próprias vítimas pelos males que sofrem. "A fome não é um produto da superpopulação", mas "já existia em massa antes do fenômeno da explosão demográfica do após-guerra", escreveu num artigo de 1968. Realidade cruel que oprimia (e continua oprimindo) os povos dos países pobres, ela "era escamoteada, era abafada, era escondida. Não se falava do assunto que era vergonhoso: a fome era tabu."

E demolia aquelas teses: "Querer justificar a fome do mundo como um fenômeno natural e inevitável não passa de uma técnica de mistificação para ocultar as suas verdadeiras causas que foram, no passado, o tipo de exploração colonial imposto à maioria dos povos do mundo, e, no presente, o neocolonialismo econômico a que estão submetidos os países de economia primária, dependentes, subdesenvolvidos, que são também países de fome".

Antimalthusianamente, não aceitava que a fome fosse "apenas um problema de produção insuficiente de alimentos". Os alimentos existem, dizia, mas havia fome porque o poder de compra da população era insuficiente para adquirir os alimentos necessários.

Para Josué de Castro, a fome não podia ser reduzida a um assunto acadêmico, parte do cardápio das universidades. No livro Homens e Caranguejos, publicado em 1966, em Portugal, recordou que "não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome", mas "nos mangues do Capiberibe, nos bairros miseráveis do Recife – Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta foi a minha Sorbonne". Era um assunto político, e cabia aos governos progressistas intervirem para resolvê-lo.

Nesta época em que os brasileiros redescobrem a fome como um problema nacional, é preciso redescobrir também Josué de Castro para demolir mitos que ele já havia enfrentado, mas persistem. E reconhecer, como ele ensinou, que esse drama tem causas mais profundas, decorrentes da uma estrutura social deformada pela persistência de privilégios seculares e de uma dependência externa que ainda está longe de ser superada.

Algumas obras de Josué de Castro

O Problema da Alimentação no Brasil. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1933

Condições de Vida das Classes Operárias do Recife. Recife, Depto. de Saúde Pública, 1935

Geografia da Fome. Rio de Janeiro, Ed. O Cruzeiro, 1946.

Geopolítica da Fome. Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1951

Homens e Caranguejos. Porto, 1967

"A explosão demográfica e a fome no mundo". In revista Civilità delle Machine, Itália, 1968 (reproduzido no livro Fome, tema proibido – últimos escritos de Josué de Castro. Castro, Anna Maria de (org), Rio de Janeiro, Vozes, 1984)