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Como uma criança sem mãe, mas num mundo maravilhoso

Louis Armstrong completaria 110 anos em agosto. Ele revolucionou o jazz e quis um mundo sem segregação. Foi um gênio e um revolucionário

Por José Carlos Ruy

“Algumas vezes me sinto como uma criança sem mãe”, diz a velha canção dos negros americanos que Louis Armstrong gravou em 1958, em pleno período de ascensão da luta pelos direitos civis nos EUA. A condição negra ficou registrada em outras canções gravadas por ele, como em “What Did I Do to be so Black and Blue” (O que fiz para ser tão negro e triste) ou na nítida ressonância libertária do hino religioso cantado pelos negros americanos “Let my people go” (Deixe meu povo ir), onde Deus manda Moisés dizer ao faraó para libertar os judeus escravizados no Egito.

Mas a tristeza, ou a melancolia, não foram predominantes na música de Louis Armstrong, que também cantou a vida em peças memoráveis como “Wath a wonderfull world” (Que mundo maravilhoso) ou “Summertime” (Verão).

Nascido no submundo de Nova Orleans, território musical negro americano localizado na foz musical do rio Mississippi, em 1901, Louis Armstrong comemoraria 110 anos neste 4 de agosto; também passaram-se já 40 anos desde que se despediu da vida, em 6 de julho de 1971.

Ele foi considerado “a encarnação do jazz”, que mudou e ao qual deu uma expressão contemporânea (e eterna, porque não dizer…) com seu trompete e sua voz. Começou a tocar desde muito menino, quando comprou uma corneta e, com ela, ajudava a sustentar a família com os trocados que ganhava pelas ruas da “Salvador” americana – ganhava algum dinheirinho também como entregador de jornais e sapateiro ambulante. Mais tarde, já a caminho da profissionalização como músico, complementava a renda trabalhando durante o dia como queimador de carvão em uma fábrica.

Melhorou seu aprendizado musical tocando na banda do reformatório de menores da cidade, para onde foi enviado por ter dado um tiro para o alto, na comemoração de um ano novo perdido no início do século 20.

Descoberto para a música por Joe “King” Oliver, aí por 1917 (tendo algo em torno de 16 anos de idade), só parou de tocar mais de meio século depois, quando deixou de viver.

No auge da luta pelos direitos civis, nos EUA, alguns líderes negros o criticaram por não se envolver diretamente nos protestos. Não tinham razão – seu envolvimento foi com sua voz e com seu trompete que repercutiram, inúmeras vezes, as pregações de Martin Luther King.

“Nos últimos anos da sua carreira”, diz Luís Fernando Verissimo no prefácio que escreveu para a edição brasileira da biografia “Louis Armstrong” (de James Lincoln Collier: São Paulo, Editora Globo, 1988), quando as atitudes raciais nos Estados Unidos tinham mudado, Armstrong foi injustamente acusado de se apegar ao estereótipo. Mas era apenas o seu jeito. Em sua vida, assim como em suas apresentações, era preciso distinguir entre a personalidade sorridente de voz rouca que gostaria de representar o preto bonachão sem queixa dos brancos, e o homem com o trompete nos lábios. Este foi um revolucionário”.

O “preto bonachão” era uma ironia que denotava o período anterior de perseguições raciais agudas que aquele senhor que se aproximava dos sessenta anos viveu e sentiu na pele e que lhe dava a consciência clara, que manifestou muitas vezes, da ferocidade do racismo. E que também acalentava o sonho de uma humanidade não segregada, onde todos pudessem se dar as mãos, mesmo com tonalidades de cor da pele diferentes.

Ele tinha consciência da importância da música em sua vida e as últimas palavras registradas dele foram: “tive o meu trompete, uma vida linda, uma família, o jazz. Agora estou completo". Seria justo acrescentar a elas a importância que ele próprio teve para o jazz, que revolucionou e do qual foi o primeiro “gênio” reconhecido.