Publicado 30/08/2011 10:48 | Editado 04/03/2020 17:07
Todos os seis nomes participaram de forma ativa da Insurreição Pernambucana contra o domínio holandês (1624-1654). Dentre eles, Felipe Camarão, o Governador dos índios brasileiros e estrategista da Batalha dos Guararapes, em 1648. Após essa batalha, os holandeses nunca mais impuseram resistência considerável e seis anos mais tarde oficializaram a rendição, sendo expulsos do Brasil. A bravura do índio – considerado um dos patriarcas do Exército brasileiro – rendeu honrarias em Natal: Felipe Camarão é hoje nome da sede da prefeitura, de bairro, de rua e da 7ª Brigada de Infantaria Motorizada.
Mas são homenagens pontuais em determinados momentos da história, pouco levadas adiante. No bairro periférico de Felipe Camarão, mesmo os moradores desconhecem a história do índio. "Desde 1998 se comemora no colégio Felipe Camarão a data de morte de Poty, mas ressaltam mais a história do bairro do que do índio", lamenta o pesquisador Aucides Sales. E partiu dele a ideia, há três anos, de levar essa comemoração às ruas. "O povo precisa conhecer a história de Poty. Não só o cidadão potiguar, mas o índio precisa sentir orgulho de si. E a figura de Felipe Camarão é emblemática", disse Aucides.
Na última quarta-feira, a solenidade em lembrança da data de morte do índio Poty ocorreu na Rua Felipe Camarão, na Cidade Alta. Um cortejo percorreu ruas do Centro para colher assinaturas solicitando a aprovação do projeto de lei de autoria do senador pernambucano, e seguiram até a Livraria Poty. Lá, foi realizada singela apresentação do grupo de dança Toré, formado por índios do Amarelão (de João Câmara) – uma das cinco comunidades indígenas do Rio Grande do Norte catalogadas na Funai, que enviou representante para acompanhar a apresentação e recebeu as assinaturas.
Também foram convidados e prometeram presença o vereador Franklin Capistrano (autor da lei que reconhece Felipe Camarão como herói municipal), o deputado estadual Hermano Morais (que elaborou o projeto de lei que tramita hoje na Assembleia Legislativa com o mesmo propósito, a nível estadual) e a deputada federal Fátima Bezerra, relatora da Comissão de Educação e Cultura do Congresso, responsável pela análise da solicitação do reconhecimento nacional. Apenas a deputada enviou representante. Nenhum dos edis esteve presente, para lamento da família Camarão.
16º Camarão
A descendência de Felipe Camarão já está na 16ª geração. A família é entusiasta do sobrenome. Mesmo as mulheres eliminam ou aglutinam o sobrenome do marido, sem deixar de lado a tradição da família Camarão. Eudenice, 71 anos, é também guerreira feito o patriarca da família. Mas sua luta é outra: a de tornar Felipe Camarão não só um herói nacional, mas reconhecido em seu chão. No Estado onde ele lutou e morreu, Pernambuco, há museu e o conhecimento do cidadão pela história do índio Poty. "Aqui temos monumentos aos mártires de Uruaçu e Cunhau. E de Felipe Camarão?", questiona.
Eudenice enxerga características natas da família, mesmo após tantas miscigenações e séculos passados. "Os Camarão são em maioria baixinhos, morenos, altivos, de rosto redondo e não levam desaforo pra casa. Até hoje a família conversa apontando o dedo na cara. São também conservadores, amantes da natureza, pessoas muito amigas e muito atreladas ao sobrenome: Camarão é sempre o sobrenome principal", se orgulha a senhora de cabelos loiros, mesmo que pintados. E conclui: "Felipe Camarão foi mais do que um índio: foi um herói e uma pessoa humana excepcional".
A filha deEudenice, a educadora Cristina Camarão, trabalha com crianças entre 7 e 9 anos. "Busco a pesquisa genealógica dos sobrenomes de cada um para que valorizem a família, a história e a cultura. Serve para que vejam que não só o meu sobrenome tem valor histórico, mas também os Silva ou qualquer outro. Resgatar as raízes históricas também é vida. Esse é meu norte pedagógico; tenho sede pela história", conta. Mãe e filha esperam o reconhecimento nacional como facilitador da difusão da história do índio Poty. Aucides Sales também enxerga por essa premissa: "Alguns ganham feriado, mas queremos mesmo o valor histórico do fato".
O governador dos índios
O índio Poty herdou a bravura do chefe guerreiro Potiguaçu. Segundo Aucides Sales, Potiguaçu chefiava a tribo dos Potiguara. Residia em um tabaçu – espécie de acampamento central cercado por outros menores, em Araça, Extremoz. Quando os franceses aportaram em Natal, por volta de 1535, a tribo de Potiguaçu se deslocou para o Alto da Torre, onde hoje se encontra o Conjunto dos Garis – ponto mais alto da Zona Norte de Natal (tombado pela Fundação José Augusto e ainda assim liberado para construção de condomínio fechado). A intenção foi negociar com os franceses.
O índio Poty nasceu em 1600 na chamada Aldeia Velha, em Igapó. Em 13 de junho de 1612, foi batizado próximo à Redinha com o nome de Antônio Filipe Camarão (Antônio, em homenagem ao dia de Santo Antônio; Filipe, em referência a Dom Filipe IV, rei da Espanha; e Camarão, alusivo ao nome Pott). A cerimônia foi realizada pelo padre Manoel de Morais, um índio jesuíta. Inquirido pela inquisição da época, o então padre viajou pra Holanda onde casou duas vezes edepois se tornou pastor. Foi o primeiro autor de um dicionário tupi-latim. Quatro mais tarde, já órfão, foi levado pelo padre à Aldeia de Miriti, na fronteira entre Paraíba e Pernambuco.
Em Miriti, Filipe Camarão estudou em escola de jesuítas. Aprendeu a ler e escrever em português, espanhol, tupi e latim. Nas cartas que escreveu se percebia uma linguagem rebuscada. De lá, partiu para Muçuí, Pernambuco, onde se apresentou ao general Matias Albuquerque acompanhado de 200 índios armados de arco e flecha. Na oportunidade foi nomeado Capitão-mor dos índios do Rio São Francisco ao Maranhão, em 1934, e depois, governador de todos os índios do Brasil, entre outra gama de condecorações. Camarão justificaria as honrarias pelos anos seguintes, culminando na Batalha dos Guararapes, a 19 de abril de 1648.
A tropa contra os holandeses foi postada em linha. Felipe Camarão comandava a ala direita, formada por mil combatentes, e traçou toda a estratégia do combate. Sem apoio dos portugueses, o efetivo e armamento eram consideravelmente inferiores aos holandeses. A tática foi a de enviar pequeno contingente a uma garganta, entre duas elevações. O pasto era pantanoso, e quando os inimigos avançaram, a difícil locomoção das botas atoladas na lama facilitou o ataque dos combatentes chefiados por Felipe Camarão. Ao fim da batalha, os holandeses perderam dois mil dos 5 mil soldados. A tropa de Camarão contou 200 mortos entre 2,3 mil combatentes.
No ano seguinte, os holandeses, já destroçados pela batalha do ano anterior, pouco resistiram à investida dos brasileiros e sequer puderam fugir de Recife. Em 1954, houve a rendição oficial e os holandeses foram expulsos do Nordeste brasileiro. Mas Felipe Camarão não assistiu à demandada. Com ferimentos sofridos durante o combate em Guararapes, se escolheu em seu sítio em Várzea – bairro de Recife – e morreu três meses depois, a 24 de agosto de 1648. Estudiosos apontam a causa da morte à enfermidade "febre palustres", atual dengue.
Ceará-Mirim
Aucides Sales detém informações raras a respeitoda descendência da tribo chefiada por Potiguaçu e de onde nasceu Felipe Camarão. Potiguaçu vivia em Araçá, Extremoz, quando se deslocou para o Alto da Torre, em Igapó. Quando Poty foi embora para estudar, jesuítas levaram a tribo de volta a Extremoz, dessa vez à Lagoa de Guajiru. Décadas depois, o local passa a ser considerado Missão (local de catequese) e foi nomeada Vila em 1762. A tribo recebeu terras de uma légua, em Ceará-Mirim, com início no Rio Água Azul até o Rio Maturaia, já próximo à praia de Porto-Mirim. Em 1860 a área foi desmembrada em 20 faixas de terra distribuídas entre 20 famílias indígenas. As terras hoje vão do Rio dos Índios até Alto do Sítio. Aucides visitou a localidade, hoje dividida em Boavista, Capoeira Grande, Capim e outras comunidades. Mas o núcleo da família Camarão ficou em Pernambuco, e hoje o sobrenome é encontrado em diversos estados brasileiros.
Fonte: Diário de Natal