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O preferido de Marx

Apesar das teorias conservadoras que professava, Balzac não se iludia quanto ao verdadeiro sentido dos acontecimentos”, escreveu Paulo Ronai. E foi esta postura que fez dele um dos fundadores – ao lado de Flaubert e de Stendhal – do romance realista.

Por José Carlos Ruy (*)

Marx

“O acaso é o maior romancista do mundo: para ser-se fecundo basta estudá-lo. A sociedade francesa ia ser o historiador, eu nada mais seria do que seu secretário. Ao fazer o inventário dos vícios e das virtudes, ao reunir os principais fatos das paixões, ao pintar os caracteres, ao escolher os acontecimentos mais relevantes da sociedade, ao compor os tipos pela reunião dos traços de múltiplos caracteres homogêneos, poderia, talvez, alcançar escrever a historia esquecida por tantos historiadores, a dos costumes”.

Desta maneira, Honoré de Balzac (1799-1850), no prefácio à monumental Comédia Humana, define o “programa” literário que lhe permitiu compor este vasto painel da sociedade francesa da primeira metade do século 19. Painel que um especialista, Paulo Ronai, considerou muito justamente “um espelho de todo o século 19”.

Nada menos que 86 obras – romances e novelas – foram reunidos na Comédia Humana que começou a ser relançada no Brasil em 1981 pela Editora Globo de Porto Alegre. Foram lançados, na ocasião, sete volumes (que compreendem 32 obras) que voltaram a ser colocados no mercado, sendo um ensaio para o relançamento da Comédia Humana toda – 17 volumes, na edição brasileira. Esta obra gigantesca – a mesma coordenada por Paulo Ronai – foi relançada pela Editora Globo em 1989.

Não se tratou de uma reedição. Os volumes que foram relançados faziam parte da reimpressão feita em 1959 da edição dirigida por Paulo Ronai e cujos primeiros lançamentos datam de 1946. Esta edição, cuidadosamente anotada e com ensaios introdutórios dos maiores especialistas em Balzac, nacionais e estrangeiros, foi muito elogiada pela crítica da época, inclusive pela crítica francesa – que a considerou uma das melhores edições da Comédia Humana feita fora da França..

Ela obedece à ordem cronológica do lançamento das obras: respeita a divisão de capítulos feita pelo próprio autor e suprimida depois pela maioria dos editores, por economia; e segue a divisão geral da Comédia Humana, feita por Balzac ao agrupá-la em 1842. Assim, os primeiros 14 volumes da edição brasileira correspondem aos “Estudos de costumes”; os volumes 15, 16 e 17 trazem os “Estudos filosóficos”, e o volume 17 traz também os “Estudos Analíticos”.

Monarquista e católico, Balzac foi um homem decididamente reacionário. No prefácio da Comédia Humana, ele se coloca contra as eleições generalizadas (elas nos dão “o governo das massas, o único que não é responsável, e no qual a tirania é ilimitada, porque se denomina a lei”) e considera, aprovando, que o cristianismo (sobretudo o catolicismo), “um sistema completo de repressão das tendências mais depravadas do homem, é o maior elemento da ordem social”.

Isso não impediu que a obra literária deste reacionário fosse acusada de imoral pela crítica contemporânea, e saudada com entusiasmo pelos fundadores do socialismo científico, Marx e Engels.

O exemplo de Balzac toca num dos eixos mais importantes da discussão literária de nossos dias: a relação entre arte e política. Sua obra é inclusive um modelo prático da resolução dessa questão cardeal da produção artística. Esta aparente contradição – escritor reacionário e obra revolucionária – fica resolvida quando prestamos atenção ao método usado por Balzac em sua produção literária.

Este método, parcialmente descrito no prefácio da Comédia Humana, implica fundamentalmente na observação e na transcrição fiel dos acontecimentos; o romance, diz Balzac, nada seria “se não fosse verdadeiro nos pormenores”. Mas isto não é tudo: o artista deve ainda “surpreender o sentido oculto nessa imensa reunião de tipos, de paixões e de acontecimentos. Finalmente, é “preciso meditar sobre os princípios naturais e ver em que as sociedades se afastam ou se aproximam da regra eterna do verdadeiro, do belo”. Balzac conclui: “assim descrita, a sociedade devia carregar consigo a razão de seu movimento”. E é a apreensão realista e implacável deste movimento – do capitalismo triunfante. Do dinheiro elevado como o elemento primário das relações entre os homens – que dá o sentido revolucionário à obra de Balzac., que já foi considerara como correspondente, na literatura, a O Capital de Karl Marx.

Paulo Ronai diz, em “A vida de Balzac” – um estudo biográfico que abre a edição brasileira da Comédia Humana – que, “apesar das teorias conservadoras que professava (…) Balzac não se iludia quanto ao verdadeiro sentido dos acontecimentos”. Foi esta postura que fez de Balzac um dos fundadores – ao lado de Flaubert e de Stendhal – do romance realista.

Esta constatação foi feita por Engels, numa carta a Marx, onde diz: “que Balzac tenha sido forçado a ir ao encontro de suas próprias simpatias de classe e de seus preconceitos políticos, que tenha visto a inelutabilidade da queda de seus aristocratas queridos e que os tenha descrito como indignos de melhor sorte; que tenha visto os verdadeiros homens do futuro apenas onde se podiam encontrar, na época, isto eu considero um dos maiores triunfos do realismo e uma das maiores particularidades do velho Balzac”.

(*) Nota do autor: Publiquei este artigo em uma das últimas edições do jornal Movimento, em 19/10/1981. Reencontrei-o no CD que acompanha o livro Jornal Movimento – uma reportagem, de Carlos Azevedo, onde está a íntegra de todas as edições daquele jornal, e achei que valia a pena apresenta-lo aos leitores do Prosa Poesia e Arte. Claro que com as pequenas mudanças que a passagem do tempo impõe… (JCR)