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Resenha: Países pobres da Europa aguentam a crise dos bancos

“Estamos a assistir ao desenvolvimento do subdesenvolvimento do nosso país (Portugal)”, escreve Boaventura Sousa Santos no seu livro Portugal, ensaio contra a autoflagelação. Analisando as sensações contraditórias: “Somos portugueses do mesmo modo que somos europeus?” (…) “Estamos sendo os retornados da Europa, sem nunca daqui termos saido?”, questiona.

Por Zillah Branco*

Ao reconhecer que “ as causas da nossa crise financeira” são “sistêmicas e, em parte, estranhas à nossa ação”; combatendo a “autoflagelação (como sendo) a má consciência da passividade”, Santos recomenda: “O nosso inconformismo ante tal cenário deve ser radical”.

Não é fácil compreender e traduzir os sentimentos e as palavras, mesmo quando escritas no nosso idioma, que é semelhante ou não, conforme a ideologia e a situação social do autor. No caso citado acima, o conhecido professor revela uma velha mágoa dos que, antes de valorizarem a sua nação pelas qualidades internas, priorizam o respeito que os países mais ricos “deveriam ter” pela história de Portugal quando colonizador. No combate a uma tendência pouco conhecida no Brasil, da “autoflagelação”, ele recomenda uma ação “radical” que merece ser melhor definida (apesar de ter sido situada entre as “manifestações por soluções institucionais (como ocorrem hoje nos países da Europa) ou extrainstitucionais (como as dos países árabes)”, na página 21.

Sob uma lente social-democrata (como se fosse a única), Boaventura recorda a história passada de Portugal colonial, quando atrapalhava os programas comerciais da Europa rica; do período fascista, quando impedia o desenvolvimento do capitalismo interno; e, de quando integrou a Comunidade Econômica Europeia, como país semi-periférico, tal como a Grécia, a Irlanda e a Espanha. Em todos esses momentos Portugal foi “desvalorizado” perante o modelo rico da Europa. Mas, o mundo lembra da Revolução dos Cravos de 1974, quando o Movimento das Forças Armadas, apoiado pela grande massa trabalhadora, levou ao Governo Vasco Gonçalves, que nacionalizou a banca, dando um golpe certeiro no poder financeiro mundial. Esta foi uma ação radical realizada com a força democrática resultante da união entre os militares de Abril e a população. E despertou a reação internacional estadunidense e a da social-democracia europeia liderada por Mário Soares em Portugal e o chanceler alemão da época.

Naquele momento, Portugal não foi desprezado, foi temido pelo efeito exemplar que poderia se multiplicar na Europa. E hoje, no quadro da crise, vemos as manifestações que pedem soluções institucionais, acusando exatamente o poder financeiro por ter causado o desequilíbrio que afunda a Europa. Isto sim que é semelhante em qualquer idioma.

Os defensores da Revolução de Abril lutaram pelas nacionalizações da banca e das empresas do grande capital (como as têxteis que Boaventura reconhece ter sido destruídas depois, com sério prejuízo para o comércio externo no país); pela Reforma Agrária, que aumentou a área de produção em mais de 400 unidades coletivas congregando dezenas de milhares de trabalhadores orientados no sentido do desenvolvimento pessoal e nacional; declararam apoio ao processo de descolonização na África; introduziram a legislação do trabalho e da segurança social, que deram garantias institucionais aos trabalhadores e melhor nível de vida à população; apoiaram as formas de organização do minifúndio, que asseguravam a existência dos produtos inigualáveis que caracterizam os sabores de Portugal e a cultura rural tradicional que guarda o humanismo europeu; defenderam a aliança Povo-MFA, que impediu a tendência autoritária da elite e fortaleceu a consciência de cidadania em Portugal. E tudo isso aconteceu sem conflitos armados nas ruas, sem a invasão da Otan e sem as chacinas e assassinatos que hoje ocorrem nos países onde a população se revolta.

Esta lufada de ar puro foi combatida e amordaçada pelos mesmos organismos econômico-financeiros – FMI, Banco Europeu, bancos privados — que hoje, esquecida a democracia ocidental, estão nomeando tecnocratas do poder financeiro como primeiros-ministros dos países pobres e endividados, liderados pela atual chanceler da Alemanha. É verdade que, ao mesmo tempo em que as forças imperialistas combatiam o Abril de Portugal , alimentaram a guerra fria que culminou, em 1989, com a queda do Muro de Berlim o que, segundo Boaventura Sousa Santos, “marcou o começo do fim da social-democracia europeia” cujos governantes começam a ser expulsos de Portugal, Grécia, Espanha.

Então, qual foi o papel da social-democracia que o sociólogo diz (página 18) “que desertou da Europa e emigrou para o Brasil”? “Que Deus nos livre dessa praga”!, dizemos nós. O que se vê é que a União Europeia resultou da subordinação dos países periféricos que abandonaram os seus caminhos de produção e desenvolvimento independentes e o equilíbrio financeiro que mantinham com as suas moedas. Resultou não da ideia de unidade europeia, mas sim do domínio imperialista e de um modelo único de sociedade que mediocrizou as heranças históricas e culturais plastificando-as.

E, neste processo em que esbanjaram os patrimonios nacionais – a que se somam as peculiaridades culturais de cada povo, os produtos rurais com tratamento artesanal que lhes conferia personalidade e valor, belezas paisagísticas e de arquitetura histórica que os diferenciava, ritmos de vida adequados à sua criatividade e à sua filosofia, valores humanos herdeiros da longa batalha pela construção nacional, e tantas riquezas acumuladas na Europa – para voltar à situação em que estiveram há um século atrás disputando territórios e grandezas. Diz Boaventura, a propósito dos conteúdos e significados políticos das crises: “é hoje consensual, entre os economistas e sociólogos políticos, que o capitalismo necessita de adversários credíveis que atuem como corretivos da sua tendência para a irracionalidade e para a autodestruição, a qual lhe advém da pulsão para funcionalizar ou destruir tudo o que pode interpor-se no seu inexorável caminho para a acumulação infinita de riqueza, por mais antissociais e injustas que sejam as consequências. Durante o século 20, esse corretivo foi a ameaça do comunismo; e foi a partir dela que se construiu a social-democracia.”

Serviço
Livro:
Portugal, ensaio contra a autoflagelação
Autor: Boaventura Sousa Santos
Editora: Cortez
Número de páginas: 160

*Zillah Branco é colunista do Vermelho e Conselheira do Cebrapaz.