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Resenha: Memórias de um incansável guerreiro

Memórias, publicado originalmente pela editora Civilização Brasileira, então dirigida pelo saudoso Ênio Silveira, foi escrito nos anos em que Gregório Bezerra esteve asilado (1969-1979). Beirando os 70 anos, o militante comunista procurava recuperar a combalida saúde nos hospitais e clínicas médicas da antiga URSS.

Por Caio N. de Toledo*

O livro é um notável e singular documento histórico sobre a política brasileira da República oligárquica até primeiros cinco anos da ditadura militar pós-1964. Sob a perspectiva dos explorados, Memórias documenta com acuidade e riqueza de detalhes as condições sociais e de trabalho dos camponeses nordestinos, a religiosidade e as crenças populares, as festas e as relações de solidariedade e amizade entre os subalternos, o flagelo da seca e a constante imigração dos pequenos agricultores, a dominação do latifúndio e o poder repressivo das oligarquias rurais, as profundas desigualdades entre os hábitos dos senhores de engenho e a miséria camponesa, o formalismo da democracia oligárquica durante a República Velha etc. Memórias é, sobre esse período de nossa história política e social, um documento cuja leitura se impõe a todos os estudantes do ensino médio e da universidade brasileiros.

O livro relata também os frustrados “assaltos ao poder” protagonizados no Nordeste pela ANL (1935), as primeiras tentativas de organização das ligas camponesas e dos sindicatos rurais e a impiedosa repressão política do Estado Novo (1937-1945) contra os trabalhadores e o PCB no campo e na cidade. Descreve ainda a atuação dos comunistas na redemocratização do país, a luta pela legalização do PCB, os debates no processo constituinte, o golpe contra o PCB e a cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas, a ascensão das lutas sociais e políticas dos trabalhadores no governo Goulart (a luta pela “reforma agrária radical”) e, em particular, a importância do governo de Miguel Arrais, em Pernambuco, para as lutas populares. O golpe militar, a violência “fascista” e seus efeitos regressivos são examinados no fim da segunda parte do livro.

Inegavelmente, é um clássico da literatura política brasileira, uma obra que ilustra pela saga pessoal de um homem simples e “semialfabetizado” situações paradigmáticas e representativas de nossa história social e política (“incruenta”, como observa o autor). Na descrição das condições de vida do camponês, do flagelo das secas e das tensas e conflituosas relações de classe na República Velha, iguala-se às melhores páginas de nosso romance social ("Vidas secas", de Graciliano Ramos, Fogo morto, de Lins do Rego, "A bagaceira", de José Américo de Almeida etc.). Tome-se como exemplo uma passagem em que o autor relata um ato de intimidação e “justiçamento” comandado por um senhor de engenho de Pernambuco. Acusada de chupar um pedaço de cana, uma “desventurada criatura” foi detida e amarrada no “mourão da casa-grande”; o capataz lambuzou-a de mel e sujeitou-a às lambidas do gado. Horas depois, com o corpo em carne viva, o “tatuíra” mandou que o capataz submetesse o trabalhador a uma nova tortura: ainda lambuzado de mel, o corpo do camponês foi oferecido às formigas. Presenciado pelo pequeno Grilo, que ainda não havia completado oito anos, “o crime apavorou os habitantes do engenho”. Cenas como essa não ilustram bem o cotidiano de terror e medo que os camponeses viviam nas casas-grandes e latifúndios do país em pleno século 20?

A vida do autor

O leitor se surpreende com o relato minucioso de situações e personagens. Com riqueza e consistência, os fatos são examinados depois de mais de seis décadas de vida do autor: acontecimentos banais e significativos da vida pessoal e familiar (quando Gregório completou quatro anos, sua mãe lhe disse: “Tu já tá um home. Tá bom de trabaio”) ; nomes completos daqueles com que ele se relacionou (é raro que deixe de citar nomes e sobrenomes); circunstâncias históricas; cenários; figuras políticas e militares com que ele se envolveu e se desentendeu etc. Uma conclusão se impõe: era prodigiosa e fecunda a memória de Gregório Bezerra.

Nascido em 1900, em Panelas de Mirando, região do agreste de Pernambuco, Grilo foi criado pela avó materna, pois aos nove anos já era órfão. Nas pungentes palavras do autor, ele nasceu “num ano seco, de muita fome e muita sede”: “Nasci faminto e faminto fui vegetando e crescendo ao léu da sorte. […] Na verdade, sempre fui uma criança desnutrida, raquítica, anêmica e retardada fisicamente até os quinze anos de idade” . Aos quatro anos, o pai colocou em suas mãos uma enxada e uma foice velhas e disse: “Damanhã diante, tu vai aprendê a trabaiá cum nói em tudo” . Como reconhece, foi uma “excelente escola”. Até meados de 1910, permaneceu no trabalho do campo, ajudando os pais no cultivo da roça doméstica e da criação mirrada e, depois, a avó nos trabalhos familiares, nas plantações e nas casas dos senhores de engenhos.

Foi para o Recife em 1910 para trabalhar na casa de um proprietário rural. A promessa não cumprida de ser alfabetizado e os maus-tratos levaram-no a se rebelar e fugir de casa. Enfrentando diariamente os riscos e perigos das ruas da grande cidade, o menino de dez anos começou a vender jornais e a ter os primeiros lampejos de consciência crítica e política: “Procurava uma explicação para tudo aquilo e não encontrava. Por que esse povo que trabalha sofre tanta fome, vive na miséria, padecendo por todos os lugares? Quando deixará de sofrer?”.
Aos dezessete anos, o instinto revolucionário se manifestou: sem nenhum contato com simpatizantes do socialismo, participou de uma manifestação de solidariedade à Revolução Russa e das primeiras greves operárias no Recife. Embora menor, passou cinco anos na Casa de Detenção do Recife. Ao sair da prisão, alistou-se no Exército e fez carreira; conseguiu a duras penas se alfabetizar aos 25 anos e, quatro anos depois, entrou para a Escola de Sargentos. Transferido para o Rio de Janeiro, foi instrutor da Companhia de Metralhadoras Pesadas na Vila Militar. Voltando ao Recife, e depois de ter lido "A mãe", de Gorki, "A história do socialismo e das lutas sociais", de Beer, e "O Estado e a revolução", de Lenin, filiou-se “pra valer”, em janeiro de 1930, ao PCB (então Partido Comunista do Brasil).

O ódio que as classes dominantes e os militares viriam nutrir por ele até o fim de sua vida começou com sua destemida e heroica participação no levante militar da ANL, em novembro de 1935, no Recife. No frustrado movimento que não contou com o apoio de soldados e operários, Gregório Bezerra foi alvejado nas costas no interior de um quartel do CPOR e acabou ferindo um tenente e um sargento. Embora negasse a autoria da morte de um segundo oficial, foi condenado a 28 anos de prisão. Depois de alguns anos na prisão superlotada do Recife, foi transferido para o presídio de Fernando de Noronha. Em 1942 foi transferido para Ilha Grande e, em abril de 1945, para o Presídio Frei Caneca, na cidade do Rio de Janeiro, onde teve a satisfação de dividir a cela com Luiz Carlos Prestes. Em suas palavras: “Confesso a grande emoção que tive ao abraçar o camarada Prestes. […] Logo nos familiarizamos”. Poucos meses depois, a anistia do governo os colocaria em liberdade depois de ambos terem passado dez anos na prisão.

Coesão política

Nos limites desta resenha, concentremo-nos no exame de alguns momentos do regime democrático da Carta de 1946. A lealdade de Bezerra à política de alianças do PCB e às definições de seus dirigentes em matéria eleitoral foi, até os anos 1980, irrepreensível. (Amargurado com a intolerância e rispidez de Diógenes Arruda, chegou a pensar em abandonar o partido, mas reconheceu: “Não tinha o menor desejo de deixar o partido, que há muito era o sangue do meu sangue e a carne da minha própria carne” ). Embora tenha denunciado a política de Vargas durante o Estado Novo, defendeu sem hesitação, diante dos trabalhadores (“desconfiados”) o acerto do apoio político do PCB ao ex-ditador; afinal, a partir de 1945 Vargas não havia contribuído para a efetiva redemocratização do país e não era duramente combatido pela direita reacionária e “fascista”? Na mesma direção, subiu nos palanques para defender as candidaturas ao governo de Moisés Lupion (Paraná) e Cid Sampaio (Pernambuco), embora esses dois proprietários rurais tivessem sido inimigos declarados dos trabalhadores rurais e dos operários. Mais uma vez, para ele, o partido tinha razão.

Os pesquisadores da história política brasileira muito se beneficiam dos relatos do autor sobre sua atuação política na luta pela legalização do PCB, nas eleições para Assembléia Constituinte 1946 e, durante o processo constituinte, as informações sobre os debates que os dirigentes comunistas mantiveram com os trabalhadores em várias partes do país. Distinguindo-se do “cretinismo eleitoral”, inerente aos debates políticos na democracia burguesa, estes teriam sido momentos privilegiados da luta ideológica ao lado dos trabalhadores; neles, a defesa de uma radical democratização política e social era feita paralelamente à afirmação do socialismo no Brasil.

A cassação do registro do PCB e dos mandatos parlamentares comunistas durante o governo reacionário de Dutra não o arrancou da cena política e do debate ideológico. Também aqui os pesquisadores sobre os movimentos sociais e a luta ideológica de classes no Brasil podem se beneficiar do relato; desbravando o país, Gregório Bezerra foi, na melhor acepção da expressão, um destemido “agitador social”. Nesses tempos, quase sozinho, defendeu a realização de reformas sociais radicais e a ampliação da democracia política no país. Embora tivesse de se apresentar obrigatoriamente nas delegacias das cidades antes de seus comícios públicos, nunca se intimidou com a repressão – estipendiada e a serviço dos proprietários rurais; nos palanques improvisados, falava diretamente aos camponeses e trabalhadores rurais, incentivando-os a se organizar em ligas e sindicatos. Além da sindicalização e da reforma agrária radical, defendia a implantação do salário mínimo, o “salário igual para trabalho igual”, a jornada de oito horas, o pagamento em dinheiro, a abolição do vale para o barracão, a assistência médica, hospitalar e dentária, o pagamento de horas extras etc.

Em Pernambuco, o ódio que as classes dominantes tinham por ele era crescente, e, mesmo enfrentando a dura repressão policial e as constantes ameaças contra sua vida, ele contribuiu para um inegável avanço das lutas dos trabalhadores rurais. “Andando dia e noite, de canavial em canavial, de engenho em engenho, de usina em usina” , participou da vitoriosa greve de 1963 que paralisou toda a região açucareira de Pernambuco, a “maior greve feita pelo campesinato brasileiro ao longo de sua dolorosa história” . Os efeitos positivos da greve fizeram-se sentir de imediato. Numa assembleia do sindicato, um trabalhador observou: “Se desde 1945, quando os comunistas estavam na legalidade, tivéssemos tomado o conselho deles, não teríamos penado tanta fome nem nossos filhos teriam morrido à míngua. […]. Poderiam estar vivos, ter escolas” .

Para as classes dominantes e seus representantes políticos, Gregório Bezerra simbolizava o comunismo vivo. Pela sua ação, o “espectro do comunismo” rondava o Nordeste brasileiro. Temido e diabolizado, deveria ser liquidado. Foi tratado de “traidor da pátria”, “bandido”, “assassino frio e cruel”, “monstro” e “cão raivoso” pelos militares golpistas de 1964 nas ruas e nas prisões do Recife. (Sabe-se que, embora incentivados, os populares nunca o agrediram.) Segundo ele: “O objetivo principal dos gorilas militares […] era desmoralizar-me. Submeteram-me a duras provas, verdadeiramente terríveis; mas, apesar disso, minha moral revolucionária foi ainda mais dura” . Com altivez e coragem políticas, o incansável militante sobreviveu.
Sempre fiel ao programa e às definições partidárias, apesar de reparos aqui e ali (na conjuntura de 1964, “nosso partido não preparou a classe operária e as massas trabalhadoras para enfrentar o golpe”, e também criticou o sectarismo e o dogmatismo de altos dirigentes etc.), Bezerra questionou a luta armada e antigos camaradas que aderiram a ela. Aceitando sua liberação da prisão em 1969 e o asilo político no México, graças a uma corajosa ação de contestação da ditadura militar, não deixou de ressaltar que continuava discordando de “ações isoladas que nada adiantarão para o desenvolvimento do processo revolucionário”.

Viveu quase dez anos na antiga URSS, cuidando das muitas feridas do corpo, mas com o espírito inteiramente voltado para o dia em que retomaria seu “posto ao lado das massas sofridas” de seu país. Sempre foi um homem afetuoso, amável, de rara sensibilidade no relacionamento com todos, uma figura humana que se emocionava com os gestos de amizade e solidariedade próprios do povo simples. Mas, altivo e destemido, “não levava desaforos para casa”. Seu caráter íntegro e firme jamais se curvou aos dominantes e opressores. “Uma força telúrica e social, sempre pronto para todos os sacrifícios e todas as lutas”, como observou Florestan Fernandes. Um guerreiro incansável, que jamais ensarilhou as armas na defesa do povo explorado e oprimido de seu país.

O público leitor brasileiro acaba de ser privilegiado com a reedição de Memórias, agora publicada pela Boitempo Editorial. A nova edição, ampliada e atualizada, é uma justa homenagem ao autor de uma obra magistral, “na qual a memória do autor se confunde com a do povo brasileiro”.

Essa magnífica edição da Boitempo nos brinda com uma apresentação de Anita Prestes e textos de Florestan Fernandes e Eduardo Campos, poemas de Ferreira Gullar e Francisco Julião, uma carta da advogada de Gregório Bezerra e breves depoimentos de personalidades da cultura democrática e de esquerda no Brasil. Acrescido de uma Cronologia e um Indice Onomástico, o livro se completa com dois cadernos de fotos que documentam a trajetória da autêntica saga que foi a vida de Gregório Bezerra.

Serviço:
Título: Memórias
Autor: Gregório Bezerra
Editora: Biotempo
Páginas: 648