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A tesoura tresloucada da censura a livros na ditadura

No subsolo do prédio do Arquivo Nacional, em Brasília, centenas de caixas de papelão catalogadas guardam do­cumentos que sobreviveram à desativação do Departamento de Censura de Diversões Públicas, em 1988. Entre as preciosidades, todas agora disponíveis para consultas, um parecer chama a atenção. No documento datado de 30 de dezembro de 1975, um censor propõe veto ao livro Dez Estórias Imorais, de Aguinaldo Silva.

Por Ana Ferraz, em Carta Capital

Entre os motivos alegados estão “ofensas aos militares em geral, chamando-os de estúpidos”, “aventuras com mulheres depravadas e seu envolvimento homossexual com um capitão de corveta”. Até aí nenhuma surpresa, uma vez que, durante a ditadura, os guardiões da moral e dos bons costumes, assim cingidos pelo poder, nadavam de braçada. O que pode causar estranhamento é a extemporaneidade da medida: a proibição ao livro de contos veio oito anos depois de a obra ter sido lançada.

Esse e outros tantos pareceres, muitos deles inéditos, estão reproduzidos em Repressão e Resistência, Censura a Livros na Ditadura Militar (Edusp/­Fapesp, 184 págs., R$ 78), que acaba de ser lançado pela pesquisadora Sandra Reimão. Para a professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicações da Escola de Comunicações e Artes (ECA), a vontade de trazer à tona a documentação surgiu em razão da falta de uma lista de obras ­censuradas. “Até 1968-1969, a censura a livros se dava de forma totalmente desorganizada. Era uma violência aleatória. Delegados e policiais se davam o direito mais vândalo de invadir livrarias e editoras.
Todo mundo sentia-se no poder de exercer a censura”, diz Sandra.

A partir de 1970, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 1.077/70, a censura passou a seguir determinados critérios e a tarefa de analisar as obras suspeitas recaiu sobre os censores. Entre o material garimpado por Sandra Reimão, encontram-se apostilas de treinamento desses “técnicos”, funcionários federais com formação universitária, que recebiam cursos específicos para cada área a ser avaliada (teatro, cinema, literatura, música). Uma vez graduados, eram considerados aptos a julgar e decidir a produção cultural que o resto do país teria o direito de ver, ler e ouvir.

“No decreto-lei de 1970 ficou claro que, para a direita, não havia como separar a subversão política da comportamental. Tudo era visto como uma coisa só. Para os poderosos da época, a moral e os bons costumes favoreceriam a ordem social”, explica a estudiosa. Sendo assim, cabia aos censores zelar para que a família brasileira não chafurdasse na lama da pornografia e da bandalheira. “Não nos esqueçamos de que parte dos militares entendia a sexualidade como uma possível ferramenta do ‘expansionismo comunista’”, escreve Sandra Reimão no livro ao qual se dedicou de 2004 a 2010, trabalho defendido neste ano como tese de livre-docência.

Imbuído de algum sentimento de indignação diante de livros ou revistas capazes de evocar uma alegada face obscura da sociedade, qualquer cidadão poderia solicitar veto a determinada obra. Entre os brasileiros que fizeram valer esse direito esteve uma senhora, Maria Helena Marques Dip, de São Paulo, que apelou ao ministro da Justiça da época, Armando Falcão. Em sua carta, de 2 de março de 1977, ela, que se situa na condição de “mulher brasileira e mãe”, faz uma “súplica de quem enxerga com evidentíssima nitidez a ­pornografia atentatória da instituição familiar”. A leitora, “aturdida em face do carnaval de imoralidades a que somos, compungidos, obrigados a assistir diariamente”, pede que sejam coibidos os abusos cometidos pelas revistas Manchete e Gente – Fatos e Fotos.

Se acontecia assim diante de revistas como essas, o que dizer em face de livros deliberadamente “suspeitos”, como os títulos Tessa, a Gata e O Prazer de Pecar, entre muitos outros de Cassandra Rios (1932-2002), e De Prostituta a Primeira Dama ou Sexo em Troca de Fama, da não menos famosa e igualmente proibida Adelaide Carraro (1936-1992)? Com capas apelativas e conteúdo “forte”, esses títulos ­tornaram-se campeões­ de vendagem e alvo fácil da censura, que entre 1968 e 1978 proibiu cem títulos. À frente da fila estava ­Cassandra Rios, com 18 livros vetados, seguida por Adelaide Carraro, com 13.

Contemporâneas, ambas viveram como autoras marginais, pois sua temática causava engulhos aos defensores da família brasileira. No caso da paulistana Cassandra Rios, homossexual sem peias numa época em que movimentos LGBT não faziam parte de nenhum repertório, o prazer feminino era sua matéria-prima. Logo em sua estreia, em 1948, com A Volúpia do Pecado, ela dava o tom da obra que viria depois.

Nascida Odete Rios, no bairro de Perdizes, ela virou best seller com enredos explicitados já nas capas, como em As Traças, em que um vestido transparente revela as formas de uma jovem de cabelos claros e olhar sensual. No subtítulo, o epíteto que a consagrou: “A autora mais proibida do Brasil”. Os livros considerados “pervertidos” eram publicados por pequenas editoras, em edições muitas vezes bancadas pela própria autora.

Entre os sucessos que corriam de mão em mão, especialmente entre estudantes adolescentes, que levaram Cassandra Rios a atingir a casa de 300 mil exemplares vendidos em um ano, estão O Prazer de Pecar, A Tara, Carne em Delírio, Nicoletta Ninfeta, Eudemônia, Eu Sou uma Lésbica, Uma Mulher Diferente (história de um travesti). O bem-sucedido A Paranoica transformou-se em Ariella (1980), filme dirigido por ­John Herbert, que revelou a atriz Nicole ­Puzzi. Em 1982, Herbert voltou a dirigir Nicole em outra adaptação de livro da mesma autora, Tessa, a Gata.

A paulista Adelaide Carraro, que não gostava de ser comparada a ­Cassandra Rios, alegava que seus enredos eram essencialmente diferentes, porque políticos. De qualquer forma, o sexo mostrava-se onipresente, como revelam os títulos Asco – Sexo em troca de fama, Os Padres Também Amam, Orgia na TV, A Amante do Deputado, O Travesti, A Adúltera e muitos outros, e por isso Adelaide também jamais saiu da mira da censura.

No caso do escritor Aguinaldo Silva, autor de Fina Estampa, atual novela do horário nobre da Globo, e de dezenas de outras novelas e minisséries, embora a capa de Dez Estórias Imorais sugira conteúdo essencialmente sexual, “o dominante no significado do termo imoral é a imoralidade da pobreza, da exclusão, da falta de perspectiva dos personagens”, esclarece Sandra Reimão.

No parecer do censor que analisou a obra, dos dez contos, dois merecem veto por conter “matéria imprópria”. Num deles, intitulado Um Homem, Sua Maldade, e a Marinha Nacional, o documento destaca que a história do marinheiro narrada pelo autor traz “suas aventuras com mulheres depravadas e seu envolvimento homossexual com um capitão de corveta, inclusive citando o nome do navio em que serviu, Baependi”. Em Proclamação Final, o personagem “ofende a Igreja com críticas mordazes e indecentes sobre monges e padres, assim como ao tomar a hóstia lhe deu enjoo, sendo obrigado a vomitar. Além do mais, ofensa aos militares em geral, chamando-os de estúpidos”.

Escritor de grandes sucessos para a tevê, o autor pernambucano de 67 anos exerceu o jornalismo entre as décadas de 1960 e 1970, quando cobriu a área de polícia para O Globo, colaborou com os jornais Movimento e Opinião, ambos de resistência à ditadura, e fundou com amigos o jornal O Lampião da Esquina, voltado à defesa dos interesses das minorias, especialmente homossexuais­.

O periódico que de 1978 a 1981 deu voz a um grupo até então sem representação levou Aguinaldo Silva a responder, em 1979, a processo baseado na Lei de Segurança Nacional. O episódio reavivou no autor uma densa atmosfera de medo, vivenciada dez anos antes, quando o então jornalista que assumira havia apenas cinco dias uma vaga de “copidesque” (redator) no jornal O Globo fez uma travessia de barca da Baía de Guanabara que lhe pareceu interminável, rumo a um inferno conhecido como Ilha das Flores.

O episódio de 1969 deveu-se a um prefácio de Silva para o livro Diário, de Che Guevara, intitulado A Guerrilha Não Acabou, que o levou a amargar 70 dias de prisão na mal-afamada ilha que serviu como presídio e centro de tortura da Marinha, 45 dos quais incomunicável. No interrogatório que precedeu o encarceramento, realizado em um porão do Ministério da Marinha, três homens insistiram em saber o motivo do título da tal introdução. “O senhor diz aqui que a guerrilha não acabou. Baseado em quais informações pode afirmar uma coisa dessas? O que o senhor sabe sobre a guerrilha que nós ainda não sabemos?”, relembra o autor no autobiográfico Lábios Que Beijei (Siciliano, 1992). Silva bem que tentou se explicar, mas ouviu que seria preso e processado “por ter escrito esse monte de merda”.

Posteriormente, o escritor teve dois de seus 13 livros traduzidos e publicados na série Noire da prestigiada editora francesa Gallimard (República dos Assassinos, de 1976, e O Homem Que Comprou o Rio, de 1986) e se consolidou como autor de sucesso.

“Fica claro que no caso de Aguinaldo Silva quem estava sendo censurado era o jornalista, por suas ações políticas e antidiscriminatórias”, analisa Sandra Reimão, referindo-se tanto ao episódio da prisão quanto ao da proibição a Dez Estórias Imorais. “O motivo real foi a homofobia.”

Após passar 45 dias e 45 noites se perguntando por quê estava totalmente isolado no presídio insular, como se fosse o mais perigoso dos revolucionários, Aguinaldo Silva concluiu: “Estava incomunicável não porque fosse autor de um perigoso e subversivo texto, mas porque era homossexual”. Foi ali que ele viu chegar aquela que classificou de “a mais sinistra de todas as décadas, a de 1970”.