Osvaldo Martinez: Três anos de crise econômica global
No final do ano pasado, o economista cubano Osvaldo Martinez fez uma conferência no Centro de Investigações da Economía Mundial, do qual é diretor, sobre o tema da crise em que há mais de três anos está mergulhado o sistema capitalista global. Martinez, que é também presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Parlamento cubano, mostra os impasses da crise atual. O Portal Vermelho publica a íntegra de sua intervenção.
Publicado 07/01/2012 20:07
Mal-estar em Harvard
Antes de abordar a crise, eu quisera começar com um comentário que pode ser interessante porque dá a ideia da temperatura político-ideológica, inclusive acadêmica, que está sendo atingida nesta crise. Alguns de vocês provavelmente o saibam, isto foi pouco divulgado porque é uma dessas notícias desagradáveis para o monopólio midiático. No dia 2 de novembro um grupo de estudantes se retirou em bloco da Cátedra de Introdução à Economia da Universidade de Harvard em protesto pelo conteúdo e enfoque a partir do qual se ensina esta matéria. Vocês sabiam disto? A maioria não, alguns sim. O destinatário direto deste protesto foi o professor Gregory Mankiw, ex- assessor de Bush e autor de um dos manuais de macroeconomia mais usados, um livro sumamente popular no universo neoclássico. Os alunos entregaram uma carta explicando as razões, que podem ser sintetizadas assim:
Indignação pelo vazio intelectual e a corrupção moral de grande parte do mundo acadêmico, cúmplice por ação e omissão, na atual crise econômica; vou citar alguns parágrafos dessa carta que os estudantes entregaram ao professor Gregory Mankiw como explicação das razões pelas quais se retiraram em bloco da sala de aula:
“Hoje estamos abandonando sua aula a fim de expressar nosso descontentamento com a tendencia inerente a este curso. Um estudo acadêmico legítimo da economia deve incluir uma discussão crítica das vantagens e dos defeitos dos diferentes modelos econômicos. À medida que sua aula não inclui as fontes primárias e raras vezes se conta com artigos em revistas acadêmicas, temos muito pouco acesso a abordagens econômicas alternativas; não há nenhuma justificação para a apresentação das teorias econômicas de Adam Smith como algo mais fundamental ou básico do que por exemplo a teoria keynesiana. Estamos retirando-nos de sua aula neste dia, tanto para protestar pela falta de discussão da teoria econômica básica, como para dar nosso apoio a um movimento que está mudando o discurso estadunidense sobre a injustiça econômica: Ocupar Wall Street. Profesor Mankiw, pedimos-lhe que leve a sério nossas inquietações e nossa retirada de sua aula”.
Isto não ocurreu em qualquer universidade, mas na Universidade de superelite que forma a elite empresarial e política norte-americana que é a Universidad de Harvard. Isto dá uma ideia de até que ponto, inclusive entre estudantes de elite – porque a Harvard não vão estudantes pobres, salvo exceções – está calando este fenômeno da crise econômica. E certamente, o abismo entre o que se ensina nessas universidades nos cursos de Economia predominantes e o que na realidade está ocorrendo.
Crise, palavra antiga
Para iniciar estes três anos de percurso da crise econômica global gostaria de começar com algumas informações de caráter histórico que estão em torno do próprio conceito de de crise; algumas delas demontram o quão distante está do tema a teoria econômica neoclássica imperante. Em 1973 o prêmio Nobel de Economia, muito famoso entre nós, Paul Samuelson, autor de um livro muito divulgado no mundo inteiro escevia:
“O Birô Nacional de Pesquisas Econômicas trabalhou tão bem que de fato eliminou uma de suas tarefas principais, as flutuaçõess cíclicas” e agregava: “Graças ao emprego apropriado de políticas monetárias e fiscais, nosso sistema de economia mista pode evitar os excessos dos booms e das depressões e desenvolver um crescimento econômico sadio e sustentado”.
Era o momento em que se considerava que as crises estavam absolutamente domesticadas e não havia por que temê-las.
Na história do Ocidente o termo crise remonta à Grécia Antiga, usado por Tucídides em A Guerra do Peloponeso e o utilizava no sentido de chamar de crise o momento de decisão de uma batalha militar. Posteriormente, este termo crise começou a ser usado também na Grécia Antiga na medicina. Hipócrates o utilizou na medicina e no campo da medicina permaneceu durante séculos, até que em finais do século 18, na Europa, começou-se a aplicá-lo aos acontecimentos sociais. Já na economia clássica burguesa o conceito de crise começa a ser debatido, não tanto em Adam Smith que escreve em finais do século 18, em momentos de relativa imaturidade da economia capitalista. Entre outras coisas seu conhecido “Dogma de Smith” o impediu, – unido à imaturidade do próprio capitalismo -, de avançar muito no estudo das crises.
Em David Ricardo já o tema das crises está mais elaborado, embora em toda a economia não marxista do século 19 haja um peso muito forte daquele dogma de Say, aquele de que “toda oferta cria sua própria demanda”, a partir do qual era impossível a ocorrência de uma crise econômica. Marx, seguramente, é o grande economista que, pela primeira vez, apresenta uma teoria mais profunda e coerente sobre o tema das crises e é a partir de que ele detecta a primeira crise na economia inglesa em 1825, que estatisticamente estas começam a ser registradas, e a partir de então podemos começar a falar de uma história das crises econômicas capitalistas.
O termo crise econômica, ou crise, em geral, tem sido tão usado que confunde, se converteu em uma espécie de curinga que serve para qualquer coisa. Em Economia é comum chamar de crise a fase descendente do ciclo e há certamente muitas variantes de crises econômicas: financeiras, agrárias, comerciais, de superprodução, de subconsumo etc., mas toda crise não é somente econômica, envolve também os aspectos político, cultural etc.
Um elemento interessante sobre isto é que em 1870, Friedrich Engels disse que as crises que até aquele momento vinham sendo observadas na economia inglesa, com períodos aproximados de dez anos entre uma e outra, já seriam coisa do passado e Engels disse o seguente: “A supressão do monopólio inglês sobre o mercado mundial e os novos meios de comunicação – sublinho isto – e os novos meios de comunicação (dito por Engels em 1870), têm contribuído para liquidar os ciclos decenais da crise industrial” e prognosticava um encurtamento do ciclo até chegar a uma espécie de “crise crônica”, que ele chamou uma “supercrise”, provavelmente acompanhada por guerras, e isto, de certo modo, é uma espécie de antecipação do desastre de 1914 a 1918: guerra mundial, crise econômica acompanhando a guerra mundial. Ele disse isso em 1870, e chama a atenção como, em referência às crises, sublinha os “novos meios de comunicação”, que naquela época eram o telégrafo e a navegação a vapor.
Lições importantes
Entrando na situação atual da crise, no começo eu dizia que não vou entrar na sua etiologia dela e o desenvolvimento que teve, começando pela crise imobiliária nos Estados Unidos etc.
O que vou apresentar são algumas conclusões que, creio, podem ser extraídas de três anos de crise.
Vou apresentar uma a uma, comentando-as, não há necesariamente um encadeamento lógico, ou seja, uma conclusão não é consequência da anterior, mas vou apresentando-as aleatoriamente. Primeiro, uma coisa óbvia que sempre é necessário repetir: a crise atual é a mais grave, profunda e abrangente, desde 1929, e é diferente de qualquer outra, embora seu DNA seja o de uma crise capitalista, tipificada pela economia marxista. Esta não é uma crise norte-americana estendida ao resto do mundo como às vezes se apresenta, mas é uma crise global com centro nos Estados Unidos, o que não é a mesma coisa.
Ela tem provocado comentários de personalidades muito conhecidas do sistema. Fazendo uma seleção de algumas, Paul Volcker, desde muito cedo, na eclosão da crise, chamou a atenção de que esta era muito mais complicada do que a de 1929. Brzezinsky chamou a atenção, também desde muito cedo, estando de acordo com que esta crise é mais complicada que a de 1929 e falando do perigo de conflitos sociais que podiam tornar-se violentos. Hoje começa a cumprir-se em certo grau essa expressão de Brzezinsky, depois vamos falar um pouco da reação social provocada pela crise.
E dois conhecidos economistas dos mais publicitados, Stiglitz e Roubini, têm feito em diferentes termos, com diferentes matizes, exumações de Karl Marx, reconhecendo que no tema da crise, Karl Marx tinha feito uma análise meritória, seguramente não aderindo ao marxismo, mas reconhecendo que Marx tinha coisas importantes a dizer sobre isto e no mesmo tom com o movimento de certo retorno à leitura de Marx, que tinha ficado empoeirado nas prateleiras das livrarias.
Esta crise está revelando ademais um elemento novo no sistema que é o que podemos chamar uma falência múltipla de órgãos, falência da economia mas também da energia, do setor de alimentação e do meio ambiente, ou por outra, não a falencia, mas revela-se um dano profundo ao meio ambiente. Tudo isso unido pela primeira vez em uma crise, grande crise econômica, crise energética, crise alimentar, crise ecológica. Será isto talvez o cumprimento de certas teorias sobre o chamado capitalismo senil que o economista argentino Jorge Beinstein vem sustentando?
Capitalismo senil
Ele fala de quatro traços de senilidade do sistema, entendendo por capitalismo senil não um capitalismo que vai morrer amanhã, mas um capitalismo que em sua senilidade pode durar mais um século, porém com as características de vida de um organismo senil. Então, ele destaca quatro traços que me parecem interessantes:
a) Um primeiro traço, uma tendência a longo prazo à desaceleração do crescimento econômico mundial, comprovável estatisticamente.
b) Um segundo traço é a hipertrofia financeira global que se tornou hegemônica a tal extremo que essa hipertrofia financeira domina a totalidade do sistema mundial ou, em outras palavras, a financeirização manda hoje sobre a economia produtiva.
c) Um terceiro elemento que ele assinala são os rendimentos produtivos decrescentes da revolução tecnológica, que se vai convertendo mais em fator destruidor de forças produtivas do que criador ou fator de desenvolvimento das forças produtivas, e coloca um exemplo muito claro: a dupla da informática com a financeirização, a informática a serviço da financeirização que se converte em um fator destruidor de empregos e de forças produtivas, contribuindo para alimentar bolhas financeiras que explodem e causam destruição de forças produtivas.
d) E um quarto fator é a decadência do Estado burguês, o que é algo que me parece também visível: deterioração institucional nos Estados Unidos. Neste momento, crise dos Estados europeus.
Depois de trinta e oito meses de crise, passando a outra conclusão, não há recuperação à vista, as perspectivas para 2012 são, me atreveria a dizer, sombrias. Alguns economistas como Roubini, que se tornou famoso por prognosticar a ocorrência da crise em 2008, consideram que há 50% de possibilidades para que em 2012 ocorra outro mergulho de crise similar, ou mais grave, do que a de 2008. Nestes momentos predominam os elementos de destruição sobre os de criação.
O Estado a serviço dos financistas
Outra conclusão é que nunca antes na história do sistema se havia produzido uma resposta estatal tão rápida e abundante em desembolsos com resultados nulos. Refiro-me aos pacotes de resgate que se puseram em prática pelo governo de Bush, pelo de Obama, pela Europa, pelo Japão. Estes resgates tiveram uma característica dual: por uma parte, eles provavelmente evitaram uma queda ainda mais profunda, mas este elemento positivo para o sistema tem outra cara muito feia porque mantiveram uma estrutura especulativa parasitária, o que fizeram foi aguçá-la; deram respiração artificial com vida limitada, ou seja, quando estes pacotes de resgate se acabam, essa respiração artificial se acaba também; criaram uma nova bolha financeira que é a bolha do resgate e aumentaram o sobre-endividamento público que hoje está pesando como um fardo sobre os Estados Unidos e a Europa; ou seja, os pacotes de resgate têm sido como um remédio que a curto prazo evitou um agravamento do paciente, mas que tem um efeito colateral muito negativo.
Ilusões social-democratas
Outro elemento que quero assinalar: às vezes escutamos, lemos, que a solução da crise, que a solução para o capitalismo, está em abandonar o vício da hipertrofia financeira e voltar ao bom capitalismo, ou seja, o capitalismo produtivo, o capitalismo empresarial, o capitalismo da economia real, e isto constitui um dos grandes temas social-democratas, o retorno a um capitalismo bom que era o capitalismo produtivo.
Refletinndo sobre isto, tenho a opinão de que não é um problema de preferências, quer dizer, não é voltar àquele, abandonando este como se fossem modelos que pudessem ser adotados de acordo com as conveniências. Parece-me que o sistema não pode voltar ao capitalismo produtivo e à cultura produtiva e isto se baseia em que as estatísticas demonstram que ao menos 50 % dos lucros que as grandes empresas, as mega-empresas obtêm nos Estados Unidos e na Europa provêm dos negócios financeiros.
Não se trata de dois mundos, um mundo financeiro e o mundo da economia real; trata-se de um todo integrado, um sistema produtivo financeiro integrado no interior das mesmas mega-empresas; não se trata, repito, de dois mundos, o mundo da economia real e o mundo da economia financeira; e esse sistema integrado está tão profundamente arraigado e em torno de interesses econômicos tão fortes, que pensar que se possa separar um do outro é simplesmente uma utopia.
Creio que o fracasso de Obama e de toda a Europa e do Japão em avançar na regulamentação financeira não é só o resultado da pusilanimidade de Obama, embora isso também esteja presente, mas do impossível que é fazer com que a oligarquia financeira ampute uma de suas próprias pernas. O fato de que não se avança na regulamentação financeira não é um problema de liderança política, é um problema de que as mega- empresas estão tão integradas nos aspectos produtivo e financeiro que é impossível pensar que elas vão amputar uma de suas pernas, tendo em conta talvez um interesse, uma visão superior da sobrevivencia do sistema e da saúde do sistema; isso me parece que é impossível, e por isso me parecem utópicas estas afirmações de voltar ao bom capitalismo, ao capitalismo não de George Soros mas de Henry Ford.
Outra conclusão sobre a política econômica é que o neoliberalismo fracassou, o que não é nenhuma notícia surpreendente, mas está vivo, e continua com toda a força, e com tanta força que foi capaz de envolver as tímidas medidas keynesianas, de tal maneira que conseguiu manter a liberalização financeira, nada menos que alimentando-a com o gasto público, ou seja, tomando algo do keynesianismo – o gasto público – e convertendo-o em um instrumento a serviço da liberalização financeira; tudo isso, em meio a um discurso de crítica à desregulamentação financeira.
Até esse ponto a oligarquia financeira demonstrou ductilidade e capacidade de manobra. E se impôs mais recentemente: a política neoliberal pura e dura, quer dizer, a do equilíbrio fiscal e o ajuste recessivo, no caso europeu, como suposta fórmula anticrise. Isto nos leva a uma pergunta em termos de política económica, a é de que talvez se encerrou para sempre o ciclo keynesiano, ou seja, as possibilidades de fazer keynesianismo de verdade, não o keynesianismo de mentirinha, que foi praticado por Obama, que foi de gasto público mas sem a verdadeira regulamentação financeira e na realidade, gasto público a serviço da sustentação das grandes entidades financeiras especulativas.
Então, se fechou a possibilidade da política keynesiana. O peso e o poder dessa oligarquia financeira completamente integrada nos aspectos produtivo e financeiro, chegou a um tal grau que hoje o sistema não pode fazer o que fez na década de 1930, quando esta financeirização era muito menor do que agora; e naquele momento pôde fazê-lo, ajudada também pela guerra mundial, mas acaso o ciclo keynesiano se fechou para sempre? Keynes ficou como um elemento de referência acadêmica e política para certa época? Creio que se disséssemos isso a Krugman ele nos contestaria irritado que não, que o keynesianismo tem toda a razão de ser e ele continua certamente apegado ao keynesianismo essencial, mas se uma crise de tal profundidade como esta, na qual os temores de Keynes de que a economia de cassino engoliria toda a economia e converteria o sistema capitalista em um sistema de apostas financeiras, se esses temores de Keynes estão transformados em realidade, já não são temores teóricos, mas a própria realidade; e 38 meses de crise não foram capazes de produzir uma volta ao keynesianismo. Na realidade, o que temos visto é uma utilização de certas fórmulas keynesianas mas sempre dentro de uma matriz de conservação da financerização.
Então, uma conclusão a mais que me parece muito importante é de que a situação agora é muito diferente da de 2008, a de setembro de 2008 quando estalou a crise. Naquele momento, os Estados, os governos capitalistas tinham um arsenal de medidas anticrise que podiam ao menos teoricamente ser aplicado. A crise eclode, é forte, mas temos com o que enfrentá-la, temos um arsenal de medidas anticrise. Esse arsenal foi totalmente aplicado ao longo destes três anos, de tal maneira que já não fica nada e se esgotaram todos os recursos do arsenal anticrise.
Quais recursos? Reduções das taxas de juros, que permaneceram até em níveis praticamente zero durante longos períodos e assim continuam e não há reanimação; redução de impostos, Bush a fez em grande escala, seguramente, uma redução de impostos que favoreceu os setores mais ricos, supondo que estes setores mais ricos iam investir estimulados pela redução de impostos, mas não houve tal investimento; outra medida, injeções de liquidez, maciças, o “quantitave easing” de Obama, 600 bilhões de dólares injetados, e a economia norte-americana não parece nem se dar conta; e, certamente o que já mencionei anteriormente, os pacotes de resgate postos maciçamente em funcionamento pelos Estados Unidos, pela Europa, pelo Japão. Parece que não resta nada a provar, exceto uma volta à regulação estatal pura e dura, ou seja, o keynesianismo de verdade, que é o de que eu duvido muito que seja possível para além de elucubrações teóricas.
Custo social
Umas palavras sobre outro elemento que é o custo social da crise. A crise cobrou um custo social: mais 300 milhões de pobres, aproximadamente 170 milhões de famintos a mais que antes da eclosão da crise, mais 30 milhões de desempregados; contudo, até há apenas uns meses, a reação social diante da crise tinha sido mais de direita que de esquerda, era muito mais significativa a insurgência de movimentos como o Tea Party nos Estados Unidos ou na Europa de grupos fascistoides de extrema direita, racistas, xenófobos, do que de um movimento desde a esquerda, de protesto social diante da crise.
Nos últimos meses mudou o quadro, apareceram os Indignados, o movimiento Ocupar Wall Street e na Europa igualmente se animou o protesto social. Nisto, é impossível fazer vaticínios mas dá a impressão de que começa a mover-se um movimento de protesto social que pode tornar-se muito importante. Isto adquiriu importância nos anos 1930, foi um dos fatores que motivou mudanças de política econômica naquela época, especialmente nos Estados Unidos, no governo de Roosevelt.
É impossível dizer até onde isto vai chegar mas este movimento de Ocupar Wall Street, que é o protesto contra os grandes símbolos do sistema, pode ser um elemento muito importante politicamente, se esse movimento for capaz de gerar metas concretas, de produzir certo nível de organização, de dotar-se de uma liderança, ou do contrário corre o risco de ser absorvido e ficar como algo folclórico, mas é por aí que se começa. E o fato de que tenham aparecido os Indignados até em Israel é um elemento, sem dúvida alguma, a ter em conta.
Outro ponto que quero acrescentar é que nesta crise ocorreu um elemento novo: a especulação se apossou não somente dos clássicos lugares ou terrenos nos quais sempre tinha operado, ou seja, os mercados financeiros, mas se apossou também dos mercados de alimentos e matérias primas, especialmente dos alimentos, e produzindo uma alta de preços dos alimentos, parece- me que a especulação se conectou com algo assim como uma caldeira social perigosa para o sistema, que pudesse ter uma ligação muito grande com os indignados, indignar mais os indignados e indignar não somente os de Wall Street, mas grandes massas de pessoas em todo o mundo.
Os acontecimento no Egito e na Tunísia estiveram muito ligados com a alta de preços dos alimentos e agora no Egito estamos vendo como o que aparentemente tinha sido a capacidade do sistema para absorver esse movimento de rebelião e domesticá-lo, agora não está domesticado e voltaram a surgir os manifestantes e estão pedindo mais e não se contentam com a solução de mercúrio cromo que tinham dado. O sistema tomou a especulação com os preços dos alimentos como uma de suas válvulas para manter a taxa de lucros, mas ao fazê-lo está jogando com algo que é muito mais perigoso do que jogar na especulação com bônus ou com taxas de câmbio, ou com derivados financeiros dos muitos que existem. Está jogando com os preços dos alimentos, está jogando com a fome das pessoas e por isso me parece que estamos em presença de uma caldeira social que pode atingir uma temperatura muito perigosa para o sistema.
Hoje, no final de 2011, se observam na economia mundial certas coisas peculiares, chamativas, trata-se de que a crise já tem, como dizia, 38 meses de evolução e está em um momento de auge, mas os lucros capitalistas não diminuíram, estão aí o aumento dos lucros, a bolha financeira não diminuiu, apesar da destruição de certa parte dela, destruiu-se uma parte mas se criou outra parte, a bolha não diminuiu, inclusive aumentou, alimentada pelos resgates, os pacotes de resgate, que criaram a bolha do resgate, alimentada pela redução de impostos, inclusive alimentada também pelos empréstimos da reserva federal; e, por último, se observa que continua crescendo a desigualdade social; nos Estados Unidos é uma tendência sustentada que continua crescendo.
Perspectivas sombrias
Quais seriam as perspectivas para o ano de 2012? As perspectivas são um possível agravamento da crise, mas o que não se vê em nenhum lugar é uma recuperação da crise em 2012. Se tomamos os grandes centros de poder econômico do mundo, os Estados Unidos, o crescimento deste ano nos Estados Unidos deve estar provavelmente entre 1% e 1,5%, não mais que isso, quer dizer, um crescimento virtualmente próximo do estancamento, o desemprego se mantém em torno de 9%, a inflação continua aumentando, os preços das casas no setor imobiliário continuam caindo e o investimento não aumenta. Esta é a situação da economia norte-americana para 2012.
Na Europa estão em uma situação grave na qual já não se trata do com,bate a uma crise econômica, se trata de salvar a União Europeia e salvar o euro, que hoje estão quebrando.
Sobre o Japão, as perspectivas de sua economia, vítima de um estancamento quase crônico que já vem de longa data, não são de recuperação em 2012.
Quanto à China, com suas enormes taxas de crescimento obtidas durante longos anos, as próprias autoridades chinesas estão apresentando a necessidade de uma certa desaceleração do crescimento em 2012, desaceleração que seria crescer a sete e meio, ou oito por cento talvez, ou seja, com um enorme crescimento mas não de 10 por cento e isto as próprias autoridades chinesas estão apresentando esse quadro como uma necessidade para evitar o superaquecimento da economia, ou seja, para tratar de conter certa tendência inflacionária que se está manifestando, estimulada por taxas de crescimento muito altas com alimentos importados muito caros, e com petróleo importado muito caro, certa bolha no setor imobiliário que se está observando, e um grau de incerteza sobre o ano de 2012 com respeito às exportações para os Estados Unidos e a Europa, que são os grandes mercados das exportações chinesas.
Há uma grande incerteza acerca de quanto a crise vai aprofundar-se nos Estados Unidos e na Europa e certamente isso significa quanto vai diminuir a exportação chinesa para esses mercados. Na China não vai ocorrer uma crise em 2012, mas o crescimento vai desacelerar em certa medida, o que se vai somar aos problemas centrais na economia dos Estados Unidos, da Europa e do Japão.
Impactos na América Latina
Não é possível omitir a relação da América Latina com a crise econômica global porque é uma relação muito peculiar. A América Latina vive em uma situação atípica no contexto desta crise global destes três anos de percurso e enquanto há uma profunda crise nos grandes centros capitalistas, a América Latina vive uma relativa bonança econômica, certamente bonança econômica dentro do subdesenvolvimento, dentro da dependência, mas bonança econômica em termos de taxas de crescimento.
A América Latina em 2010 cresceu muito próximo dos seis por cento como média regional. Em 2011 deve ter crescido em torno de cinco por cento, que continua sendo uma taxa muito alta. Em 2009 a América Latina recebeu o impacto da crise, houve crescimento negativo de 1, 2 % em 2009, mas em 2010 e 2011 o quadro mudou radicalmente. A América Latina entre 2009 e 2011 teve uma melhora de 13 % da relação de termos de troca. Então na América Latina o quadro é de relativa bonança econômica, relação de termos de troca favorável, altos preços das exportações de commodities e apesar disso os Estados Unidos e a Europa, seus dois grandes centros de referência, estão em plena crise econômica. Então, isto é aparentemente desconcertante, se temos em conta a lógica e a história. A lógica diz que em áreas dependentes, subdesenvolvidas, a crise impacta com mais força ainda que nos centros do capitalismo, e historicamente tem sido assim, nos anos 1930, a crise dos anos 1930 impactou na América Latina com uma força multiplicada; aqui temos falado disso anteriormente, em Cuba foi a crise econômica que acompanhou o regime ditatorial de Machado: açúcar a menos de um centavo a libra, fome generalizada na população cubana, e isso se repetiu na América Latina, a queda dos preços das exportações, de quase as mesmas commodities que estão exportando hoje porque não houve uma mudança estrutural nessas exportações, as mesmas dos anos 1930 são em boa medida quase as mesmas de hoje, embora hoje os preços estejam altos.
Que explicação isto tem e que conclusões se poderiam extrair? Há duas explicações, são as explicações que mantêm altos os preços das commodities na América Latina. E essas razões são em primeiro lugar a especulação. O capital especulativo tomou os alimentos e as matérias primas como objetos de especulação que não o foram em etapas anteriores, especulando na alta e entrando nesta especulação centenas de bilhões de dólares; vi algumas informações que falam de 600 bilhões de dólares que nos últimos quatro, cinco anos entraram na especulação com commodities, especulando na alta e contribuem para aumentar os preços da soja, do cobre, do café, da madeira, do açúcar, enfim, uma variedade de alimentos, de matérias primas. Este é um fator.
O segundo fator é a demanda chinesa. A China em 1990 consumia 5 % dos produtos básicos, das commodities que se comercializavam no mundo. Hoje a China é o principal exportador mundial de alumínio, cobre, estanho, soja, cereais, e é o segundo consumidor mundial de petróleo e de açúcar, entre outras coisas. A China, e este dado é muito eloquente, no ano 2000 ocupava o 16º lugar entre os parceiros comerciais da América Latina. Hoje ocupa o segundo lugar e cresce com mais velocidade do que todos os demais. Portanto, a China irrompeu como um mercado comprador de tremenda importância para a América Latina, hoje é o principal parceiro comercial da Argentina, um dos principais parceiros do Peru, do Chile, do Brasil e assim sucessivamente. Então, a demanda chinesa tem sido um fator que tem contribuído para manter as exportações latino-americanas, para manter altos os preços, o que tem atuado como um anteparo da crise. Em certa medida, o que a América Latina deixou de exportar aos Estados Unidos e Europa tem compensado com as exportações para a China e com as exportações de altos preços.
Isto é resultado de uma concertação latino-americana? Não. Em absoluto. Isto começa a provocar uma justificação, uma certa racionalização teórica, começa a falar-se da possibilidade de um ciclo longo de 20 anos, a possibilidade de 20 anos de altos preços das commodities; a Cepal apresenta como uma possibilidade, mas já introduz o conceito. Outros convertem a necessidade em virtude e falam que isto é o resultado da previdência latino-americana, de que a América Latina saneou suas economias, que tem altas reservas monetárias, tem a inflação controlada, e este é o resultado, que a América Latina está recolhendo os frutos de sua boa política econômica anterior. Na realidade, nem a ação especulativa do grande capital financeiro em commodities, nem a demanda chinesa têm nada a ver com uma concertação latino-americana, nem com nenhuma previdência latino-americana, quase poderíamos dizer que são coisas que caíram como uma luva para a América Latina, em meio aos azares da crise mundial.
Esta bonança tem duas características: a primeira é sua fugacidade. A fugacidade tem a ver com o fato de que a ação especulativa em commodities é algo que está muito longe de ser um fator estável, em que se possa confiar como uma tendência a longo prazo. Este capital especulativo tão volátil pode girar para qualquer outro nicho de especulação e deixar a América Latina pendurada na brocha e, eliminando esse fator, as commodities voltariam a fazer o que durante séculos fizeram que é descer ladeirta abaixo.
A demanda chinesa tampouco é um fator que se possa considerar eterno. Já se assinalou que a China logicamente vai avançando para um desenvolvimento tecnológico que vai reduzir seu consumo relativo de matérias primas, vai tratar de depender cada vez mais de sua capacidade interna de produção, pelo que as importações da América Latina podem ir diminuindo com o tempo. Não se pode pensar que a China vai eternamente continuar importando estas quantidades de soja, e há ademais outro importante fator, outro importante custo que isto tem, que faz parte hoje de um grande debate latino-americano, que é a chamada reprimarização da economia latino-americana. Nos últimos anos se produziu um retrocesso na estrutura de exportações latino-americanas, rumo a uma reprimarização, ou seja, a América Latina está vendendo à China feijão de soja, minério de ferro, cobre, em boa medida sem refinar, um conjunto de produtos básicos, de produtos primários, a alto preço, mas produtos que significam uma consolidação desse padrão de exportação primária.
A ideia que quero destacar é que esta bonança latino-americana está sustentada com pinças muito fracas: a especulação em commodities, que provoca altos preços, é instável e a demanda chinesa devem ser aproveitadas para avançar em uma transformação da estrutura de exportação e em um maior conteúdo tecnológico e de conhecimento das exportações latino-americanas e evitar que se convertam em um fator de consolidação da estrutura primária, inclusive voltando atrás do que a América Latina estava há dez anos.
Também na América Latina o neoliberalismo fracassou. Tanto fracassou que se produziu na região uma reação antineoliberal e uma busca de alternativas ao neoliberalismo, em associação com os movimentos sociais. Contudo, o neoliberalismo perdura na região. Conta com algo que não tem nenhuma outra proposta de política econômica, tem uma proposta integral, uma proposta completa, abrangente, tem uma estrutura internacional nos aspectos comercial e financiero; tem uma rede de Tratados de Livre Comércio. Na América Latina há mais de dez Tratados de Livre Comércio vigentes com os Estados Unidos e com a Europa; e conta com algo tão importante como é o domínio midiático.
Hoje na América Latina um dos grandes debates é sobre as alternativas ao neoliberalismo, alternativas que podemos perguntar-nos se estão dentro ou fora do capitalismo. As respostas são de uma gama variadíssima, desde as propostas de um chamado capitalismo nacional que é o caso da Argentina, capitalismo nacional, e ver se tal coisa é possível na era da globalização atual, um pouco uma volta a certos ares peronistas de há sessenta anos, até o caso do Brasil, uma potência emergente, com um neoliberalismo mitigado; o fato de que Lula terminou seu governo com 80% de aprovação é um éxito político importante mas isso significa também algo muito peculiar, significa que Lula é aplaudido tanto pelos pobres como pelos ricos.
É o idílio socialdemocrata, de que a luta de classes cessou e de que Lula conseguiu esse resultado. Tampouco é muito difícil dar-se conta do que ocorreu em termos essenciais, incluindo uma política exterior independente, praticada pelo governo de Lula, muito positiva. Mas ali se deu uma combinação peculiar, as estruturas neoliberais fundamentais não foram tocadas, a política econômica foi neoliberal durante todo o tempo, inclusive os protagonistas pessoais foram essencialmente os mesmos da política anterior, no Banco Central e no Ministério da Fazenda. Nem sequer a reforma agrária foi feita, mas houve uma receita de exportações elevada , devido ao alto preço das commodities que permitiu à burguesia fazer excelentes negócios, mas também permitiu que várias dezenas de milhões de brasileiros saíssem da extrema pobreza, pelos programas Bolsa Família, Fome Zero; pessoas que não comiam começaram ao menos a comer algo e essas pessoas são partidárias entusiastas do governo que lhes deu de comer pela primeira vez, e isto é algo que tem muito a ver com esta conjuntura peculiar da América Latina.
Integração latino-americana
Para terminar, duas palavras sobre o que me parece ser uma oportunidade especial para a integração latino-americana. A integração latino-americana tem hoje talvez uma conjuntura especialmente favorável para avançar de verdade e é, em poucas palavras, que os Estados Unidos e a Europa estão tão enredados em sua própria crise que nenhum está em condições de propor à América Latina um plano sedutor de associação que arraste como tantas outras vezes os latino-americanos em perseguição de uma associação idílica com os Estados Unidos e a Europa.
Hoje os Estados Unidos não estão em condições de propor à América Latina nada como uma Aliança para o Progresso e nem sequer uma Alca. Hoje, os Estados Unidos, absorvidos por sua própria crise, só podem propor à América Latina mais do mesmo, TLC´s exclusivamente; e isso a América Latina conhece perfeitamente bem, sabe no que dá, não constitui nenhuma novidade.
A Europa tem para a América Latina uma grandiloquente proposta de Associação Estratégica Bi-regional, que não é mais do que uma rede de Tratados de Livre Comércio, mas hoje na Europa ninguém presta a menor atenção a isso, a Europa está demasiado metida em sua crise, tratando de salvar a União Europeia e o euro, não pode propor uma associação estratégica com a América Latina.
Isso significa que os latino-americanos têm a possibilidade de avançar em sua integração sem o peso de ter que combater contra propostas de integração provenientes dos Estados Unidos e da Europa como tradicionalmente a integração latino-americana teve que fazer, ou seja, se dá a possibilidade de pensar a integração pelos próprios latino-americanos.
Que se faça ou não depende de muitíssimos fatores, mas se a América Latina utilizar esta bonança econômica relativa – que ninguém sabe até quando vai durar, mas ao menos em 2012 quiçá continue – e avançar em termos substantivos na integração aproveitando esta conjuntura, estaria muito bem.
Não se trata, como alguém me perguntou uma vez, de aproveitar que agora os norte-americanos e os europeu estão distraídos, pois não é que estejam distraídos, não é aproveitar que eles não estão olhando para então fazer nossa integração, eles estão muito atentos, o problema é que não podem fazer outra coisa. Então, aproveitar esta bonança, esta “distração” dos Estados Unidos e da Europa para avançar.
Um rumo positivo é sem dúvida a criação da Celac, o primeiro organismo econômico-político latino-americano, que reúne todos os latino-americanos e caribenhos, sem a presença dos Estados Unidos, nem qualquer outro país de fora da região.
Fonte: Cubadebate
Tradução da redação do Vermelho