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Crônica da casa assassinada, um romance regionalista sem história

Crônica da Casa Assassinada (1959), é um implacável exame da alma da oligarquia latifundiária decadente – não contra Minas Gerais, como quer o autor, mas contra a tacanha “tradicional família mineira”. O romance coroa a obra de Lúcio Cardoso, inaugurada com Maleita (1934), e coloca seu autor entre os nomes notáveis da literatura . Nascido em 14 de agosto de 1912, este ano marcará seu centenário, sendo uma boa ocasião para a merecida lembrança de sua obra.

Por Giselle Larizzatti Agazzi (*)

Lúcio Cardoso

Por ocasião do lançamento do romance Crônica da casa assassinada, há exatos cinquenta anos [este texto foi publicado originalmente em 2009 – Nota da Redação], Lúcio Cardoso, sobre ele, afirma a Fausto Cunha:

"Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Gerais. Que me entendam bem: Contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de vida mineira. Contra a fábula mineira." (Cardoso, 2002, p. 9)

O depoimento do autor explicita as motivações que impulsionam a narrativa em torno e por dentro dos Meneses, tradicional família da aristocracia decadente de Minas Gerais. Para investir contra Minas Gerais, Lúcio Cardoso acompanha a crescente desagregação das relações entre os familiares e entre eles, a cidade e a casa. Não há especificamente a representação de símbolos regionalistas, uma vez que o romance deslinda os complexos universos interiores das personagens, que mal conseguem dialogar entre si ou produzir discursos coerentes. Há, sim, a construção e a representação alegórica de elementos regionalistas dentro de uma perspectiva subjetiva, quando, por exemplo, ao final do romance, a população da cidade é dizimada por uma epidemia:

"(…) ia a meio a triste epidemia que liquidou nossa cidade. A Chácara dos Meneses foi das últimas a tombar, se bem que seu interior já houvesse sido saqueado pelo bando chefiado pelo famoso Chico Herrera. Vejo-a ainda, com seus enormes alicerces de pedra, simples e majestosa como um monumento em meio à desordem do jardim. A caliça já tinha quase completamente tombado de suas paredes, as janelas, despencadas, batiam fora dos caixilhos, o mato invadia francamente as áreas outrora limpas e subiam pelos degraus já carcomidos – e, no entanto, para quem conhecia a crônica de Vila Velha, que vida ainda ressumava ela, pelas fendas abertas, pelas vigas à mostra, pelas telhas tomadas, por tudo enfim, que constituía seu esqueleto imóvel, tangido por tão recentes vibrações." (Cardoso, 2008, p. 495)

Como o regionalismo pode ser construído por meio de narrativa em foco intimista, existencialista é o que se pretende explorar neste texto.

Conhecido por travar polêmicas com os escritores nordestinos regionalistas de seu tempo, Lúcio Cardoso não nutria simpatia por esse tipo de literatura, enveredando por outras searas estéticas. Esse fato torna Crônica da casa assassinada um romance muito particular da história da literatura brasileira, porque não se enquadra facilmente em um único tipo de produção literária. O viés psicológico e o viés regionalista se encontram em processos metafóricos e metonímicos que se combinam sem que oponham. Desse modo, o tom intimista com que é realizada a exploração de personagens enigmáticas como Nina, que seduz seu suposto filho, André, dá forma e sustentação para a contestação da cultura mineira, lida na desagregação das tradicionais formas de relação familiar.

Composta por meio de cartas enviadas e não respondidas, de trechos de diários, de depoimentos, de confissões parciais, a narrativa é fragmentada, não-linear e sem nexos explícitos de causa e consequência. As primeiras páginas com que depara o leitor são parte do diário de André. Ele nos conta o momento final das tramas ainda a serem apresentadas, mergulhando na profunda dor e revolta que lhe causara a morte de Nina, mulher da capital carioca que aporta no conservadorismo rural sustentado pela casa dos Meneses. Encerrado em seu relacionamento, André se sente profundamente traído pela perda de seu objeto de desejo. Vivendo alienado de todos e do mundo, sua fuga e sua separação da casa dos Meneses ao fim da narrativa, depois do enterro da mãe, não significam uma possível libertação da engrenagem da dor em que se encontrava preso:

"18 de… de 19… – (meu Deus, que é a morte? Até quando, longe de mim, já sob a terra que agasalhará seus restos mortais, terei de refazer neste mundo o caminho do seu ensinamento, da sua admirável lição de amor, encontrando nesta o aveludado de um beijo – ‘era assim que ela beijava' – naquela um modo de sorrir, nesta outra o tombar de uma mecha rebelde dos cabelos – todas, todas essas inumeráveis mulheres que cada um encontra ao longo da vida, e que me auxiliarão a recompor, na dor e na saudade, essa imagem única que havia partido para sempre ?…)" (Cardoso, 2008, p. 19)

O testemunho de André faz ressoar um trauma fundamental, insuperável e aponta para a imagem do sobrevivente de guerra, para o qual a tragédia se perpetua ainda que a realidade afirme o contrário. Em outra chave, a leitura de Roney Cytrynowicz do conto "A morte de meu pai", Elie Wiesel, deslinda o sentimento de dilaceração daquele que ficou para contar uma história inenarrável, dado seu conteúdo de horror (Cytrynowicz, p. 125 a 140). Acreditando ter sido separado da mãe ainda no hospital, André nunca pôde conhecer a verdade sobre a história do seu nascimento, por determinação de seu pai, Valdo, que impusera o silêncio absoluto seja sobre os motivos do afastamento de Nina, seja sobre a identidade dela. Essa é a guerra da qual André não consegue se libertar e que o impede de construir sua própria identidade, indelevelmente cindida pela pressão exercida pelos Meneses, que o queriam afastado da influência materna.

O passado paira sobre a Chácara, insinuando-se, a cada novo evento, como um fantasma que continuamente ronda e oprime os vivos. Abrindo fissuras na realidade aparente, a imagem das ruínas perpassa diversos níveis narrativos: está na impossibilidade de comunicação entre os personagens, na fragmentação dos discursos, na corrosão das estruturas da casa, no fim mesmo da cidade Vila Velha e dos seus habitantes.

O próprio título do livro já anuncia o enigma em que ele se constituirá, ao se debruçar sobre as lembranças angustiadas e desconexas dos vários personagens, que não se fiam na memória que construíram sobre suas relações com os outros e com a realidade. O relato que se anuncia como sendo uma crônica carece de verdade, porque não há fatos claros e objetivos. Assim, cabe ao leitor desvelar o assassino e reconstituir o crime que baila entre sofisticadas técnicas narrativas, trabalhadas por uma linguagem meticulosa, que se desdobra em descrições quase líricas não fosse a exploração aguda dos perfis psicológicos elaborados e o grotesco que surge dos dramas apresentados:

"Decerto, quando as pessoas não nos interessam, esmaecem em torno a nós com a indiferença dos objetos. Alberto, para mim, sempre fora o jardineiro, e jamais conseguira identificar sua presença senão daquele modo. Eis que agora, pelo simples manejo da existência de Nina, eu o descobria como havia descoberto a mim mesma. Este deve ser, Padre, o primeiro dom essencial do demônio: despojar a realidade de qualquer ficção, instalando-a na sua impotência e na sua angústia, nua no centro dos seres." (Cardoso, 2008, p. 110)

Trecho da primeira confissão de Ana a Padre Justino, único em missão sacerdotal na pequena e mítica cidade de Vila Velha, esse registro se encontrará com a última parte do romance, quando, em uma carta do mesmo Padre, o incesto sugerido entre Nina e André era uma ficção tecida cuidadosamente para vestir a inveja que movia a confessa. Somente no último depoimento, é que se abre a fenda interpretativa desse romance, apenas insinuada em momentos anteriores: há que se ler este texto a contrapelo. Ao virar pelo contrário os sentidos engendrados, o leitor pode elucidar os mistérios que acompanham a narrativa. Nessa perspectiva, Deus e Diabo, bem e mal ocupam lugares opostos no plano literário: o pecado está com aqueles que se eximem de experimentar a vida em sua plenitude e não com os que a conhecem em todas as suas facetas e contradições:

"Deus é quase sempre tudo o que rompe a superfície material e dura do nosso existir cotidiano – porque Ele não é o pecado, mas a Graça. Mais ainda: Deus é acontecimento e revelação. Como supô-lo um movimento estático, um ser de inércia e de apaziguamento? Sua lei é a da tempestade, e não a da calma." (Cardoso, 2008, p. 508)

O veredicto de Padre Justino divide os aspectos narrativos: de um lado, Nina e seus modos e valores cariocas, urbanos; de outro, Ana e seus modos e valores mineiros, interioranos. Dentre as duas, a tempestade está inegavelmente ao lado da criatura que movimenta a família, desestabilizando a inércia dos que passivamente acompanham a decadência da casa, da cidade e a putrefação das relações entre as pessoas.

Ao praticar a leitura às avessas, vê-se que Ana, segundo seu próprio ponto de vista, é a representação do mal, por evidenciar a verdade que por tanto tempo se esforçou para encobrir: ela trai o marido, Demétrio, com o jardineiro, Alberto, amante de Nina, e gera André, filho atribuído a Nina e a Valdo.

Padre Justino, após longa incursão interior, empurrado pelo terror diante da verdade contada por Ana, encontra uma possibilidade para perdoá-la, já que, contrariamente às expectativas, o mal está a serviço de Deus, porque rompe com a estagnação demoníaca da vida:

"precisamente em nome desse mal que era uma oposição às suas noções morais, desse mal que eu lhe concedia como a suprema indulgência que se concede a um moribundo. Que ele, em última instância, revestido afinal das formas dessa Graça que ela tanto renegara, apaziguasse suas penas e lhe desse certeza de que vivera, padecera e usara sua essência mortal até o último clarão." (Cardoso, 2008, p. 508)

O pecado maior é mesmo este: a inércia que mantém as aparências sob o véu da calma e da tranqüilidade. Deus, sendo ação, não está na pacata cidade de Vila Velha, no passado, nas forças regressivas. Eis a palavra do escritor contra Minas Gerais, contra a família mineira, contra os valores regionais. Eis o regionalismo que surge da exploração dos universos íntimos e da sondagem existencial das personagens.

O suposto incesto vai se naturalizando na medida em que se acentua a degradação das relações entre os familiares. O horror com que se lê nas primeiras páginas os prazeres sexuais de que desfrutam mãe e filho é substituído gradativamente pela desconfiança de que a verdade dos fatos é provisória e eternamente contestável:

"- Sim, mãe – balbuciei, deixando pender a cabeça.

Ela lançou-me um olhar onde brilhava ainda mais um pouco de sua velha cólera:

– Mãe! Você nunca me chamou de mãe… por que isto agora?

E eu, atônito, sem poder impedir que o espelho tremesse em minhas mãos:

– Sim, Nina, voltarão os velhos tempos." (Cardoso, 2008, p. 25)

André descreve seu último encontro com Nina em um turbilhão de imagens que condensam a entrada do leitor no romance por inseri-lo, sem qualquer preâmbulo, no centro nervoso da narrativa. O relacionamento incestuoso é o mote para que se percorra a história da família Meneses, que se esforça até a morte para manter o estoicismo dos tempos idos ainda que a Chácara não produza mais riquezas, os irmãos não saibam administrá-la, as relações estejam esgarçadas. Em lugar de os novos acontecimentos no seio da família provocarem atrito e, portanto, alguma transformação, como quer uma perspectiva utópica que se abra para a construção de relações justas e igualitárias, as experiências, duramente silenciadas, impedem que os sujeitos se reconheçam uns nos outros e que as relações mudem.

A artificialidade que pauta a vida dos Meneses leva Nina a procurar o Pavilhão, ambiente desprezado e abandonado dentro da Chácara. Em oposição a casa, central, esse espaço, periférico, adquire crescente importância na narrativa. É Nina que o elege como espaço privilegiado, ao retirar-se para lá junto com Valdo. Também é aí onde Nina vive seus primeiros encontros sexuais com André e com o jardineiro, Alberto. Da paixão à morte, o Pavilhão, já completamente destruído, abrigará as tragédias que virão: a condenação de Nina ao exílio, a morte do jardineiro, a confissão de Ana ao Padre e sua solitária morte:

"E foi ali – lembra-se? – que passamos realmente os mais belos dias de nossa vida em comum. Ali, naquele Pavilhão abandonado e coberto de hera, com largas janelas de vidro mais ou menos intactas, e que flamejavam ao sol da tarde, e comungavam tão intimamente com o mundo vegetal que nos cercava, ali aprendi a conhecer o amor e a aguardar o filho que havíamos gerado." (Cardoso, p. 80 e 81)

Valdo é uma entre as estranhas criaturas desse romance a lutar pela manutenção das artimanhas mentirosas, que sustentam a narrativa. Para conquistar Nina, dona de beleza e mistérios incomuns, ele se passa por homem rico do interior. Sua farsa é, contudo, desmontada por seu irmão, Demétrio, que o contesta no primeiro jantar em família, proferindo um agressivo discurso contra a fachada construída por Valdo. Betty, aquela que será a fiel servidora de Nina na casa dos Meneses, testemunha a cena:

"(…) Dona Nina apenas ergueu as sobrancelhas e declarou com frieza:

– Casei-me com um homem rico.

– Rico? Foi isto o que ele lhe disse? – gritou o Sr. Demétrio.

– Foi.

Ele, que se inclinara exageradamente sobre a mesa, voltou a tombar para trás, e com tanta força que temi vê-lo cair, arrastando a cadeira.

– Mas não tem nem onde cair morto! Devemos aos empregados todos, à farmácia, ao banco do povoado… Não, esta é forte demais.

Só aí a patroa pareceu perder a calma. Atirando o guardanapo sobre a mesa, e com um tremor nos lábios, exclamou:

– Ah, Valdo, isto é uma humilhação!" (Cardoso, 2008, p. 64)

Visto por Nina como responsável pelo afastamento entre Valdo e ela e, consequentemente, entre ela, a Chácara e a infância do suposto filho, Demétrio nutre, segundo Ana, uma paixão incontrolável e não assumida pela cunhada, o que se revela em suas investidas constantes contra ela. Desse Meneses, não há nada mais do que o olhar dos outros sobre ele e suas ações. Essa ausência falta ao leitor que compõe o sentido do texto não com pouco esforço através das outras vozes textuais, distribuídas na narrativa de modo aparentemente aleatório.

Também para Ana, Nina é objeto de atração e de repulsa, menos por disputar a atenção de Demétrio, a qual, aliás, nunca obtivera, do que por percebê-la plena da vida que seduzira Alberto:

"Ela aproximou-se por trás dos meus ombros:

– Pena que tivéssemos amado o mesmo homem.

Voltei-me, e toda a cólera havia retornado ao meu coração:

– Você! Bradei com um desprezo indizível.

Deixou pender os braços e sorriu tristemente:

– Eu sim, que é que tem? – E com uma expressão onde eu reconhecia a antiga

Nina: – Pensa que eu também não posso amar um jardineiro?" (Cardoso,
2008, p. 299)

O médico e o farmacêutico, junto com o padre, formam o olhar estrangeiro sobre a família dos Meneses, que gozaram de imensa reputação em tempos idos como atesta o segundo depoimento do médico, ao escrever sob a necessidade de buscar elucidar os estranhos fatos que acompanharam a vida na Chácara:

"Não é do meu gosto remexer essas coisas que considero mortas, se bem que nem todas tenham sido convenientemente esclarecidas e nem tudo signifique uma acepção aos entes que delas participaram. Além do mais, acredito que uma família, como a dos Meneses, que tanto lustro deram à história do nosso Município, tenha direito ao silêncio que vem buscando através dos anos e que não consegue, pela violência dos fatos que viveu – e que no entanto só nos merece compreensão e esquecimento. Pesa-me a consciência, no entanto, ocultar fatos que poderiam elucidar alguns daqueles mistérios que na época tanto abalaram nosso povoado. Pensando bem, este é o motivo por que me encontro aqui, reajustando sobre o passado essas lentes, que apesar de trêmulas só procuraram servir à verdade." (Cardoso, 2008, p. 144)

O esforço do médico de "reajustar as lentes", para contar os fatos que à época testemunhou, e "servir à verdade", apesar de respeitar o silêncio dos Meneses, é o esforço que o leitor deve realizar se quiser entender, através da armação literária, as relações entre ficção e contexto histórico. Conhecê-las é, pois, prática exaustiva, porque requer coragem para os sujeitos desafiarem as tradições e vencerem a inércia, a que se habituaram.

Os discursos produzidos se apresentam como um ponto de vista válido para penetrar a verdade dos fatos. Isso, até que os remetentes sejam confrontados pela loucura que os cega e os impede de exercerem a função de testemunha dos fatos, dado que a memória, em ofícios traiçoeiros, não representa lugar confiável.

Entre depoimentos incompletos e vagos, não há um acordo em torno do que ocorre na Chácara. Para conhecer a verdadeira história, seria preciso atravessar a opacidade das máscaras que vestem os Meneses, mas essa empreitada é dificultada pela própria inépcia dos personagens para comporem um olhar coerente sobre a realidade e sobre a própria intimidade. Eles não percebem a tragédia que representam e em que se encontram. Até mesmo para quem conhecia a verdade, Ana e Nina, a realidade não existe como dado histórico, senão como uma criação para servir aos caprichos das contraditórias subjetividades. Padre Justino, único personagem sensível ao horror que emerge dos funestos acontecimentos dramaticamente naturalizados pelos personagens, narra o inenarrável:

"- Padre, tudo isto eu fiz. André era meu filho, e não dela.

Houve uma pausa.

– Mas, filha… durante este tempo todo, nem uma só vez, uma única, pôde imaginar que ele fosse seu filho, e tratá-lo como tal?

– Meu filho! – e a voz dela vibrou quase irritada. – Que me importava que fosse meu filho? Não existia, não tinha tudo o que desejava? Como podia aceitá-lo ou encará-lo como um filho meu, se a esta simples idéia meu ser se paralisava, imaginando o olhar de meu marido, sua reprovação, meu castigo? Ah, Padre, não é impunemente que se entra para a família dos Meneses." (Cardoso, 2008, p. 505)

Como Ana declara mais adiante ao Padre, o preço pago para participar da família dos Meneses é calar os crimes cometidos e testemunhados, colocando-se à margem da história. Mas nem por isso a realidade perde a força de seu conteúdo de verdade, correndo a base das relações, do espaço, da Chácara, da própria identidade das pessoas. Mortos, a casa sucumbe à tragédia da estagnação diante do caos. Talvez por isso sejam salvos os pecadores, porque contestam a lei imutável das coisas:

"- Padre, e eu, não estou salva também, não pequei como os outros, não existi?"

Timóteo, o irmão marginalizado pelos Meneses, por seus comportamentos esdrúxulos, incorpora o louco que, em lapsos temporais, é o visionário lúcido capaz de enxergar a verdade das tramas. Depois da morte de Ana, carcomida pelo câncer que tornava o ar da Chácara insuportavelmente fétido, ele sai do quarto em que estivera confinado por toda vida, para, menos do que prestar homenagem à morta, sua única amiga, vingar-se da família:

"Parada diante de mim, uma xícara nas mãos, e ainda fremente da notícia que acabara de transmitir, Betty aguardava:

– O senhor não ouviu?

Ergui-me com esforço, enquanto em torno de mim a luz amarela ondeava – um efeito de náusea. (Poderia dizer a ela: "Betty, não me sinto bem, tenho dor de cabeça, um enjôo constante. É possível que tudo me aconteça, é possível…" Mas não, ela jamais acreditaria em minhas histórias.)

– Ouvi sim, Betty. Ela morreu." (Cardoso, 2008, p. 462)

Também para Timóteo a morte, a estagnação era o estado natural das coisas, da sua vida, da Chácara dos Meneses. Sua figura grotesca, imensamente gorda, adornada com jóias antigas de família e com os velhos farrapos das roupas de uma tia lendária, irradia o ar de fatalidade que envolve cada momento da narrativa. Quando sua voz é silenciada por outros discursos que se sucedem no texto, a narrativa ganha ainda mais tensão, porque se fortalece a desconfiança de que algo ocorre sob a aparente inação dos personagens. Exilado dentro da própria casa, Timóteo pode ser lido como uma espécie de alegoria do Estado mineiro, ao carregar os símbolos e a opulência de um passado morto, cujo sentido histórico, completamente deslocado de seu contexto original, nada mais significa a não ser a necessidade urgente de transformá-lo em memória.

Colocado à periferia e vivendo em contínuas erupções, o interior do Brasil está à margem e não acontece para o centro, aqui representado pelo Rio de Janeiro. Ao viver silenciosamente os crimes cometidos cotidianamente, Minas Gerais não será salva da condenação, porque estará sob o jugo do Demônio enquanto permanecer inerte diante do caos que destrói a identidade do povo, da região, dos elementos regionalistas. A cidade se degrada até que se esgotem todos os seus recursos de subsistência assim como a Chácara dos Meneses.

Nina rompe com a imutabilidade aparente dos Meneses, oferecendo, assim, a possibilidade de remissão dos pecados de seus moradores. Para tanto, sua trajetória evidencia que é preciso assumir as conseqüências da ação na realidade, as quais, invariavelmente, contestam a tradição e os valores regionais. É aí que se encerra o foco regionalista desse romance intimista: na própria ausência e na negação dos elementos regionalistas.

Tal é a atitude que o livro exige do leitor, caso queira libertar-se do inferno. É preciso remexer os entulhos e viver o caos. O leitor, depois de cumprir a leitura das mais de quinhentas páginas, descobre que desde o início da trama narrativa também ele era vítima das aparências, pois o incesto, afinal, não ocorrera. André foge da casa sem conhecer a verdade e Valdo, que nem sequer desconfiava do que seu suposto filho pensava estar vivendo, abandona o território dos Meneses. O cadáver de Nina, mesmo enterrado, faz vibrar a urgência de se enxergar através da cortina, por entre alguma brecha possível. Esse desejo de rever o passado para que se faça a justiça é o que movimenta Padre Justino em seu último depoimento:

"Não sei o que essa pessoa procura, mas sinto nas palavras com que solicitou meu depoimento uma sede de justiça. E se acedo afinal – e inteiramente – ao seu convite, é menos pela lembrança total dos acontecimentos – tantas coisas se perdem com o correr dos tempos… – do que pelo vago desejo de restabelecer o respeito à memória de um ser que muito pagou neste mundo, por faltas que nem sempre foram inteiramente suas." (Cardoso, 2008, p. 495)

De fato, há um cadáver em putrefação em plena luz do dia. Trata-se da própria cultura mineira que se nega a enterrar os mortos e a compor uma memória histórica capaz de fazer justiça com o passado. Eis o cadáver que a crônica apresenta ao leitor, concretizando o desejo de Lúcio Cardoso de destruir a "fábula mineira".

Bibliografia

Cardoso, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002 e 2008.

Cytrynowixz, Roney. "O silêncio do sobrevivente: diálogo e rupturas entre memória e história do Holocausto". In: Silva-Selgmann, Márcio. História, Memória, Literatura. O testemunho na Era das Catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp. 2003 (p. 127-140).

Santos, Cássia dos. Polêmica e controvérsia em Lúcio Cardoso. Campinas: Mercado das Letras, 2001.

(*) Giselle Larizzatti Agazzi é graduada em Letras pela USP (1992), mestrado (1998) e doutorado em Literatura Brasileira pela USP (2004). Professora no ensino superior desde 1999. Participa do projeto "Ler e Escrever" do governo do Estado, como professora orientadora das alunas estagiárias em São Vicente.

Fonte: APROPUC-SP
http://www.apropucsp.org.br/apropuc/index.php/revista-cultura-critica/41-edicao-no08/553-cronica-da-casa-assassinada-um-romance-regionalista-sem-historia