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Galeano em Cuba: “Quero ser proibido como o país onde estou”

O escritor uruguaio Eduardo Galeano esteve em Cuba ao longo da semana, onde presidiu a premiação da Casa de las Américas, tradicional instituição cultural cubana. Na ocasião , ele falou à imprensa sobre temas variados e comentou seus mais recentes livros: Espelhos e Os filhos dos dias. Eis os principais trechos da entrevista.

“Lamentavelmente, é uma visita muito curta. Gostaria de ter ficado mais tempo, mas pude reencontrar-me com velhos amigos, que continuamos gostando uns dos outros como se o tempo não tivesse passado e também pude percorrer mais profundamente a cidade de Havana, o que é um prazer à parte”.

“Eu já tinha feito isso antes, na companhia de Eusébio, “O Criador”, e desta vez pude confirmar que ele merece um capítulo do Gênesis para substituir o que está na Bíblia, porque Deus criou o mundo em uma semana, mas ele em poucos anos fez a Havana Velha. Merece um texto sagrado que reconheça o trabalho criador desse louco lindo que com tropical loucura tornou belíssimo o bairro de Havana, que parecia condenado à ruína e que ele levantou com ese impulso criador que tem conseguido multiplicá-la , descobrindo a energia que eu não sabia que continha. Isso foi a coisa mais alentadora que encontrei, além da Casa de las Américas, que como disse nas palavras de abertura da premiação, também é minha casa”.

“Cuba está vivendo um período, mais que um momento, um período apaixonante de mudanças. Creio que eram mudanças que a realidade foi incubando, que não nasceram como Atenas da cabeça de nehum deus, nasceram da energia acumulada por uma sociedade que é capaz de mudar, e essa é a prova de que está viva. É evidente que tinha chegado por um caminho que teve seu sentido e foi imposto pelas circunstâncias, porque a Revolução Cubana fez o que pôde e não o que quis; por causa do bloqueio e mil e uma formas de limitações impostos de fora ao desenvolvimento de sua energia criadora, até chegar aos días de hoje, tentando heroicamente comunicar-me pela Internet desde o hotel onde estou”.

“Percebo uma indubitável boa vontade de todos para ajudar-me, mas temos nos chocado sempre com os problemas derivados de uma das formas de bloqueio, o bloqueio das comunicações, que raras vez se menciona mas que é muito importante. Então, me deparei com esse pequeno cartaz que diz “You want to enter from a forbidden country” (Você quer entrar vindo de um país proibido). Então, pensei: Como estou orgulhoso de ser quase um compatriota dos habitantes desse país proibido, porque a questão está em perguntar-se, proibido por quem, proibido por quê? Talvez proibido porque apesar de todas as suas contradições e dificuldades, continua sendo um exemplo de dignidade nacional para os outros países, às vezes desprezados, pobres, pequenos, que não têm direito ao patriotismo porque o patriotismo é privilégio dos países mandões, dos ricos, dos poderosos, que são os que julgam os demais e emitem sentenças”.

“Também proibido pelo perigoso exemplo da solidariedade, porque Cuba tem sido e continua sendo capaz de praticá-la, apesar de suas condições de vida muito difíceis. Eu creio que esses dois contágios têm posto tantas travas, tantos paus nas rodas dos processos de mudanças que esta Revolução necessita levar adiante e que daí advém o ‘”forbidden country” (país proibido). Se é por isso, eu também quero ser proibido, como o país onde estou”.

Espelhos tenta recuperar o arco-íris terrestre

“Agora em Cuba será publicado meu novo livro, que já deveria ter saído mas os gráficos nunca cumprem os prazos, em nenhum país do mundo. É gente muito boa, a mim me apaixona o ofício de impresor. Se eu tivesse nascido em outras vidas, teria querido ser Gutemberg, ou algum dos chineses que o precederam, porque a arte da impressão me enlouquece e sempre a pratiquei em Montevidéu, em Buenos Aires e outros lugares. Mas apesar de que reconheço e quero bem aos profissionais da impressão, também sei por experiencia que nunca cumprem os prazos, então se te dizem outubro, seria necessário precisar de que ano, porque nunca fica claro e parece que o livro não está pronto”.

O livro se chama Espelhos; é nada mais nada menos que uma tentativa de escrever uma história universal com o mundo visto através do olho de uma fechadura, através de pequenas histórias, histórias pequeninas que não dão importâancia às fronteiras do mapa nem do tempo e que tentam contribuir para a recuperação do arco-íris terrestre. Eu sou daqueles que creem que o arco-íris terrestre é mais belo e deslumbrante do que o arco-íris celeste, mas estamos cegos dessas cores, essas cores que nos demonstram que somos mais do que nos dizem que somos, porque carregamos uma herança de mutilações, que vem da época colonial e continua viva; mutilações universais, como, por exemplo o machismo, o racismo, o militarismo e outros ismos que nos deixam cegos de nós mesmos. Este livro tenta recuperar essas cores, esses fulgores”.

“Vou apresentar também alguns pequenos trechos de outro libro que ainda não foi publicado mas que vai sair espero que em março na Espanha, Uruguai, Argentina e México. Chama-se Os filhos dos dias e se parece muito com Espelhos, está guiado pela mesma intenção de recuperar o arco-íris terrestre, mas tem uma estrutura diferente. É como um calendário e a cada dia corresponde uma história que pode ter ocorrido em qualquer ano e em qualquer lugar do mundo. Então se mesclam coisas que ocorreram duzentos anos antes de Cristo com coisas queocorreram no ano pasado. A cada dia corresponde uma história, e se chama Os filhos dos dias porque eu tinha guardado há alguns anos algumas coisas que escrevi quando estava na Guatemala, há muitos anos, ali por volta de 1966 ou 1967 e têm a ver com a cultura maia, que é deslumbrante; é uma cultura onde o tempo funda o espaço. Eu tentara fazer uma síntese do que tinha escutado nas comunidades para ver se alguma vez podia ajudar o mundo a se tocar com esas coisas. Por certo, é uma cultura muito manipulada por quem a usa mal, não os maias, mas pelos que a usaram para vender horóscopos falsos ou para vender medo, com toda esta história de que os maias disseram que em 2012 o mundo vai acabar; é um disparate total, nunca nenhum maia disse semelhante coisa”.

“Eu tinha feito algumas anotações, algumas síntesis e as guardei. Agora uma delas serve de introdução a este livro, diz o seguinte: ‘E os dias caminharam e eles, os dias, nos criaram. Nós, os filhos dos dias, os averiguadores, os buscadores da vida’ ”.

Roque foi assassinado por ser como era

“Roque foi meu amigo e para mim esse é um novo capítulo da história universal da infâmia (referindo-se à recente isenção de culpa aos assassinos de Roque Dalton), para a qual tanto contribuiu e continua contribuindo nossa América Latina. Lamentavelmente, é mais um capítulo a agregar aos muitos que nossos amos foram redigindo e no caso de Roque é um escândalo. Roque foi assassinado por ser como era, um tipo com um evidente, notório sentido do humor e do amor, muto ‘foda’, muIto divertido, e era absolutamente incapaz de obediência. Foi assassinado por alguns de seus compaheiros da guerrilha de El Salvador, que para mim são criminosos, porque creio que são tão criminosos os revolucionários que matam para castigar a discrepância como os militares que matam para perpetuar a injustiça.”

Não queremos morrer nem de fome nem de tédio

“Trabalhou-se na busca da unidade que é um camino que se pode discutir, diria que é imprescindível unir-se em um mundo no qual isto é necessário e somente unidos podemos defender-nos, mas sabendo que são procesos muito complexos, porque o motor da vida é a contradição. Queremos uma unidade latino-americana sem desconhecer que a América Latina é também um espelho das desigualdades do mundo, e muitas vezes essas desigualdades se projetam mal entre os países latino-americanos. Não se trata de que o Norte seja mau e o Sul bom; os dois têm contradições e se não entendemos ou tratamos de compreender essas contradições, não as poderemos superar para construir uma síntese diferente. As contradições existem, por isso é tão difícil que nos ponhamos de acordo em coisas tão obviamente necessárias, como esta iniciativa de Hugo Chávez que é o Banco do Sul e é difícil levá-la adiante justamente por essas contradições que há entre os países mais poderosos e mais débeis dentro do próprio espaço latino-americano”.

“Mas não se deve ter medo da contradição, ela é o motor da vida; somos contraditórios, por isso estamos vivos. Essa união de diversidades é complexa, mas será a única maneira de reconhecermo-nos a nós próprios em todas as nossas infinitas possibilidades de criação e de mudança, a partir do reconhecimento da diversidade, a partir da celebração da quantidade de mundos que o mundo contém, que é o melhor que o mundo tem e o melhor que nós temos. Por sorte somos diversos; mais de um iluminado em um debate público me dizia: ‘Que América Latina. O que um argentino tem a ver com um haitiano?’’. Eu o olhava com lástima, com pena. Pobre homem, ele não sabe que o melhor que te pode ocorrer é ser diverso, e nossa grande virtude é que contemos todas as cores, as cores do mundo na América Latina, na diversidade latino-americana. Se não fosse assim, estaríamos condenados a aceitar o que o sistema nos obriga a obedecer: ‘vamos ver, escolhe – de que queres morrer, de fome ou de tédio?’. Eu creio que temos que responder: ‘não queremos morrer, nem de fome nem de tédio’.

Fonte: Cubadebate