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Leci Brandão: "minha vida foi fazer política em prosa e verso"

Filha de uma servente de escola com um funcionário de hospital, nascida em 1944 em um subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, questionadora desde criança, revolucionária de berço e persistente por profissão. Essa é Leci Brandão da Silva, mulher, cantora, militante e parlamentar.

Da Redação do Vermelho, Joanne Mota

Essa cantora e compositora é também a segunda mulher comunista a se eleger deputada estadual por São Paulo. Eleita com 86.298 votos, Leci Brandão estreia como parlamentar e compra mais uma briga, a de lutar por uma maior participação feminina na política e na vida político-partidária.

Entre um verso e outro, Leci cantou política, fez protesto e nunca deu um passo sem perguntar o porquê. Desde cedo assumiu o compromisso com o combate à injustiça social e defendeu uma plataforma de trabalho inclusiva, com ações que promovessem a igualdade e a melhoria da autoestima do povo brasileiro.

Outro brasão desta mulher é a luta contra a violência doméstica e pela igualdade de reconhecimento no mercado de trabalho. A militância social marca a trajetória de Leci Brandão que sempre apoiou os movimentos sociais e cantou para mobilizações de sindicatos, movimento negro, pela reforma agrária, democratização, mulheres, estudantes, segmento LGBTT, pelo índio entre outros setores.

Com suas letras de cunho social, abriu caminhos e combateu a desigualdade. Assumir sua posição custou a essa mulher alguns anos fora das gravadoras e invisibilidade por parte dos meios de comunicação. Guerreira, nunca se abateu com isso, “cantei e canto para o povo, canto o Brasil, canto as agruras do nosso povo”.

Conquistar é um de seus verbos preferidos e sendo carioca, natural do bairro de Madureira e criada na Vila Izabel, Leci foi a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores da tradicional Estação Primeira de Mangueira. Foi descoberta nos anos 1970 cantando no teatro Opinião e nessa década gravou o primeiro LP (1975) recebendo elogios da crítica especializada. “Os críticos sempre disseram: gosto da Leci porque a gente entende o que ela canta”.

Esta guerreira conversou com o Vermelho, falou sobre seus sonhos, dificuldades e lutas. E destacou que por não vir ao mundo a passeio ainda dará muito que falar. Canta Leci!

Portal Vermelho: Como muitos brasileiros, Leci Brandão sempre lutou para conquistar seus espaços. O que te moveu? O que te move?
Leci Brandão: Tudo que aconteceu comigo, aconteceu graças a música, essa é a primeira coisa que todos precisam saber. Foi através da música que fiz política. Quando é que as pessoas começam a perceber a minha sensibilidade para as questões sociais? Quando eu me descobri compositora. Foi e é através da música que as pessoas conheceram meu modo de pensar. Mas onde isso começou?

E quando eu comecei a compor? Isso começou nos anos 1960, aí começa a minha história como artista. Mas, para entender, é preciso voltar um pouco mais, mais precisamente ao sobrado, de um cômodo, na rua Senador Pompeu. Lá meus pais construíram a base para que eu crescesse. Nunca passei fome, mas tive sim uma vida muito humilde.

E mesmo nessa simplicidade, desde criança tive acesso à música, meu pai tinha uma vitrola e uma diversidade de vinis. Então, eu cresci escutando ópera, música do Jamelão, Carmen Costa, Dalva de Oliveira, Ruy Rey e sua orquestra, Bienvenido Granda, grande cantor cubano, Doris Day, Peter York, Jacó do Bandolim, Valdir de Azevedo, Luiz Gonzaga… Então a música sempre esteve ao meu redor, e isso construiu em mim a concepção de que mesmo sendo humilde poderia ser feliz, tínhamos alegria ao nosso redor.

A leitura foi outra coisa que me ajudou muito. Adorava ler, e lia muito. Tinha mania de ler. Meu pai comprava o jornal e eu adorava. Então eu lia tudo. Então toda essa trajetória, as dificuldades, as alegrias, a leitura, a música, tudo isso forjou essa Leci. Deram-me a base para que, através da música, expressasse as coisas do mundo, a realidade social, o Brasil tal como ele se apresentava.

Portal Vermelho:
Com a base preparada, como começa seu casamento com a música? Como foi receber a alcunha de “cantora das comunidades”?
LB: Bom! Comecei a cantar enquanto ajudava minha mãe na limpeza da escola onde ela trabalhava. Varrer e cantar eram coisas que eu adorava. Tudo começa na década de 1960, lembro-me que a palavra da moda nessa década era fossa. E por causa de uma desilusão, eu fiz o meu primeiro samba. Então, a partir daí comecei a transformar tudo em verso. Cantava o pobre, o trem, o ônibus. E uma amiga minha, Alice Ferri, que tinha amigos na União Nacional dos Estudantes (UNE), disse que os estudantes precisam me ajudar, pois minhas músicas falavam de luta.

Então, a Alice conseguiu um financiamento para a gravação das minhas músicas. E foi graças a ela e ao apoio da UNE que as pessoas começaram a ter acesso ao que eu produzia. Inclusive o meu primeiro show foi na UNE. Daí veio o teatro Opinião, a televisão, com o programa a Grande Chance, do Flávio Cavalcanti, e em 1975 gravo meu primeiro LP.

Portal Vermelho: Mulher cheia de ideias e de ação. Ser mulher dificultou sua jornada pelas lutas sociais e políticas do país?
LB: Sempre fui líder onde eu trabalhei, sempre questionei as coisas. E sempre pensei e falei sobre a importância dos direitos. E esse meu questionar fez com que eu sempre avançasse, e a música sempre esteve ao meu redor. A partir de 1975, com a gravação do meu primeiro LP, comecei a ampliar minha atuação e passei a participar de todos os processos em favor da democracia e da liberdade no país. Orgulhava-me de ser mulher e de estar na luta!

Então, ações como a demarcação das terras indígenas, a campanha da fome do Betinho, o movimento de mulheres, o movimento negro, movimento sem terra, Diretas Já, Caras Pintadas, tudo que acontecia e era de interesse social a Leci tava lá. Eu gravava o que acontecia no Brasil e fazia política em verso. Para se ter uma ideia, fui a primeira a gravar uma música para o público gay. Fui precoce nessa coisa de levantar bandeiras. Então, sempre bati de frente e combati todos os tipos de concentração, especialmente a concentração cultural.

Portal Vermelho: E sobre o papel da mulher em nossa história?
LB: Avançamos muito, as lutas falam por si. Elegemos uma mulher forte e inteligente. Porém, mesmo sendo mais da metade da população brasileira, nós ainda não conseguimos atingir o empoderamento, as mulheres não empoderam mulheres e isso é inacreditável.

Um exemplo clássico é o reduzido número de parlamentares mulheres. Aqui [Assembleia Legislativa de São Paulo] são aproximadamente 100 deputados para 12 mulheres. Isso é resultado de uma sociedade machista, que sempre primou por uma construção cultural fechada, que emperra a emancipação efetiva das mulheres.

E o quarto poder, que é a mídia, tem um papel preponderante nessa construção. Ela tenta de todas as formas fragilizar e enfraquecer o papel da mulher no seio da sociedade. Tomemos o governo Dilma como exemplo, a presidente é uma mulher forte e inteligente, mas diariamente a mídia tenta enfraquecer seu governo, com um processo de desgaste intenso.

Agora eu pergunto, a grande mídia publicou que eu fui a segunda mulher negra a entrar nessa casa? Ela vai a Brasília entrevistar as ministras para informar sobre o trabalho que elas têm feito? Não. Para a mídia desinformar é o jogo. É fato que hoje temos a internet. Mas informar, e informar bem é obrigação de toda a mídia, não só da rede.

Então temos duas questões para alcançar o empoderamento: vencer as barreiras da informação e ganhar o voto das mulheres.

Qual a preocupação da maioria das mulheres hoje, é que a autoestima só está em alta se ela se parecer com a atriz de novela ou com a mulher do BBB. Por que hoje o Brasil vive disso, a mulher precisa ser bonita e vender a imagem nas bancas, na televisão, no rádio, nas lojas é o negócio. Então, se vende a ideia de que você pode ser burra, mas tem que ser linda. E isso é um absurdo.

Por exemplo, eu possuo um desvio no nariz e o meu médico disse: 'posso consertar, mas isso pode influenciar na voz'. Então respondi: deixa então, por que as pessoas gostam da minha voz, não do meu nariz. Então, é a cerveja que é a devassa e a trança da esposa do vice-presidente que vira pauta da semana. A mulher hoje é vista por muitos setores como um objeto e nosso papel é vencer essa qualificação.

No entanto, elas não enxergam o papel que assumem. A mulher hoje assume diversas jornadas, elas contribuem para a economia, são militantes, é pai e mãe, é seringueira, é lavradora, é ribeirinha, é política. É preciso entender que hoje a mulher está em outro patamar.

Portal Vermelho: Sobre a questão da cobertura da mídia, a senhora acredita que com a democratização conseguiremos vencer esses estereótipos? Teremos uma visibilidade maior?
LB: A televisão é o exemplo claro da invisibilidade das pessoas, dos movimentos, da mulher brasileira real, sobretudo aquelas que não correspondem aos padrões de beleza. Veja a Bahia, nós temos quatro cantoras: Ivete, Cláudia Leite, Daniela e Margareth. Você vê a Margareth na mídia? Eu não vejo. O Brasil é assim, você tem que obedecer à estética da TV, senão você está a fora.

Uma questão de ordem é sobre a democratização da mídia, se conseguirmos isso mudaremos o país. Venceremos todos os preconceitos.

A deputada federal Jandira Feghali [PCdoB – RJ] tem um projeto interessante que versa sobre a regionalização dos conteúdos da televisão. Um projeto como esse, se aprovado, transformaria a forma de se ver televisão, por que você chegaria em Maceió e conheceria Maceió, você chegaria em Manaus e seria Manaus que você assistiria, isso é democracia. Nós tivemos experiências como o Som Brasil, mas isso se perdeu e o que temos hoje são os enlatados empurrados a força. O que realmente importa nessa discussão é o que o Rio de Janeiro e São Paulo querem. Precisamos romper com essa ponte área.

Então eu pergunto: Imagina se todo mundo visse todo mundo? Isso seria uma loucura! Por isso eu sempre cantei e canto o Brasil. Canto coisas de cada cantinho desse meu país.

Portal Vermelho:
Em 2011 a senhora se elege como deputada estadual por São Paulo. Como é fazer parte da Assembleia mais tradicionalista do país?
LB: Eu vim para essa terra pra cumprir missão. É a continuidade das coisas. E ser candidata e assumir um mandato é uma missão que eu precisava cumprir. Hoje, sou um instrumento, uma representante da sociedade. E uma das prerrogativas de um deputado é propor, pegar projetos populares e colocar para ser votado. E essa caneta que possuo, me dá a possibilidade de alguma forma transformar a vida das pessoas pra melhor.

Então, é imensa a minha gratidão a cada vitória conseguida no plenário. É a resposta de que possuímos poder e que podemos usá-lo para o bem comum. E a função de um deputado é essa.

Cumpro fielmente tudo que eu falei durante minha campanha. Estou cumprindo com meu programa e faço isso por que sei da minha responsabilidade com a sociedade. Sei que tenho um papel a cumprir. Consegui montar uma boa equipe no meu mandato, tenho gente de diversos movimentos sociais, que me ajudam e constroem comigo esse mandato. Lutamos juntos contra essa política patriarcal, tradicional de São Paulo.

Portal Vermelho: A senhora integra o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, diante de um assunto tão debatido como foi a questão das cotas, qual a opinião da deputada sobre esta questão?
LB: Sempre cantei a favor das cotas, mas as cotas sociais. Porque pobre é pobre independentemente da etnia. Basta dar uma volta pela periferia, pelas favelas e morros do Brasil para perceber que ela é composta por pessoas com herança de diversas etnias. Sei que muitos companheiros não viram com bons olhos essas minha declaração, mas essa é a minha posição e sou muito honesta nisso.

Portal Vermelho: Leci Brandão também defende a Cultura. Como a senhora avalia o ínfimo orçamento do Ministério da Cultura? Acha que a cultura ainda não recebeu seu valor?
LB: Não vejo com bons olhos a forma como o Ministério vem sendo conduzido na atual gestão. Ela ainda não disse a que veio, pelo contrário, ela fez uma confusão e desarrumou muitas ações já consolidadas pelas gestões anteriores. Além disso, esse orçamento ínfimo do ministério deixa claro que a cultura não é tida e nem vista como vetor de desenvolvimento.

A ministra esteve aqui durante uma audiência pública realizada por nós, questionamos e demonstramos que estávamos no bonde e não íamos deixar de discutir, questionar, cobrar e propor ações que colocassem a cultura em outro patamar.

Uma das primeiras coisas que fiz como parlamentar foi pedir uma audiência com o secretário de Cultura de São Paulo. Ele me recebeu e ouviu minhas propostas, lembramos de ações como os pontos de cultura, um modelo de política que deu certo.

O meu segundo passo foi traçar um projeto de ação neste setor. Então, destinei 80% da minha emenda parlamentar, que é de R$ 2 milhões, para ações culturais no estado de São Paulo. Estamos botando pra quebrar, assinando convênios pelos quatros cantos deste estado. Inclusive o governador reconheceu nosso trabalho e constatou que o dinheiro da emenda está sendo aplicado, realmente, em questões de necessidade social.

Ainda temos muitos desafios. Hoje minha prioridade é o exercício parlamentar. A luta é no plenário fazendo valer os que acreditaram em mim. Este ano temos mais uma batalha [eleições 2012]. Temos pela frente uma campanha que não será brincadeira, e estou pronta para assumir o meu posto e seguir rumo à vitória. Vamos lutar pelo empoderamento das mulheres nestas eleições.