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Uganda: golpes, influência dos EUA e desinteresse do Brasil

Entre a estabilidade e a fragilidade, o país centro-africano busca uma política de proteção aos direitos humanos e evita a atuação do exército liderado por Joseph Kony, hoje atuando no Congo.

Por Estevan Elli Muniz, da Rede Brasil Atual

Desde sua independência da Inglaterra, em 1962, Uganda sofreu quatro golpes de Estado. O primeiro governo tinha como presidente o então rei da Buganda, um dos reinos encravados no país, e Milton Obote (da tribo Langui, do Norte) como primeiro-ministro. Ao tentar instituir regime de partido único, com o objetivo de eliminar o tribalismo, Obote entrou em conflito com o presidente.

Em 1966, com apoio do Exército do país, suspendeu a Constituição, que assegurava considerável autonomia aos diversos reinos tribais, e instaurou um governo de inspiração socialista. Não tardou, contudo, para que sua ditadura acabasse. Em 1971, o chefe do Estado Maior do Exército, o general Idi Amin Dada, deu um golpe em Obote, e este se exilou na Tanzânia, que faz fronteira com o país e, à época, tinha um governo de caráter socialista.

Idi Amin Dada (que inspirou o filme O Último Rei da Escócia), perseguiu os indianos (que concentravam boa parte das riquezas do país), os cristãos (que à época eram 63% da população), e determinadas tribos, como as dos Langui. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) conta que foram mais de 300 mil os mortos por conflitos políticos durante seu governo. Seu principal parceiro comercial era o governo líbio de Al Kadhafi. Amin liderou uma guerra contra a Tanzânia em 1979. As tropas tanzanianas invadiram o país juntamente com refugiados ugandenses e tiraram Amin do poder, que recebeu exílio da Arábia Saudita.

Um novo governo foi então instaurado, seguido de perto pelas forças tanzanianas e pela Frente Nacional de Libertação de Uganda. Assumiu Yusufu Lule, líder das tribos da região sul do país. As tribos da região norte, entretanto, onde Obote era influente, organizaram o Novo Exército Nacional de Libertação de Uganda e assumiram o controle. Em 1980, realizaram-se eleições presidenciais, e Obote voltou à Presidência.

Yoweri Musevini foi um dos candidatos derrotados, mas não aceitou os resultados, que acusou de serem fraudulentos. Começou então outra luta de guerrilha: Musevini organizou o Exército de Resistência Nacional e travou um conflito cujo número de mortes – estima-se – foi maior do que durante a gestão de Idi Amin. Em 1986, sua guerrilha invadiu Campala, e Musevini assumiu o poder. Foram nove anos até o estabelecimento de uma nova constituição. Em 1996, houve finalmente uma nova eleição presidencial. Musevini ganhou estas e as duas seguintes.

É ele quem Joseph Kony deseja derrubar. A brasileira Paula Simas, oficial do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos em Campala, explica que, quando ele assumiu o poder, as tribos do norte reagiram, receosas de que o novo regime pudesse oprimi-los. “Musevini veio com uma pauta muito mais democrática, mas houve essa reação armada no norte. E, de fato, houve abusos cometidos pelas forças do novo governo”, comenta. Segundo ela, formaram-se 22 guerrilhas resistentes a Musevini. O grupo de Kony, o LRA, era um destes. Musevini conseguiu selar acordos de paz, mas os pactos foram constantemente quebrados, e hoje o LRA é um dos dois grupos guerrilheiros em atividade.

Marginalizados, atuam praticamente como organizações de crime organizado no Congo. Paula relata que, no início, o LRA tinha o apoio da população e contava com integrantes que eram ex-militares do exército de Musevini, mas este suporte social foi se perdendo à medida em que passou a atacar a população civil e a sequestrar crianças e recrutá-las compulsoriamente para a luta armada.

Naquele momento, “o governo ugandense deixou a população inteira da região de Acholi, no norte da Uganda, em campos supostamente protegidos: eles abrigavam milhares de pessoas, mas alguns deles tinham dois ou três militares responsáveis em cada um. Então eram alvos fáceis para o LRA”, diz Simas. No auge da guerra, de acordo com ela, cerca de 2 milhões de pessoas viviam nesses campos.

Em 2006, foi tentado um acordo de paz. Kony não compareceu. Simas afirma que, no Congo, Kony continua a raptar crianças para que façam parte de seu exército. A um jornalista britânico que o entrevistou há alguns dias, ele afirma que nunca raptou crianças, simplesmente as recrutava, e não via problema algum em armá-las, pois deveriam lutar por seu país. Sobre as mutilações e assassinatos das quais é acusado, ele nega ser o responsável, atribuindo a questão ao exército de Musevini.

Em 2005, o Tribunal Penal Internacional acusou Kony de crimes contra a humanidade, e a Invisible Children já levou diversas vítimas ugandenses do LRA a falarem publicamente sobre como sofreram nas mãos da guerrilha. Kony diz lutar contra opressão de Musevini, declara ser evangélico pentecostal e ter a intenção de instaurar em Uganda um governo regido pelos dez mandamentos bíblicos.

Embora o LRA não esteja mais em Uganda e o norte do país se encontre pacificado, o trânsito dos recrutas de Kony não é tarefa difícil. “As fronteiras do norte da Uganda são permeáveis”, comenta Lívio Sansone, professor de antropologia da Universidade Federal da Bahia e pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais dessa instituição. Segundo ele, trata-se de fronteiras coloniais, que pouco são consideradas pelas comunidades de pecuaristas que habitam a região. “Há um banditismo social muito amplo, de antagonismo a um Estado imposto; eles (os LRA) não são os únicos que fazem sequestros ali; toda a região é complicada”.

Para Sansone, em Uganda “há muita violência do Estado, mas há pouco Estado, isto é, poucos serviços que ele tem a oferecer, na área da saúde, educação e saneamento básico”. É característica da região central da África o despotismo por parte dos governantes, que acabou por criar uma base de insatisfação, provocando a criação de grupos rebeldes que se levantam contra seus governos. Com exceção do Quênia, todos os países em volta de Uganda enfrentam ou enfrentavam há pouco problemas políticos e sociais, como Ruanda, República Central Africana e Sudão.

Uganda ocupa um papel estratégico na região, embora, na avaliação de Sansone, tenha se tornado menos importante para os Estados Unidos desde julho do ano passado, quando, após quatro décadas de lutas, o Sudão do Sul obteve a independência. Antes disso, Uganda tinha a função de fazer frente ao Sudão, cujo governo, comandado por Omar al-Bashir, é encarado como extremista islâmico pela Casa Branca.

Grande irmão

Os Estados Unidos apoiam o exército ugandense no combate ao LRA há anos, e, no ano passado, enviaram 200 soldados para cooperarem com as tropas ugandenses na busca por Kony. O jornalista estadunidense Michael Wilkerson, que faz reportagens e pesquisas sobre Uganda, comenta que o país tem papel fundamental na busca por estabilização na Somália, cujas duras crises humanitária e política são de interesse nacional de Washington.

“Grande parte das forças de pacificação neste país é composta por soldados ugandenses, que são mantidos pela União Africana, com recursos oriundos da ONU e dos Estados Unidos.” Assim que a campanha Kony 2012 tomou grande proporção na internet, Wilkerson fez críticas e apontou falhas no vídeo da Invisible Children, procurando dar esclarecimentos sobre a situação política. No entanto, ele aponta que a campanha teve bons resultados: na semana passada, 37 membros do Senado estadunidense co-patrocinaram uma resolução que incentivava o presidente Barack Obama a manter o apoio na busca por Kony.

Mas, para o jornalista, Kony e o LRA, de fato, não são o maior problema nacional. Enquanto o norte do país passa por um momento de reconstrução pós-LRA, o governo de Musevini é acusado de autoritarismo e corrupção. “Musevini veio ao poder como líder militar, e, embora ele tenha ajudado Uganda a adotar uma nova constituição, seu compromisso com a democracia é mais do que questionável; ele se refere aos opositores políticos com palavras de guerra, como inimigos e traidores”, diz Wilkerson.

Na manifestação da quarta-feira da semana passada, Kizza Besigye, que já foi médico de Musevini e membro de seu grupo militar, foi preso, após a morte de um policial. A manifestação ocorreu quando membros da oposição se reuniam no centro de Campala. Um policial foi atingido e faleceu a caminho do hospital. A polícia reprimiu a manifestação com gás lacrimogêneo. Além de Besigye, que passou a ser proibido de caminhar pelo centro da cidade, pois sua simples presença supostamente causa agitações, dezenas de pessoas foram presas, inclusive o prefeito de Campala, por “manifestação ilegal”. Dois jornalistas foram agredidos neste dia, algo recorrente no país, segundo o Comitê de Proteção aos Jornalistas.

Para o governo brasileiro, envolver-se com a questão ugandense não é uma opção. Essa é a avaliação de Pio Penna Filho, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, especialista em Relações Internacionais da África. “Essa região da África é a que o Brasil tem menos interesses.” A política externa brasileira preocupa-se com os países da África Austral e Ocidental, onde tem atuação econômica e cultural, considerando os países lusófonos, sendo as regiões central e oriental de pouca relevância para o país.

Penna avalia a relação do Brasil com a África como problemática. “O Brasil se coloca na África ao lado de ditadores”, afirma, citando as posições em relação ao Sudão e à Guiné Equatorial, além da ocupação pelo Marrocos do Saara Ocidental, que tem parte de sua população vivendo em campos de refugiados. A embaixada do Brasil em Uganda funciona em Nairóbi, capital do Quênia. Procurada, a representação diplomática não se manifestou.

Apesar do baixo nível de democracia em Uganda, o país não vive situação de conflito militar, como afirma Wilkerson – e como garante o próprio governo ugandense. O documentário Kony 2012 foi repudiado pelo governo da Uganda, que divulgou, por sua vez, um vídeo na internet que apresentava seu primeiro-ministro, Amama Mbabazi, indicando haver falta de informação na campanha da Invisible Children e declarando que o país encontra-se em paz.

Kony 2012 teria resultado em má publicidade para Uganda, que faz grandes investimentos na área do turismo. Nos últimos três anos, sua economia cresceu em média 6,9%. Wilkerson acredita que não há possibilidade de o LRA voltar ao país, já que o norte ugandense tem hoje alta proteção militar. “Mas o medo está lá, naquelas pessoas que sofreram por anos nas mãos da LRA e que passarão a respirar tranquilas quando Kony for morto”.

Paula Simas, do Alto Comissariado de Direitos Humanos, comenta que Uganda não é mais uma área de auxílio humanitário. “Muitas organizações de assistência social, inclusive da ONU, têm deixado o país”. Uganda vive um momento de reconstrução, deparando-se com desafios humanitários e tendo de reparar problemas estruturais, sobretudo na área da saúde. Segundo Simas, avalia-se que lá “ao dia, morrem 400 crianças ao dia e 16 mulheres falecem por complicações no parto.”