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1992, o ano que também não terminou

Vinte anos depois do movimento “Fora Collor”, a Revista Fórum reencontra os personagens caras- pintadas e conta passagens inéditas da última manifestação massiva da história brasileira.

Por Pedro Venceslau

Fora Collor

Há 20 anos, o Brasil registrou o seu último grande movimento de massas, o “Fora Collor”. A efeméride de 1992 ainda não despertou o interesse da mídia tradicional e talvez acabe mesmo passando em brancas nuvens. Uma pena. Ao relembrar a ação dos “caras-pintadas” e ouvir hoje seus protagonistas, somos conduzidos a um debate no mínimo instigante: por que nas duas décadas seguintes nenhuma passeata, bandeira, escândalo ou demanda levou o povo às ruas novamente? As manifestações pontuais registradas aqui e ali – entre elas o “Fora Pitta”, na capital paulista, a “Marcha da Maconha” e pequenas passeatas contra a corrupção mobilizadas via Facebook – definitivamente não merecem um capítulo nos livros de história se comparadas àquela movimentação pelo impeachment do primeiro presidente eleito após o fim do regime militar.

A linha do tempo mostra que parte dos líderes de 1992 forjados no movimento estudantil chegou ao poder junto com Lula. Depois de deixar a presidência da UNE, o paraibano Lindberg Farias, o maior deles, elegeu-se deputado federal pelo PCdoB, migrou para o PSTU e “perdeu o eixo” antes de ressurgir como uma fênix da política. Depois de uma temporada longe dos holofotes, perdeu a silhueta pesada, ganhou corpo de triatleta e filiou-se ao PT em 2002. Começou militando nas franjas radicais da legenda, mas logo passou ao que era o Campo Majoritário, maior tendência da legenda, pela qual elegeu-se deputado. Depois, foi prefeito de Nova Iguaçu e senador pelo Rio de Janeiro.

O número 2 da UNE naquele ano frenético era o tesoureiro da entidade, o baiano Orlando Silva Jr. Ao contrário de Lindberg, ele nunca deixou o PCdoB, partido que o escolheu para ser ministro do Esporte do governo Lula, depois da saída de Agnelo Queiroz. Ele teve ao seu lado figuras como o atual ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que era dirigente da juventude petista e presidente do DCE da PUC-Campinas; Manoel Rangel, presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine), que era dirigente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes); Floriano Pesaro, vereador do PSDB paulistano e ex-presidente do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da USP; e Fernando Gusmão, ex-deputado estadual do Rio.

Depois de apeado do poder, o midiático Fernando Collor, como todos sabem, reinventou se. Voltou ao seu estado, Alagoas, foi eleito senador e tornou-se um leal integrante da base dos governos Lula e Dilma. No final de maio do ano passado, o também ex-presidente José Sarney usou sua prerrogativa de presidente do Senado para tentar jogar o movimento “Fora Collor” na lixeira da memória nacional e, dessa forma, fazer um agrado ao colega nordestino. Ele simplesmente mandou retirar o impeachment dos painéis que contam a história do Senado desde o Império. Pegou mal. Questionado por jornalistas sobre sua motivação, Sarney saiu-se com essa: “Eu não posso censurar os historiadores que foram encarregados de fazer a História. Mas acho que talvez esse episódio seja apenas um acidente que não devia ter acontecido na história do Brasil. Não é tão marcante como foram os fatos que aqui estão contados, que foram os que construíram a História e não os que de certo modo não deveriam ter acontecido”. Bobagem pura e sem gelo.

Qual é a sua cara?

É consenso entre os historiadores que o “Fora Collor” foi um divisor de águas. Mas por que a juventude nunca mais tomou as ruas? “Aquele foi o último suspiro da década de 80, que foi a era dos movimentos sociais: Diretas Já, Tancredo Neves, eleição de 1989…”, pondera o sociólogo mineiro Rudá Ricci, autor do best seller “Lulismo”. Ele afirma que, depois dos caras-pintadas, o país passou por um processo de desmonte gradual dos movimentos sociais. “Não gosto do termo cooptação. O que houve foi uma convergência de interesses, com o estado financiando ONGs e movimentos sociais. As organizações, hoje, estão dentro do Estado, nomeando ministros e definindo o valor do salário mínimo”.

Para o historiador da USP José Carlos Sebe, coordenador do núcleo de história oral da universidade, o hiato de duas décadas sem mobilizações populares é algo natural. “[o filósofo espanhol] Ortega y Gasset diz que todas as gerações têm o seu tom vital. Sou contra a tese de que a juventude perdeu a causa. Isso é saudosismo barato.” Teorias à parte, não há como negar que a efervescência do movimento dos caras-pintadas construiu uma geração de dirigentes políticos bem sucedidos. Tendo como base o primeiro escalão do movimento estudantil da época, Fórum conta a trajetória desses personagens e ouve deles, além de análises de causas e efeitos, saborosas histórias de bastidores.

Não é exagero dizer que, tal qual 1968, o ano de 1992 também não terminou, pelo menos no Brasil. “As raízes dos caras-pintadas devem ser analisadas desde a década anterior, em especial o ano de 1989, que marcou a eleição de Fernando Collor”, pontua o historiador Luiz Antonio Dias em artigo publicado na revista História Agora.

Uma aliança histórica

Sentados na sala do pequeno sobrado da família em uma pacata vila perto da estação Ana Rosa do metrô, na capital paulista, o ex-ministro do Esporte, Orlando Silva Jr, e sua esposa, a atriz Ana Petta, reviram caixas de fotos e recortes de jornal enquanto tentam lembrar detalhes do começo do namoro. Os dois se conheceram quando ele deixou sua terra natal, Salvador, onde presidira o DCE da Universidade Católica, para assumir em São Paulo o cargo de tesoureiro da UNE. Ao achar uma matéria antiga publicada no “Estadão” que mostra Orlando discursando ao microfone, Ana não resiste: “Olha como ele era magrinho…”.

Na época, ela era presidente da União Campineira dos Estudantes Secundaristas e despontava como quadro da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). Eram tempos de agitação política nas universidades públicas e privadas. Antes das denúncias contra o presidente, Centros Acadêmicos e Diretórios Centrais Estudantis fervilhavam com manifestações por mais vagas e mensalidades menores.

Embalado pelo som da Legião Urbana e Plebe Rude, o movimento estudantil pós-89 tinha sede de ação. “Havia o eco da redemocratização”, lembra Ana Petta. “Logo no começo da gestão Collor, já havia um caldo político que mobilizava as lideranças do movimento estudantil”, lembra Ricardo Abreu, o “Alemão”. Nos anos 1990, ele foi o representante do poderoso Comitê Central do PCdoB nos congressos da UNE. “Foi em um Coneg [Conselho Nacional das Entidades Gerais] da UNE, em dezembro de 1991, em Curitiba, que aprovamos o ‘Fora Collor’ como bandeira do movimento estudantil. Não era fácil argumentar, mas, conforme a recessão e o desemprego foram aumentando, os estudantes foram aderindo”, lembra Alemão. “Esse debate sobre puxar ou não o 'Fora Collor' vinha acontecendo. Na cúpula do movimento estudantil havia uma divisão clara. Como o PT jurava que Lula seria eleito em 1994, muita gente no partido era contra o impeachment. O 'Fora Collor' foi aprovado antes das denúncias e era uma bandeira mais política”, diz Orlando Silva.

Foi nesse clima que Lindberg Farias foi eleito na UNE no Congresso de Niterói, em 1992. Ao puxar pela memória a linha do tempo dos eventos que culminaram com as passeatas dos caras-pintadas, Orlando recorda-se de uma pérola. “A gente roubava os carros de som da campanha do Aloysio Nunes Ferreira, que era ligado ao Quércia e candidato à prefeitura de São Paulo pelo PMDB. Como o MR8 (que era o braço jovem de uma ala do PMDB) estava conosco na direção da UNE, usávamos os veículos nas portas das faculdades e devolvíamos antes das nove da manhã. Ninguém sabe dessa história…”.

No vibrante ano de 1989, quando Lula perdeu para Collor no segundo turno, a UNE era presidida por Cláudio Langone, do PT, e o movimento estudantil ganhou musculatura. (Quase duas décadas depois, Langone seria “vice-ministro” de Marina Silva no Ministério do Ambiente). O Partido dos Trabalhadores dirigia a entidade estudantil desde 1987, quando quebrou a hegemonia do PCdoB. Mas em 1991, quando a popularidade do presidente Collor começou a sofrer os primeiros sinais de desgaste, os comunistas retomaram o comando da União Nacional dos Estudantes. “Em 1992, o PT tinha uma chapa na UNE que chamava 'Dê flores aos rebeldes que falharam'. A tese era que a UNE havia morrido. Teve um dirigente deles que chegou a dizer isso no jornal Globo”, lembra Orlando Silva.

Horizontes ampliados

No amplo gabinete do vereador Floriano Pesaro, líder do PSDB na Câmara Municipal de São Paulo, um detalhe na decoração não passa desapercebido. Embaixo de uma foto do ex-presidente estadunidense JFK e de outra de líderes tucanos, há uma foice e um martelo estilizados em um cartão postal. A imagem é emblemática de um tempo em que Floriano, assim como boa parte de sua geração, ainda não sabia muito bem o que seria feito da esquerda depois da queda do muro de Berlim.

Em 1992, Floriano, com 24 anos e já na juventude social-democrata PSDB, era presidente do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da USP. “Naquela época, a gente não discutia a questão ideológica, se o Collor era de esquerda ou direita. Era tudo muito novo para nós. No PSDB, havia uma divisão. Parte do partido havia defendido a adesão ao governo Collor”, conta. A posição dos tucanos começou a mudar conforme a situação do presidente foi se deteriorando.

A confusão ideológica daqueles tempos abriu caminho para uma inusitada aliança. Para enfrentar a hegemonia das correntes petistas na USP, o PCdoB e o PSDB selaram uma aliança. “Para nós, a social-democracia era um meio de chegar ao socialismo. O centro, em 92, era o PL [Partido Liberal]. Nós éramos de centro-esquerda”, lembra Floriano. Diante da ausência de um discurso mais incisivo do PT contra Collor no campus, a dobradinha tucano-comunista foi ganhando um a um todos os centros acadêmicos importantes, até chegar ao DCE. A mesma aliança se repetiu em outro importante núcleo do movimento estudantil, o Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP. “A aliança PCdoB e PSDB na USP durou mais de dez anos”, lembra o vereador tucano. Ele conta que foi justamente esse arranjo político que garantiu aos comunistas a vitória no Congresso da UNE de Niterói, de 1992, quando Lindberg Farias foi eleito presidente da entidade. “Nós (PSDB) levamos 95 delegados para o Conune [Congresso da UNE]. A bancada era tão grande que assustou todo mundo. A princípio, nossa ideia era fazer uma aliança com os independentes. Mas o PCdoB fez a conta e percebeu que sem nós eles perderiam para o PT. Lembro que eram duas da manhã, quando o Lindberg e o Alemão nos chamaram para dizer: 'queremos o PSDB na diretoria da UNE'”, recorda o vereador paulistano.

Depois da vitória, os tucanos escolheram o atual diretor superintendente do Itaú Cultural, Eduardo Saron, para representar a sigla na diretoria da entidade. E foi quem ele mediou a aproximação com Itamar Franco. “Eu liguei para o Lindberg e pedi para marcarmos uma audiência da UNE com o vice-presidente Itamar Franco. A ideia era ampliar horizontes. Com Itamar isolado, a tendência era abrir artilharia contra Collor. Quando a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e a ABI [Associação Brasileira de Imprensa] adotaram o 'Fora Collor', a pauta ficou mais ampla que a UNE”, relembra Saron.

O papel da mídia

A atriz Ana Petta lembra que as primeiras manifestações contra Fernando Collor em 1991 e 1992 eram vistas com desconfiança pela mídia. Havia no ar uma comparação inevitável com a geração de 1968. Em editoriais e reportagens, os caras-pintadas eram apresentados como despolitizados e a liderança da UNE era constantemente questionada. Vendia-se uma tese de que o movimento era espontâneo. Eduardo Saron, que já não está mais no PSDB, concorda, mas faz uma ressalva. “A mídia não apostava nos caras-pintadas, mas houve um momento em que isso mudou. O seriado Anos Rebeldes, da Globo, ajudou muito”.

Não era o propósito da Globo, mas, ao colocar uma série que retratava a luta estudantil contra a ditadura, a emissora que elegeu Collor criou um caldo de cultura favorável ao movimento. “Quando fomos mobilizar a grande passeata de 11 de agosto de 1992, usamos esse slogan: 'Anos Rebeldes: próximo capítulo é o Fora Collor'”. A turma de comunicação da UNE foi sagaz. A música do Caetano Veloso era o hit: “… caminhando contra o vento, sem lenço sem documento…”, lembra e canta Orlando Silva.

Entre os caras-pintadas que entraram no clima estava o jovem ator da Globo, Marcelo Serrado, que interpreta o mordomo Crô na novela Fina Estampa. O ex-ministro lembra que a obsessão da Folha de S.Paulo em dizer que o movimento dos caras-pintadas não tinha líderes era tão grande, que certa vez o jornal publicou que a saída de uma manifestação seria no vão do Masp, quando na verdade seria no centro. A ideia deu errado e apenas 20 pessoas foram ao local indicado, contra 20 mil que seguiram a orientação da UNE. Entre as gerações de 1968 e 1992 há uma diferença básica que jamais foi devidamente registrada pela mídia: a segunda, pelo menos em um primeiro momento, saiu vitoriosa.

O papel dos secundaristas

Quando presidiu a UNE, o hoje senador Lindberg Farias acabou incorporando o rosto dos caras-pintadas. Mas apesar do protagonismo da UNE, a massa que enchia as manifestações era majoritariamente formada por estudantes secundaristas. Em 1992, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) foi reunificada em uma só entidade. Até então, havia duas organizações nacionais, uma dirigida pelo MR8 e outra pelo PCdoB. Com o acordo, definiu-se que dois coordenadores, uma de cada força política, se apresentariam como líderes da Ubes: Mauro Panzera, pelo PCdoB, e Antonio Parente, o Totó, pelo MR8. Hoje, Totó é chefe de gabinete de Lindberg Farias.

Publicado na Revista Fórum