Cap. XXV Quis um sonho, mas…

Quando reabriu a quitanda, Chica expôs a única estatueta que fez durante o retiro. Uma mulher confinada numa enxovia, mãos e pés atados ao estrado da cama; nua, gritando sob dores muitas. Um carrasco arrancando-lhe a cria da barriga com um fórceps. Aterrorizante não era o feto sendo expelido do útero, a cabeça macerada pelo ferro; era o terror no rosto da mulher. A imagem fora engendrada nos seguidos pesadelos que Chica tivera.

Modelara a feição inspirada no rosto da Monalisa; moldara os traços iguais à desafetação do modelo; depois, descompôs arreganhando os olhos, as pupilas saltando das órbitas, a boca num esgar de horror, o queixo torto. Uma dor viva.

Expôs sobre a mesa, cobriu numa redoma ao lado de surubas diversas. Ouviu propostas de compra, recusou-as. Quis olhá-la todos os dias, acostumar-se à perda, sobrepor-se à dor, ao medo.

No massapê, a velha Teotônia observara-a até entrever a criação; depois, contou às negras. Teve início uma romaria à quitanda. Os bancos, cada um ao lado das paredes, foram ocupados por negras de chita, colorindo o marrom acinzado das estatuetas, da Monalisa com a gravidez violada. Chica sorria, mostrando outra vez os dentes brancos. No fim de cada tarde, servia o chá trazido pela tia. Quando as negras fartaram a imaginação com dores, a quitanda retomou a rotina dos turistas.

Chica lembrou-se do canteiro devoluto no outeiro do Carmo. De manhã cedo, subiu, encontrou as plantas do mesmo modo como as vira pela última vez. Pisadas por foliões cegos, não tinham a energia da flor plena, mas se recuperavam com as raízes intactas. A chuva da madrugada da terça-feira de carnaval, lhes fora dadivosa. As margaridas, ainda na meia-idade, tinham pouca radiação nas pétalas. As açucenas alvas, soltando o perfume de leite fresco, pediam para ser colhidas. Chica as afagou. Visitou o canteiro adotivo por uma semana. No domingo, impaciente, levou um saco pequeno com esterco para servir de adubo. Semana seguinte, as margaridas adultas, o perfume de leite fresco nas açucenas, como um incenso, roubaram a fragrância da vegetação em redor. As begônias, com flores e folhagem viva, tinham pequenos frutos em forma de cápsulas com três asas. Ela disse às negras. Soube das propriedades antitérmicas dos frutos. Voltou a colher hastes para enfeite da quitanda, da oficina, dos aposentos onde dormia com Maújo.
Na penteadeira, reacomodou ninharias de uso feminino. Na otomana, repôs O Romanceiro… Com o espanador, limpou os móveis, livros, a imagem de Ogum; reiterou a confiança na planejada prenhez ainda por vir. A liamba, oculta no fundo do baú junto a calcinhas, guardou-a num porta-joias de madeira entalhada, antigo, com forro de seda. Não quis fumar, não queria beber, evitou comidas calóricas. Comeu feijão-verde, fava-verde, arroz integral, postas de peixe, lentilhas. A cozinha da velha Teotônia entranhou-se de outros cheiros. Maújo sentiu falta do contato com o garçom do Maconhão, sentiu-se imperfeito por não tê-lo recrutado.

O mênstruo não viera; a notícia foi dada na primeira reunião com Chica, por Chica. Gertrude socorreu-se na circunspecção de Marx. Caetano embaraçou-se com Maújo, responsável também pela gravidez perdida de Gertrude. Queria que interviesse para controlar, supunha, o impulso anárquico de Chica. Gertrude reiterou as boas-vindas à nova militante, modo seguro de sentenciar as responsabilidades de todos. Caetano cobrou o molde de artesãos em passeata, em assembleia contra o secretário. Sufocaram no começo os modos de indisciplina em Chica.

– Mãos à obra! – incitou Maújo.

– Só não me convidem para beber licor de araçá.

Os dois saíram de mãos dadas, percorrendo o caminho que ele fizera depois da última reunião com Xisto. No largo, observaram-no, imaginando-o ocupado por artesãos revoltados, em assembleia. Na Ladeira da Misericórdia, ele mirou cada pedra do calçamento; não viu, como no passado, uma laje tumular com a data de seu recrutamento e da reunião fatal. Não sentiu culpa por não estar sentindo falta de Gertrude.

Chica quis ir à quitanda, urdir o lugar onde poria uma peça que engendrara, sem prejuízo da primeira tarefa. Queria se ver com os cabelos açoitados pelo vento, subindo a Ladeira de São Francisco, com o vestido abaixo dos joelhos cobrindo a prenhez. No quarto, olhou-se no espelho da penteadeira, de frente, de lado, o perfil do rosto, para jogar-se no autorretrato. Nutriu-se no espelho, na expressão desafetada da prenhez. Dormiu tarde, acordou com fome. Uma semana após, terminou; pôs a peça na prateleira da quitanda, junto à da mulher sendo açougada. As pernas, cuidara para uma ficar mais grossa, inchada, com varizes. Para ela, descer e subir ladeiras com a barriga cheia, seria um balé de mulheres parideiras, sem queixas, convivendo felizes com o desconforto.

O medico confirmou a gravidez. Quis abraçá-lo, chorou feliz.

De algum tempo vinha evitando a rua Prudente de Morais, reduto das beatas. Quando saiu do consultório, subiu a rua 15 de Novembro. O propósito era passar em frente à prefeitura, olhar sem assombro a janela do secretário, fitar-lhe nos olhos, expor a barriga sob as rendas do vestido. Na esquina, atravessou a rua, sentou no banco ao lado da estátua; sentou como se estivesse acomodada na espreguiçadeira da tia. Observou o prédio. O secretário, avisado pelo instinto cavouco, descera a escada principal, em direção à porta. A intuição com que distinguia em cada par de olhos um aliado em potencial, essa mesma o pôs frente a frente com a concessionária da quitanda.

A odiosa sardenta sentara-se como uma venturosa cidadã em dia com os seus deveres, em frente ao palácio do governo, à sala onde desafiara o desígnio da autoridade. “Tem coragem, a leviana do massapê! Veste-se como hippie, as unhas com a pestilência da lama, não cuida dos cabelos imundos, e desafia sem disfarce o poder do município. Mulher insana, é capaz de assoviar como uma cascavel, dizer impropérios com a hóstia na boca; tem visgo nos olhos, mira como uma paciente cobra de olho na presa. Pode ser útil na caça ao voto católico, mas pode ser inconveniente por estar só, ter a aparência de uma inocente sem defesas. Essa agora… Tenho uma pedra no sapato e não sabia. Livro-me do sapato ou da pedra?”

Livrou-se dos brios, não se livrou da concessionária da quitanda. Desceu os batentes e, na calçada, olhou para ela como se cedesse a uma fatalidade. Não queria ser inculto, nem dar mostras de que sua candidatura seria vulnerável à estética de artistas fora da lei. Murmurou um bom-dia, mais com o queixo do que com os lábios semiparalisados.

Ajeitou o paletó de linho azul-escuro, quase a mesma cor do vestido de Chica. Ele, ajustado ao padrão do prédio da prefeitura; ela, à cor de Ogum. Não obteve resposta ao cumprimento. Chica, que interrompera a observação da fachada do prédio, ocupou-se d’O Romanceiro:

Do cimo de alguma escada,

Profere-se alguma arenga?

Que bandeira se desdobra?

Com que figura ou legenda?

Seguiu em carro oficial, ele. A arenga longe estava do fim. Seguiu confiante nos desígnios. Mandou o motorista acelerar, teve pressa.

Ela, na rua Prudente de Morais, olhou para as janelas. Meio-dia. Não havia sombra nas calçadas. Em cada porta ouviu o choque de talheres nos pratos. Sentiu o cheiro de feijão-casado, toucinho fumeiro incensando corredores, chegando à rua. Foi para a casa da tia, com raiva do casamento perfeito das gentes. As beatas, nutrindo o ódio à artesã, descumpriam a moderação prometida nas rezas; comiam mudas para não reavivar remorsos. Felizes, não se confessando felizes, com medo de se flagrarem em perjúrio. Depois, sentadas nos sofás, dementes ao reclamo dos estômagos.

Disposta, Chica quis fruir sozinha a confirmação da prenhez. Na espreguiçadeira, sob o terraço da oficina, afrouxou sob o peso do arroz integral. Não teve dificuldade de logo dormir. Nunca sonhava, tivera pesadelos e suas noites, via de regra, emendavam rápidas com o dia. Acordou como se não tivesse dormido, sem estremunhados. Sentada ainda, quis um sonho como uma criança quer um algodão-doce; lambeu os beiços como se o sonho tivesse gosto.

Ouviu a conversa de desocupados sob o fícus do Amparo; entranhou o burburinho na memória, deu-lhe a imagem de Bibiu; no caixão, levado pelas duas sobrinhas para o Cemitério do Guadalupe. Atrás, artesãos, ceramistas em animada conversação. Ninguém chorando, conversando sobre a influência da obra de Bibiu em seus trabalhos. Cantando hinos em língua africana, um dialeto nunca ouvido por ela. Riam como se fossem acomodar o morto num altar onde seria venerado pelo resto da morte. Não estava pálido, Bibiu; rosto rosado, pálpebras semifechadas. No fim de todos, ela, Chica, seguindo com uma criança de peito nos braços. Não distinguiu traço familiar no rosto do menino, rosto sem forma, não soltava ruídos, debatendo-se para alcançar o bico da mama da mãe. Desesperado, com fome, encostando a face sem boca no peito inchado de leite. Com a mama do lado de fora da blusa, com igual aflição, querendo ajustar o bico em algum orifício por onde o leite alimentasse o filho. Pediu ajuda aos amigos artesãos, ouviu risos dementes.
Bibiu foi posto num altar semelhante ao de Ogum. O velório não teve fim. Ninguém saiu dali, velando a morte, o mestre.

– Meu amor! Meu amor!

Maújo acordou Chica de noite, de volta do trabalho; acordou-a para tomar um leite quente.

– Ela recusou.