Pesquisadora aborda riscos da reprodução assistida para a mulher

Formada em medicina pela então Escola Paulista de Medicina em 1972, atual Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a feminista Ana Reis se debruça há anos em pesquisas sobre manipulação de embriões humanos com recorte de gênero. Fez parte do grupo técnico do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) e criou no Ministério da Saúde uma Comissão de Estudos dos Direitos da Reprodução.

Mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela UFBA, Ana Reis expõe o que ela chama de “visão feminista radical e não religiosa sobre o uso dos embriões humanos”, tema que, segundo ela, carece ainda de muito debate. Por que o processo de fertilização in vitro pode ser maléfico para as mulheres? Qual o papel que as mulheres desempenham na corrida científica por avanços na manipulação de células-tronco? Como os órgãos institucionais ligados à saúde atuam no tema? O que a Monsanto e a lei de biossegurança têm a ver com tudo isso?

Caros Amigos: Por que você acha que o processo de fertilização in vitro pode ser prejudicial para as mulheres?
Ana Reis: É um processo que tem muitos riscos e muitas falhas. As estatísticas são muito precárias e muitas vezes não verdadeiras. Eu estava olhando as estatísticas europeias e quando você fala só em fertilização in vitro, sem entrar em inseminação artificial, nos principais países da Europa as taxas de sucesso são de 20%, no máximo 25%. Ou seja, as taxas de fracasso são de 80%.

A questão toda é muito focada nos embriões, acredito que temos que trazer o foco para a saúde das mulheres e os riscos que elas correm. A coleta dos óvulos é um procedimento que fica sempre oculto, não aparece, as pessoas não conhecem isso. E é aí que está o risco maior, o risco da hiperestimulação ovariana. É uma doença que não existia e hoje tem até uma síndrome causada pela intervenção médica. Em casos leves vai desde o aumento do tamanho dos ovários até casos de vazamento de água para o abdômen, coma e até morte. Minha preocupação do ponto de vista médico é essa, mas há também as muitas implicações sociais desse processo da medicalização da reprodução humana.

Caros Amigos: Fale um pouco sobre essas consequências sociais.
AR:
No Brasil existe um vácuo enorme da legislação sobre isso. Faz mais de 30 anos que esse processo está acontecendo no país e até hoje não se legislou convenientemente. Os legisladores são tão preocupados com a questão do aborto. Por que esse desinteresse em regulamentar o uso de embriões humanos? Quem tem feito as discussões do que se pode ou não fazer é o próprio poder médico, o Conselho Federal de Medicina (CFM). Comparando as resoluções do CFM sobre doação e comércio de óvulos, vemos que em um documento de 1992, as clínicas e os médicos tinham obrigação de dizer quantos embriões foram formados, quantos óvulos colhidos. Já na modificação feita em 2010 isso não mais aparece. Então as mulheres não são mais informadas de quantos óvulos foram colhidos.

A questão da procriação não envolve só aspectos biológicos, ela é eminentemente uma questão social. As estruturas de parentesco são um dos pilares de fundação das sociedades. Por exemplo, a maternidade substitutiva é conhecida popularmente como barriga de aluguel por conta de uma novela que levou esse nome. Todas essas questões estão sendo levadas à sociedade dessa forma, como por novelas, é o aspecto folhetinesco que interessa. Não é uma maneira séria de discutir a questão.

Não se pode fazer uso da maternidade substitutiva com uma pessoa desconhecida: é necessário que seja um parente ou então a ser decidido pelo CFM. Então é o poder médico que decide quem pode ou não ser aceita como uma mãe sub-rogada, que é o termo técnico. Será que a sociedade delegou isso ao poder médico? Será que tem consciência do poder desse órgão sobre esses processos? Eles que escolhem os doadores de esperma, as doadoras de óvulos. Que critérios são usados? E tudo isso é muito nuançado, mas caminha para uma seleção eugênica, e a gente sabe historicamente o que significaram essas seleções eugênicas.

Fora a questão da construção social do desejo de maternidade. É uma coisa fortíssima. Eu estava lendo aqui um parecer do Conselho Regional de Medicina de São Paulo que autorizou um médico a fazer uma maternidade substitutiva, a justificativa é “o desejo natural das pessoas de terem filho”. Esse desejo não é natural. A maternidade não é destino das mulheres, é uma construção social. Os homens não são tão desvalorizados socialmente se não têm filhos. Para as mulheres existe esse peso, é como se você tivesse falhado. O que acontece com todas essas mulheres que se submetem a altas doses de hormônios? Alguns desses hormônios são recombinantes…

Caros Amigos: O que é hormônio recombinante?
AR: Sim, a maioria das pessoas não sabe o que é: são obtidos por técnicas de energia genética que são ratas produzindo um hormônio humano. A porcentagem de pureza desses hormônios nunca é 100%. Não sei se as pessoas iriam gostar se soubessem que estão usando hormônios fornecidos por ratas, elas deviam ao menos saber. Todas essas coisas tem que ser debatidas, as mulheres tem que ter conhecimento das reais taxas de fracasso desses métodos e dos reais riscos. O CFM, nas suas resoluções teve essa preocupação de dizer que as clínicas têm que ter o registro permanente das gestações, das más formações dos fetos, dos abortamentos. Mas essas estatísticas não são divulgadas.

Caros Amigos: Você afirma que o Sistema Nacional de Produção de Embriões da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de “bancos de células e tecidos germinativos” não existe para zelar pela saúde da mulher. Por quê?
AR: A Anvisa que devia ter uma fiscalização, o que fez? Depois que foi aprovada pelo STF a manipulação e o uso para terapia e pesquisa dos embriões, foi feito um sistema de vigilância para saber o registro que as clínicas fazem do número de embriões que estão estocados. Depois de um tempo alguns ficam inviáveis e são descartados, esses embriões todos são objetos de outros interesses. Ao invés da Anvisa fazer uma fiscalização e levantar dados sobre a incidência desses processos na saúde das mulheres, o foco é só em quantos embriões estão lá disponíveis. Para quem? Para pesquisa e para a bioindústria. Esse sistema se chama Sistema Nacional de Produção de Embriões. Então o objetivo é esse? Produzir embriões? As clínicas são chamadas de bancos de células. Banco? A gente sabe o que é um banco: é uma coisa que vende para você algo que já é seu.

E o debate das células-tronco? Para a maioria das pessoas esse tema é apresentado como se fosse uma oportunidade maravilhosa de desenvolvimento das possibilidades médicas, que pode ajudar, por exemplo, a descobrir a cura do câncer.

Descobriram que as células-tronco não existem apenas nos embriões, estão no corpo inteiro. As células-tronco de fato têm o potencial de serem maravilhosas, mas por enquanto são muito mais promessas do que realidade. Faz muitos anos que se está pesquisando e os resultados não são tão espetaculares. As células-tronco adultas podem ser usadas também para fazer reparação de tecidos. Então são empregadas como se fosse uma substituição do transplante em alguns casos. É possível, por exemplo, colocar células-tronco no tecido do miocárdio que está lesado por causa de um enfarto.

Caros Amigos: E aí elas se multiplicam e regeneram o tecido.
AR: Essa é a ideia. Já que o transplante é um procedimento enorme, tem o risco da rejeição, a pessoa tem que tomar remédios pesados que mexem com o sistema imunológico. Então é claro que qualquer coisa que venha melhorar isso seria fantástico. Agora, o argumento que se usa é que só as células-tronco embrionárias são totipotentes, que podem se transformar em qualquer tecido. Será que isso tem a ver com o Sistema Nacional de Produção de Embriões? As mulheres vão ficar fornecendo embriões para isso? É proibido pelas resoluções, mas é uma coisa que ninguém controla. Quando se faz uma hiperestimulação hormonal, em que se colhe 20, 30, 40 óvulos, não se pode controlar quantos óvulos ficaram na mão do banco e quantos foram computados. Em princípio a gente confia na ética dos médicos, mas temos exemplos como o do Abdelmassih que durante anos foi dono da maior clínica de reprodução da América Latina. Tenho uma matéria que salvei aqui que é da festa de 5 mil bebês da clínica, antes de ele ter sido condenado por estupro, veja o Roberto Carlos aqui com ele. Durante anos esse médico exibiu os pacientes famosos, que é contra a ética. E o CRM de São Paulo nunca se incomodou com isso. Foi, no mínimo, omisso. Ele estava toda hora na televisão. Outro dia um médico, Marco Augusto Bastos Dias, consultor da área técnica da saúde da mulher do Ministério da Saúde, que defendeu as casas de parto, recebeu uma censura pública por parte do Conselho. E o Conselho não fez nenhuma censura pública para o Abdelmassih. Por quê?

Caros Amigos: E o que a Monsanto e a lei de biossegurança têm a ver com essa discussão?
AR: Todo o debate das células-tronco, quando foi lá para o Supremo, o que é que acontece? Foi oficializada na chamada Lei da Biossegurança, que na verdade é a lei que regulamentou e legitimou o uso dos transgênicos. A soja transgênica vinha sendo contrabandeada, estava numa situação ilegal. Então essa lei legalizou a questão dos transgênicos e toda uma série de outras manipulações genéticas. Além de algumas coisas que a indústria farmacêutica e de testes biológicos já usava, como os hibridomas. Será que todos os deputados sabem o que é um hibridoma? Eles estavam legislando sobre hibridomas.

Caros Amigos: O que é um hibridoma?
AR: São células híbridas resultantes do linfócito B tirado do baço de animais que são fusionados com células de mieloma, que é um câncer da medula óssea humana. O câncer é usado para multiplicar enormemente essas células, que fornecem anticorpos. São usadas nos testes de algumas doenças, então se pode marcar se a pessoa tem ou não uma reação imunológica àquela doença. Essas coisas todas, como já estavam estabelecidas, ficaram fora da lei. Entraram outras, principalmente a manipulação das sementes, que são todas patenteadas. A manipulação das células embrionárias humanas foi embutida nessa lei. Outra pergunta: o que faziam os embriões humanos na lei da soja transgênica da Monsanto? Evidente que tinha um lobby enorme para aprovar essa lei e os embriões humanos foram no meio.

Não estou sacralizando os embriões. Não acho que eles são intocáveis. Quando a igreja entrou, por meio de um advogado, com uma ação de inconstitucionalidade da lei no Supremo, o STF, por uma acrobacia jurídica, separou os embriões que podem ser manipulados com a questão do aborto. Ah sim, uns foram feitos numa clínica, os outros estão dentro do útero de uma mulher, então são completamente diferentes. Uns pertencem aos seus “criadores”. Os outros… não pertencem às mulheres. É claro que os embriões são os mesmos! Mas a vontade das mulheres nunca é respeitada.

Caros Amigos: E como é o processo de obtenção desses óvulos?
AR: Os espermatozóides são muito fáceis, todo mundo sabe, é por masturbação. Os óvulos não são obtidos por masturbação e nem saem espontaneamente. A gente normalmente produz um óvulo por ciclo. Esse processo vai ser totalmente monitorado por fora, então não pode ter nenhuma produção endógena do próprio corpo da mulher. Então eles silenciam o hipotálamo e começam com a hiperestimulação da formação dos óvulos. Depois tem que dar outro tipo de hormônio para que esses óvulos saiam do ovário. Quando um óvulo sai do ovário, a trompa do útero é atraída quimicamente, se move, e capta aquele óvulo. Aí ele vai nadando pela trompa e vai encontrar com o espermatozóide.

Com a hiperestimulação, eu já vi relatos e artigos que falam na captação de 40, 50 óvulos. Então imagina como fica o tamanho do ovário. Você, então, tem que ficar monitorando hormonalmente e vai fazer vários ultrassons. Então é um processo que durante aquele mês a mulher tem que ficar totalmente voltada para isso, com aplicações diárias de hormônios. Vai fazer vários exames também e quando acharem que os óvulos estão maduros eles têm que ser aspirados. A captação é por uma agulha com uma seringa que entra pela vagina e isso é um processo cirúrgico, feito com anestesia. Vai botar numa placa de Petri, fazer a fecundação. Ou eles são transferidos à fresco, que dá menos fracasso, ou são congelados.

Os riscos têm que ser conhecidos. Se a pessoa tiver pleno conhecimento dos riscos que envolvem o processo e as taxas de fracasso, talvez ela se decida por outra coisa. E mesmo se decidir por isso, está ciente do que acontece e o que acontecerá com o corpo dela a curto, médio e longo prazo. Porque esses hormônios continuam lá, é difícil fazer essas estatísticas porque existem vários outros fatores que podem influenciar os números, mas já estão falando que aumenta a incidência de câncer de mama, ovário, endometriose, etc.

Caros Amigos: Como se adquirem os embriões para pesquisa?
AR: A comercialização de embriões é proibida. Os usados em pesquisas são esses chamados excedentes da fertilização in vitro. Porque a fertilização in vitro é necessariamente excedente. A pessoa quer ter um filho, eventualmente deixa outro congelado, mas ninguém quer 10, 20, 30 filhos.

Caros Amigos: Quais os interesses econômicos por trás da manipulação de embriões?
AR: Tem um artigo, “Por trás da fraude coreana”, de H. T. Goranson, que saiu no Jornal da Ciência em outubro de 2006, comentando a fraude na Coreia, que um pesquisador lá anunciou que tinha feito a primeira linhagem de células-tronco. A grande questão é essa: como a célula-tronco ativa as transformações? Como uma célula se transforma nesse e naquele tecido? Tem uma corrida enorme para descobrir isso.

Porque se as técnicas de reparação de tecido realmente derem certo e o uso crescente de embriões para testes de novos medicamentos (a indústria farmacêutica, ao invés de testar em pessoas testa em tecidos de embriões, o que considero bom) também funcionar, todos esses processos de modificação de tecidos podem ser patenteados. “Quando cientistas descobrirem como ligar/desligar esses comutadores, poderá ser possível implantar células-tronco no organismo e ativá-las para que substituam corretamente tecidos danificados, sejam quais forem. A competição ganhou dramaticidade máxima depois que a principal força pesquisadora, os EUA, abandonou a corrida devido à influência da religião na política”. Ele fala que o país que conseguir ganhar essa corrida vai acrescentar à economia de seu país o equivalente a um campo petrolífero! As mulheres serão postas a fabricar esse petróleo? As mulheres que vão a essas clínicas sabem que estão fazendo parte de um sistema nacional de produção de óvulos?

Ainda que a busca por uma enorme quantidade de lucro esteja por trás do processo dessa pesquisa científica, do ponto de vista médico e tecnológico parece interessante que consigamos manipular essas células embrionárias. Como seria possível fazer esse tipo de pesquisa sem que os corpos das mulheres fossem usados como máquinas de produção de óvulos?

Com células-tronco adultas. Muitas pesquisas já estão sendo feitas com células-tronco adultas. Quando eu li esse artigo fiquei me perguntando se a verdadeira insistência no uso das células embrionárias não é por conta do patenteamento. Aliás, como é que se chegou ao ponto dessas coisas serem patenteadas? Existe uma luta internacional muito forte contra o patenteamento de sementes, sejam vegetais ou animais. É a mercantilização da vida. Aqui no Brasil parece não estar na pauta dos movimentos. Eu também acho que seria fantástico o avanço científico nessa questão, mas ainda não temos os resultados dessa pesquisa, dessa corrida. Os sucessos e as possibilidades são sempre anunciados de maneira propagandística, espetacular. Eles aumentam as expectativas para ter mais dinheiro para as pesquisas. Em um artigo publicado na Folha de S. Paulo, chamado “Paixão emperra debate, afirma cientista”, de Marcelo Leite, o entrevistado, o médico José Eduardo Krieger, afirma que pode “legitimamente dourar a pílula” e adotar uma hipocrisia aceitável quando você infla as possibilidades de sucesso dessas técnicas. “O auto-engano às vezes tem o seu papel numa sociedade”, ele fala.

Caros Amigos: Você chegou a dizer que a Igreja Católica tem ligação com laboratórios que trabalham com embriões, é isso?
AR: Sim, a Igreja Católica era sócia do laboratório que faz os hormônios que estimulam a produção de óvulos.

Caros Amigos: Que laboratório?
AR:
O Serono. No fim do século 19 já existiam pesquisas com os hormônios, mas elas se intensificaram depois da I Guerra Mundial. Na Europa morreram muitas pessoas, principalmente homens, então o repovoamento da população era estratégico. Então houve muita pesquisa para estimular isso, reverter o alto índice de infertilidade, etc. Descobriram que na urina das mulheres menopausadas existe um hormônio, gonadotrofina, que é muito parecido com o hormônio da gravidez. Então precisava de muita urina de mulher menopausada para colher aqueles hormônios. Iam caminhões pipa dos conventos italianos para a Suíça, que é onde o laboratório estava sediado.

Caros Amigos: Caminhões pipas de xixi de freiras?
AR: Sim. Eu vi o caminhão pipa em folheto de propaganda do laboratório. E esse laboratório, dos anos 1980 para cá, só cresceu. O volume de dinheiro que envolve a fertilização in vitro no mundo é da ordem dos bilhões de dólares. Esse laboratório foi comprado recentemente pela Merck, que todos os laboratórios que dão certo os grandes papam. E passaram a fazer hormônios sinteticamente através da manipulação genética das ratas. Criou-se um mercado enorme para isso e o Vaticano era sócio do laboratório. É muito difícil rastrear se ele continua sendo.

Caros Amigos: Para terminar, conte um pouco como foi o episódio que estreou esse processo no Brasil.

AR: No Brasil essa coisa toda começou já com um espetáculo. O Nakamura, um dos pioneiros da fertilização in vitro no Brasil, fez um acordo com a Rede Globo. Vieram os médicos da Austrália para ensinar como se fazia a transferência de embriões. Então preparam 10 mulheres para fazer o processo. Alugaram dois andares do Hospital Santa Catarina, um só para a Rede Globo, que patrocinou tudo com a contrapartida da exclusividade na transmissão. E durante o show, uma mulher morreu, Zenaide Maria Bernardo.

Caros Amigos: E aí?
AR: Ficou por isso mesmo.

Fonte: Caros Amigos