Saudades da menina Jenny, cronista desde o berço

A idade enfim traz a descoberta de que cumprir tarefas não é viver, por mais que a gente dependa delas para sobreviver, e nesse acúmulo de compromissos que preenchem nossos dias, deixamos de lado pessoas que, mesmo longe, ocupam um espaço que ninguém mais preenche no nosso coração. Assim a dona Jenny…

Impossível esquecer tantas e tantas tardes almoçando, tomando o "café da dona Jenny" e ouvindo alegres histórias sobre pombos, que ela transformava em verdadeiros personagens de contos. Eu, menina, conseguia admirar aquela qualidade superior que ela possuía de buscar e encontrar pequenas alegrias nas coisas cotidianas.

Para dona Jenny, a nossa vida prosaica ganhava uma música especial de fundo, jogos de prata e ouro provocados por lua e sol, estrelas invisíveis para os mortais que transformavam o cenário de uma janela, de frente para quinhentos prédios de Perdizes, em uma vista para descobertas só dela. Preenchia com a imaginação o que não era fato e se consagrava entre os íntimos como a melhor contadora de histórias da nossa roda.

Ingênua, eu pensava que um dia, quando eu estivesse mais livre (entenda-se com mais tempo para a vida pessoal) poderia enfim visualizar e compartilhar com a dona Jenny essa beleza extraída da simplicidade do acaso, pudesse me tornar mais parecida com ela, ficar mais atenta às coisas à volta, mais amorosa com os que me cercavam, mais dedicada ao que vale a pena.

Descobri que não era uma questão de idade, mas de vocação, esses olhos abertos para um mundo interior mais rico que o da maioria das pessoas sempre foi um traço marcante da dona Jenny, uma cronista não publicada, mas que, curiosamente, tem fãs por esse Brasil..

Pelos relatos dela, conheci Juazeiro e um pouco da Rússia, além dos anos 1950 em São Paulo. Nós duas vivemos despedidas, choramos e demos muitas risadas, enfrentamos perdas inexplicáveis, mas conseguimos por bom tempo nos falar muito e com imenso amor ao telefone.

Eu priorizava, nas raras vezes em que ia a Atibaia, visitá-la, conversar com seus bichinhos, falar de intimidades de mulher, esboçar pequenos sonhos de menina que ela nunca deixou de ter e que não levamos adiante. Depois senti, e é o que dói, que a decepcionei. Por um único motivo: falta de tempo, distância no espaço e não no coração.

Se eu fosse uma pintora, produziria com tintas generosas o seu retrato num quadro, pra homenageá-la nesse dia da sua partida. Ele seria colorido, luminoso, inspirador. Mas só sei lidar com palavras e elas são muito insípidas para dar conta de sentimentos. Se me alongo, canso o leitor, se resumo, perco a magnitude da pessoa. Se falo de amor, resvalo em lugar comum, mas é aqui que me arriscarei: eu a amo e ia vê-la neste domingo, pra lhe dizer isso, pra abraçá-la, pra lhe propor inventarmos um lugar em que pudéssemos, daqui pra frente, exercer nossa cumplicidade acima das circunstâncias difíceis que a esperavam fora do hospital.

Acho que ela foi poupada das limitações da doença e eu, duramente, impedida de dizer o quanto a amava e o quanto ela vai permanecer eternamente nas minhas lembranças.

Um presidiário, que cumpriu mais de 30 anos de prisão, passando por todo o inferno de pena perpétua, solitárias, surras, assassinato em defesa própria, me disse que preza muito o tempo e que por isso não gostava de entrevistas. Em poucas linhas, traçou o contorno de um mundo paralelo ao meu e que, no entanto, compreendo. Ele topou uma conversa porque eu entendi sua seletividade e urgência: a vida é curta, o tempo é vida, essa é a preciosidade de existir com verdadeira consciência do que e de quem escolhemos, do que fazemos e do que recusaremos como desimportante.

Ah, dona Jenny, olhando o passado recente, faltou tempo pra nós duas, mas indo mais atrás, revejo seu olhar, sorriso e sua xícara de café sempre estendida na minha direção, sei que tivemos o bastante para você me influenciar pelo resto da vida. Sua imagem que agora mora em mim vai continuar me levando a lágrimas e risos, suas lembranças continuarão dialogando comigo, me ensinando. Nossa história não acabou!

Por Christiane Marcondes, de São Paulo