Ciência brasileira mais perto da reabilitação pelo pensamento

A ciência, em especial a brasileira, caminha a passos largos em busca de tecnologia que permita às pessoas que perderam os movimentos do corpo – e mesmo aquelas que nunca puderam andar – passarem a se movimentar a partir de comandos de seu próprio cérebro. Embora pareça ficção científica, a reabilitação por meio de membros robóticos controlados por sinais cerebrais é um sonho cada vez mais perto de se tornar realidade.

As pesquisas são tão promissoras que já foram incluídas numa lista do prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts, dos Estados Unidos, que reúne as técnicas científicas que têm tudo para mudar o mundo nos próximos anos.

O líder dos estudos é o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, professor do Departamento de Neurobiologia e co-diretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, no estado americano da Carolina do Norte, e diretor científico do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), localizado na periferia da capital potiguar. De 12 anos para cá, Nicolelis e seus colaboradores têm se destacado na busca de sistemas capazes de integrar o cérebro com máquinas, as chamadas neuropróteses ou interfaces cérebro-máquinas. O objetivo desses estudos é desenvolver mecanismos ligados ao cérebro para a reabilitação de pessoas que sofrem de paralisia.

Em palestra realizada recentemente em São Paulo, o cientista reafirmou um desejo de todo o seu grupo. “Se o governo brasileiro permitir, uma criança ou adolescente, que sofra de paralisia, usando trajes robóticos movidos por sinais cerebrais, vai dar o ponta-pé inicial no jogo de abertura da Copa do Mundo de 2014”, afirmou, sob aplausos da plateia. Isso será possível porque ele e seus colaboradores já conseguiram criar um sistema que permite a criação de braços robóticos controlados por meio de sinais cerebrais. Ou seja, é a força do pensamento libertando o cérebro para ir muito além dos limites físicos impostos pelo corpo.

Sentimentos, emoções

Esses estudos inovadores liderados por Nicolelis começaram nos Estados Unidos há 12 anos, com o advento de novas tecnologias que permitiram a leitura da atividade elétrica do cérebro – as chamadas tempestades elétricas – e delas extrair comandos que podem ser transmitidos, à mesma velocidade, para braços robóticos. Conforme ele explicou, pensamento, sentimentos, emoções, ódios, amores e até a ação motora desencadeada pelo estímulo visual vindo de um semáforo – parar, avançar ou acelerar ao amarelo, antes que o sinal fique vermelho – advêm dessas tempestades.

Sabendo disso, os pesquisadores registraram o disparo de 100 células cerebrais de um macaco. E, pela primeira vez na história da neurociência, decodificaram essa mensagem e transmitiram os sinais – ou comandos – para artefatos robóticos. Essa comunicação direta, que eles chamam de interfaces cérebro-máquina, proporcionou a criação de um processo gradual que permitirá que o cérebro possa então ampliar os limites de sua atuação.

Conforme Nicolelis explicou, cada vez que nós queremos falar ou mexer a mão, é como se o cérebro criasse um programa motor e o mandasse para o resto do corpo. É exatamente isso que foi replicado por um software sofisticado desenvolvido pela equipe. Eles registraram, simultaneamente, centenas de neurônios de um macaco, extraíram todas as mensagens motoras e em seguida as remeteram para um braço ou perna robótica ou um corpo virtual. “Essas pesquisas, ainda em primatas, deverão sair dos laboratórios e chegar à prática médica em algumas décadas, suplantando a medicina de reabilitação”, disse.

Como as experiências foram feitas?

Atualmente muito famosa entre os cientistas do mundo todo, a macaca Aurora foi treinada para usar controles de videogames e outros jogos de computadores. Enquanto jogava, a atividade elétrica do seu cérebro era transformada em sinais digitais para máquinas, braços e pernas robóticas, todos programados para reproduzir os movimentos do animal durante o jogo.

Depois que Aurora mostrou ter aprendido a usar o próprio corpo e a mente para jogar, o passo seguinte foi remover o joystick, ativar a interface cérebro-máquina e fazer o animal relaxar, tendo apenas o trabalho de imaginar os movimentos necessários para ganhar o jogo. Conforme o cientista, assim como os humanos, os macacos também gostam de ganhar e, principalmente, adoram os prêmios – no caso, suco de laranja. Essa semelhança permitiu, pela primeira vez na história da ciência, a um cérebro se libertar dos limites físicos de um corpo e, em tempo real, interagir com uma máquina para realizar uma tarefa que até então só o corpo do primata podia fazer.

Os pesquisadores então enviaram sinais de cerca de 100 células cerebrais para os computadores que alimentavam um braço robótico em outra sala do laboratório, que eram alimentados pela atividade que vinha diretamente do cérebro da Aurora, agora transformada em sinais digitais de modelos matemáticos. “Na sequência ligamos a interface cérebro-máquina e, como boa primata, Aurora aprendeu a jogar e a ganhar sem mover um músculo. Ela imaginava a trajetória a fazer e o braço robótico fazia o movimento”, lembrou o cientista.

Tal demonstração sugeriu para os cientistas que aquele braço estava sendo assimilado pelo cérebro da primata como extensão do modelo de corpo que existe dentro de cada indivíduo. Ao olhar a atividade elétrica das células cerebrais do animal, eles puderam demonstrar que as células passaram a responder também pelo braço robótico. Um mês depois, Aurora aprendeu a jogar com a mente e usava seus braços para se coçar ou cutucar os pesquisadores.

Hipótese Pelé

A teoria, conforme explicou, foi aceita pelos cientistas americanos somente a partir da formulação, por Nicolelis, da Hipótese Pelé, segundo a qual ferramentas e utensílios criados pelos humanos passam a ser extensões de seus corpos. É algo como a representação cerebral de Pelé na qual a bola seria uma extensão do seu corpo.

A hipótese foi testada mais tarde por cientistas japoneses. Nos seus laboratórios, os macacos eram levados a alcançar, com a ajuda de rastelos de brinquedo, as frutas que estavam longe do alcance natural das mãos. As células cerebrais ampliaram suas respostas visuais, incluindo os rastelos. Em Princeton, nos Estados Unidos, um cientista criou uma experiência em que usava uma barreira para impedir que os voluntários vissem seu próprio braço, mas, no lugar visualizassem um braço de plástico, como de manequim de loja.

O estímulo da visão, por três minutos, sobre seu falso membro, fez com que 90% deles dissessem que seu braço era o de plástico. E numa outra etapa do experimento, quando se tentava esfaquear o braço falso, a frequência cardíaca dessas pessoas aumentava e elas puxavam o braço de borracha como reflexo de defesa, achando que estavam sendo atacadas.

Em 2011, essa experiência foi reproduzida com macacos, só que desta vez com braço virtuais capazes de estimular a pele desses braços reais. Imagens da região cerebral que coordena o tato mostraram que essas células respondem como se o próprio corpo tivesse sido tocado. “Por três minutos, as células cerebrais desses animais acreditaram que aqueles braços virtuais projetados na frente deles era parte da configuração do corpo, a ponto de o cérebro responder como se eu estivesse encostando no braço deles”, disse Nicolelis. “Eu não posso conversar com os animais, mas, a partir desses resultados, tenho a certeza de que eles sentiram sendo tocados no braço que não existe”.

Conforme ele explicou, foi descoberto recentemente que a interface cérebro-máquina não depende da retina ou da pele para que se consiga levar o cérebro a pensar que o corpo que ele habita se expandiu. E que essas experiências criaram uma linguagem para dialogar com o cérebro por meio desses sinais elétricos que retornam a ele, sinais esses que se originam de uma ferramenta artificial para que o cérebro pense, imagine, que o corpo foi transformado. “E fizemos isso, um código elétrico que codifica texturas virtuais, que nenhum de nós jamais experimentou, e com os quais começamos a alimentar o cérebro dos macacos para que aprendessem a experimentar texturas nas quais jamais tocaram, mas que agora podiam com dedos virtuais sob o controle de sinais mentais de um macaco”, disse. Em 40 dias, os macacos aprenderam a diferenciar objetos de acordo com as microtexturas na superfície, usando um corpo que não existe – o corpo de um programa de computação.

“Esta foi a primeira vez que tudo funcionou, que a interface cérebro-máquina foi usada para alimentar um corpo do ponto de vista sensorial. O cérebro comanda um braço virtual e ele sente que esse braço virtual”, disse. “Ou seja, ficou demonstrado que é muito fácil alterar a sensação interna do que cada um tem do que é o corpo temos.”

Do outro lado do mundo

Há quatro anos, a equipe de Nicolelis treinou uma macaca para andar ereta sobre a esteira ergométrica no laboratório americano. Por meio de eletrodos ligados ao cérebro numa região com 100 milhões de neurônios, registraram os sinais cerebrais e os transmitiram por meio de um sistema sofisticado de internet a um robô humanóide num laboratório japonês. Do outro lado do mundo, ele movimentava suas pernas quase que simultaneamente aos movimentos da macaca. “Os cientistas não só libertaram o cérebro para mover as pernas do outro corpo do outro lado do mundo como de maneira rápida”.

No longo prazo, segundo ele, a ideia é que essas tecnologias permitam que o cérebro aprenda a ir além do corpo ao qual se limita. A ideia é registrar essas tempestades cerebrais e transmiti-las por um sistema computacional num novo corpo, um corpo robótico, que faria as vezes do corpo desse paciente, então alimentado pelos desejos motores voluntários do cérebro.

Há quatro anos, segundo Nicolelis, foi constituído um consórcio internacional, sem fins lucrativos, que reúne seus colegas da Universidade Duke, da Universidade Técnica de Munique, na Alemanha, da Escola Politécnica de Lausanne, na Suiça, e do Instituto de Natal, entre outros. O objetivo é permitir que pacientes paralisados possam treinar seu cérebro para controlar métodos computacionais sofisticados que os permitam andar. Conforme destacou, um sistema de realidade virtual foi desenvolvido e está sendo testado para induzir o cérebro a produzir novos sinais. “A ideia é que mesmo pessoas que nunca puderam andar, que nunca viveram a experiência de se mover, tenham seu cérebro induzido a produzir os sistemas necessários para carregar o seu corpo”, disse.

"Isso vai ser feito com o treinamento do cérebro com o mundo virtual. A expectativa com as experiências com os primatas é que nós vamos conseguir treinar, como se fosse um cérebro de criança, não tão maleável como o infantil, mas ainda extremamente flácido", explicou.Todos esses experimentos abrem caminho não só para a reabilitação. Em estudos com animais normais, sem nenhum tipo de lesão, os cientistas têm conseguido aumentar o repertório de percepções. É o caso da criação, em laboratório, de ratos que conseguem sentir os raios infravermelhos. “Eles ainda não veem essa luz, mas a sentem. É um primeiro passo quando se leva em consideração que os mamíferos não enxergam nem sentem esses raios."

Para Nicolelis, uma esperança é que a Copa do Mundo de 2014 seja um momento de mostrar a todos que o Brasil é muito mais que o país do futebol: que existe a possibilidade de a ciência brasileira, num único chute, abrir numa nova dimensão para o conhecimento.

Fonte: Rede Brasil Atual