“Brasil subestima o Paraguai, mas não existe inimigo pequeno”

“O Paraguai já desempenhou na sua história papéis funcionais ao imperialismo dos Estados Unidos. Durante a guerra fria, por exemplo, depois da Segunda Guerra Mundial, era considerado um ‘Estado tampão’. Servia justamente para frear o avanço do comunismo [na América do Sul]. Então o país tem uma história de aliança com os Estados Unidos para seus planos estratégicos”. A declaração é da socióloga paraguaia Olga María Zarza, em entrevista ao Vermelho.

Por Vanessa Silva, para o Portal Vermelho

Olga María Zarza - Vanessa Silva

O interesse dos Estados Unidos em recuperar áreas estratégicas no sub-continente sul americano é denunciado pela socióloga, integrante do Comitê Diretivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), Olga María Zarza, em conversa com o Portal Vermelho. Segundo a pesquisadora, os Estados Unidos descuidaram da América Latina para cuidar do Oriente Médio e agora estão tratando de recuperar o espaço perdido na região. Olga também avaliou a participação do país nos blocos regionais e o processo de integração latino-americana sob a ótica paraguaia.

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Portal Vermelho: O Mercosul decidiu suspender a participação do Paraguai por considerar que no país houve uma quebra no processo democrático. Qual é a importância do bloco para o país?
Olga María Zarza: Nossos principais sócios comerciais estão no bloco, que são Brasil e Argentina. Apesar de ainda faltarem muitas coisas — por exemplo, sempre nos queixamos de que os dois sócios maiores têm muita dívida com os menores, Paraguai e Uruguai, — pelo menos o bloco nos permitia ter um fórum de negociação para postular as reivindicações. (…) Foi o Paraguai que colocou sobre a mesa de negociações a questão das assimetrias [econômicas do bloco]. Ele foi o principal defensor de que os países de menor desenvolvimento relativo teriam que ter um tratamento diferenciado. De fato os setores mais conservadores paraguaios sempre estiveram contra o Mercosul. Que são os setores que estão agora no governo, que triunfaram com [o atual presidente, Federico] Franco.

Portal Vermelho: Essa suspensão abre a possibilidade de que o Paraguai feche um acordo bilateral com os Estados Unidos?
Olga María Zarza: Acho que sim. De fato [os Estados Unidos] sempre estiveram propondo isso. Neste sentido, creio que a suspensão deixa o Paraguai livre para negociar e sair do Mercosul para no futuro fazer acordos com os Estados Unidos ou outros países.

Portal Vermelho: A respeito das assimetrias regionais entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, como é possível lidar com isso se Paraguai sequer tem um parque industrial desenvolvido?
Olga María Zarza: O Paraguai tem uma deficiência no modelo econômico para aproveitar e desenvolver potencialmente toda sua capacidade industrial, seu mercado interno… De qualquer maneira, as reivindicações que sempre foram levantadas pelo Paraguai quanto ao tratamento diferenciado tem a ver com isso: não se pode ter um tratamento igual entre os países maiores e seus sócios menores. Por isso falta ao Paraguai um projeto de país mais claro. Após mais de 60 anos de governos Colorados, o governo progressista de Lugo estava conseguindo uma inserção mais clara, uma noção de como o país deve se desenvolver para se inserir mais favoravelmente no bloco.

Portal Vermelho: Este golpe aplicado aqui tem uma diferença porque foi um golpe limpo, por vias democráticas, como ocorreu também em Honduras em 2009. Acredita que a direita na América Latina esteja se reagrupando e unindo forças para uma nova onda direitista no continente?

Olga María Zarza: A direita está permanentemente buscando se rearticular para poder conquistar posições políticas perdidas, porque o poder real, econômico, ela nunca perdeu. Nossos governos seguem fazendo políticas neoliberais, seguem fazendo concessões aos poderes econômicos. Estruturalmente, as mudanças econômicas foram muito poucas. Então agora estão avançando novamente para conseguir se tornar governo novamente.

Portal Vermelho: Lugo chegou a fazer concessões para os Estados Unidos. Considera que a partir de agora eles terão ainda mais espaço no país?

Olga María Zarza: Sim. Definitivamente essa é a parte mais perigosa de tudo isso porque Franco é um nome da embaixada dos Estados Unidos. Ele está planejando o golpe desde 2009 e sempre com o amparo da Embaixada dos Estados Unidos. Então agora temos uma situação bastante delicada neste sentido.

Portal Vermelho: Os demais países também estão ameaçados? Os Estados Unidos estão com a Quarta Frota acionada, mas supostamente calmos. Ou seja, não estão tentando nada de maneira impositiva na região, mas não estão parados…
Olga María Zarza: O Paraguai já desempenhou na sua história papéis funcionais ao imperialismo dos Estados Unidos. Durante a guerra fria, por exemplo, depois da Segunda Guerra Mundial, era considerado um ‘Estado tampão’. Servia justamente para frear o avanço do comunismo [na América do Sul]. Então o Paraguai tem uma história de aliança com os Estados Unidos para seus planos estratégicos.

Portal Vermelho: Por isso a embaixada aqui é tão grande, tão bem equipada?
Olga María Zarza: O embaixador aqui é o mesmo que esteve em Cuba: James Cason, que é quem se encarregava dos assuntos norte-americanos em Havana. James Cason foi quem veio aqui iniciar toda a tarefa de desenhar uma nova estratégia de penetração dos Estados Unidos e foi sucedido pela embaixatriz Liliana Ayalde, que é de origem colombiana e veio completar a tarefa. Há algo que não se menciona nunca, mas uma das primeiras baixas que o governo Lugo sofreu [foi a deposição do ex-ministro de Defesa] Luis Bareiro Spaini. A defenestração de Spaini seguiu o conselho da embaixada dos Estados Unidos porque ele teve uma posição claramente anti-intromissão dos Estados Unidos nos assuntos internos do Paraguai. Dizem que vemos fantasmas em toda parte, que o imperialismo está em bancarrota e que já não é o mesmo da década de 1970, mas se descuidaram da América Latina um tempo para atender zonas do Oriente Médio e agora vêm com tudo porque estão recuperando as áreas que perderam.

Portal Vermelho: Mas como se dá essa penetração, que não é no âmbito militar?
Olga María Zarza: Aqui a Usaid [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, na sigla em inglês] atua sem nenhum problema. Eles estão fazendo todo o trabalho de espionagem e o trabalho fino que é, sobretudo, a questão cultural, ideológica. E há um trabalho muito interessante e muito penetrante que eles fazem com as ONGs. Eles inclusive estão financiando ONGs de esquerda. E financiam a causa juventude. Estão na origem do Partido do Movimento ao Socialismo [fundado em 2006], por exemplo. Aqui temos uma ONG muito importante, que é a Semillas por la democracia (Sementes pela democracia) que atua completamente com fundos da Usaid para defender a ‘democracia, os valores ocidentais’, etc. Porque tudo agora fazem sob a roupagem da democracia. Nada se faz sem o discurso da democracia, das liberdades.

Portal Vermelho: O Brasil assumiu, nos últimos anos, mais nitidamente o papel de liderança regional. Considera que o país pode fazer frente aos interesses dos Estados Unidos no país?

Olga María Zarza: Creio que sim. Mas acho que poderiam ser mais proativos no que se refere aos programas de cooperação. A embaixada brasileira aqui é bastante débil, não há maiores ações, nem iniciativas para ganhar mais aliados, para assentar posições mais firmes com o Paraguai.

Portal Vermelho: O país estaria subestimando o Paraguai?
Olga María Zarza: Eu penso que sim. Penso que Brasil e Argentina estão subestimando o Paraguai e isso é perigoso. É perigoso porque não existe inimigo pequeno. Há questões históricas comerciais que deveriam ser atendidas. No Paraguai, a opinião esteve sempre muito dividida sobre pertencer ou não ao Mercosul. Muitos consideram que não há vantagens de pertencer ao bloco.

Portal Vermelho: O Mercosul é um modelo de integração, mas há outros, como a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba), que mesmo sendo a Venezuela maior que Cuba e Equador, por exemplo, é um mecanismo que conseguiu vários avanços…
Olga María Zarza: O modelo da Alba trata de superar os acordos dos Estados por cima. É uma integração dos povos e em função dos povos estão seus governos. A integração do Mercosul se mostrou muito uma integração por cima: é dos Estados, estatal, intergovernamental dos quais estão excluídos outros níveis como os municípios. Sua excessiva intergovernabilidade é um aspecto negativo do modelo de integração, ainda que se reivindique o Mercosul social, das pessoas, com rosto cidadão. (…) Hoje, quase todas as instâncias em que setores da sociedade civil participam são nacionais, instâncias consultivas. Necessitamos instâncias deliberativas que superem o mercado comum. Esse modelo precisa mudar e é necessário fazer um modelo mais piramidal, onde os setores da sociedade possam ter real representação.